quinta-feira, 28 de julho de 2016

Foi ontem que te amei

"Foi ontem! Foi ontem que os conheci e que te conheci, foi ontem que te amei – e estamos ambos velhos! O tempo – não sei se o tempo existe … Pelo menos não decorre com regularidade. Custa muito a passar até certa idade, e depois , atropela-se , desaparece, escoa-se  some-se. E o que me impressiona mais não é o tempo , é a distância. Há uma coisa monstruosa que nos leva e empurra, e as figuras e os factos  apagam-se pouco a pouco. Tu ainda  conservas  as feições queridas , mas eu vejo-as  já mais longe … Oh minha ternura , não tardarás  a estar tão afastada de mim, que mal te distinguirei! Cada vez  o espaço se dilata mais. Uma coisa monstruosa se interpõe  entre nós , e nos leva de escantilhão não sei para onde…
Uma alma é preciso criá-la, e quando está criada  - deixá-la. Tanta luta, tanta dúvida, perguntas ansiosas, respostas que nos deixam perplexos , necessidade de recalcar os instintos , e quando, enfim, a gente tem, à custa  de dor, construído um universo que não existe e criado uma alma que não tinha , está cansada, velha , exausta, e é forçoso deixá-la!"
Raul Brandão, in “ O silêncio e o lume”  de “Se tivesse de recomeçar a vida”, 1918, p 34 , Ed. Civilização

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