sábado, 23 de julho de 2016

Da Andaluzia

Embrace, Picasso
                     Já vivi o suficiente para ver que a diferença provoca o ódio.
                                                                                     Stendhal
Na contracapa do livro " Do Amor", de onde se extraiu o texto que se transcreve, pode ser lido o seguinte: " Henry Beyle, que para a posteridade ficou com o nome de Stendhal (1783-1842), não escreveu para os seus coevos.  O público da primeira metade do século XIX quase desconheceu esse mestre incomparável da literatura. Só mais tarde, o tempo restitui Stendhal  à sua verdadeira posição, ressuscitando entre tesouros que ainda hoje o público lê com enelevo. Tais são   Vermelho e Negro, A Cartuxa de Parma e, agora , este extraordinário  e originalissimo ensaio sobre o Amor nas mais  diversas épocas e latitudes. Do Amor é uma obra de fina linguagem, de estranhos e delicados cambiantes, que o leitor  saboreará com um encanto permanente. Para lá das particularidades  de certos costumes que morrem com a época  que os criou, fica a essência do olhar atento de um homem que tão bem soube conhecer e amar os outros homens."
Da Espanha
Por Stendhal
"A Andaluzia é um  dos mais amáveis locais que a voluptuosidade escolheu como seu lugar de estadia na terra. Tinha três ou quatro histórias que mostravam de que maneira  as minhas ideias sobre os três ou quatro actos de loucura cuja reunião forma o amor são verdadeiros em Espanha; aconselham-me  a que os sacrifique à delicadeza francesa.  Não me serviu de nada protestar que escrevia em língua francesa, mas não em literatura francesa. Deus me preserve  de ter seja o que for de comum com os literatos  estimados hoje em dia!
Os mouros, ao abandonarem a Andaluzia , deixaram aí ficar a sua arquitectura e quase  os seus costumes. Uma vez que me é impossível falar destes últimos na linguagem de madame de Sévigné, direi ao menos  da arquitectura mourisca  que a sua característica  principal consiste em que cada casa tem um pequeno jardim rodeado dum pórtico elegante  e esbelto.  Aí, durante os calores insuportáveis  do Verão, quando durante semanas  inteiras , o termómetro  de Réaumur nunca desce  e se mantém  a trinta graus, reina  sob os pórticos uma deliciosa obscuridade. No meio do pequeno jardim , há sempre  um repuxo  cujo ruído uniforme  e voluptuoso é o único que perturba este encantador retiro.  A bacia de mármore que recolhe  a água está rodeada duma dúzia de laranjeiras  e de loureiros-rosas. Uma tela espessa em forma de tenda cobre todo o jardim e, protegendo-o contra os raios de sol  e a luz , não deixa  penetrar senão as pequenas  brisas que, por volta do meio-dia, vêm das montanhas.
Aí vivem e recebem  os seus convidados  as encantadoras andaluzas , de passo tão vivo e tão ligeiro; um simples vestido de seda negra , guarnecido com franjas da mesma cor , e deixando ver um peito  de pé encantador , uma tez pálida, olhos onde perpassam  as mais fugitivas gradações das mais ternas  e ardentes paixões: tais são os seres celestiais que me é proibido fazer entrar em cena.
Considero o povo espanhol como representante vivo da Idade Média.
Ignora uma quantidade de pequenas verdades ( vaidade pueril dos seus vizinhos); mas sabe profundamente as grandes e tem bastante carácter e espírito para as levar às últimas consequências. O carácter espanhol faz um belo contraste com o espírito francês; duro , brusco, pouco elegante, cheio dum orgulho selvagem, sem nunca se preocupar com os outros : é exactamente o contraste  do século quinze com o século dezoito.
A Espanha é-me muito útil para uma comparação:o único povo que soube resistir a Napoleão parece-me absolutamente desprovido de honra estúpida, e do que  há de  estúpido na honra. 
Em lugar de fazer  belas paradas militares, de mudar de uniforme de seis em seis meses e de usar grandes pares de esporas, tem o no importa  geral."
Stendhall, " Do Amor" , Editorial Presença, pp176,177, 178

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