segunda-feira, 2 de maio de 2016

No sossego desta manhã de Maio


Galera / 2 de Maio / (1992)
“ Abro a janela e respiro.
O mar, sempre o mar onde a Ilha se perde e se alcança. Por onde a Ilha se alarga até ser maior que o nosso tédio.
Tudo tão íntimo, tão íntimo. Tão indefinidamente insular.
Esta manhã, por exemplo, com o mar todo cinzento, à excepção daquela mancha de luz sobre as águas. Lembro de ter pensado: mas é preciso que toda a gente saiba, venha ver como é estranha  a luz assim flutuante e misteriosa a sair do mar. Tão estranha, quase sobrenatural –talvez o espírito de Deus  a pairar sobre as águas.
Entretanto é muito manhã. E sábado . Os homens dormem ou, se não dormem, entretêm-se  com outras coisas miúdas e sérias. Nem toda a gente abre, de manhã, a janela  e se debruça a olhar o mar – embora todos os ilhéus  o tragam dentro de si como uma coisa religiosa, um canto gregoriano solene e ressonante.
Gota a gota, o tempo, na exactidão do destruir. Metodicamente, implacavelmente no destruir , salvo no que toca ao mar – tão atingido como Deus. A janela aberta no sossego desta manhã de Maio que já não é  dos maios, porque hoje é dia dois.  Eu na posse do silêncio primordial que vem das águas. Da luz sobre as águas. Da imensidade.
Do meu posto, olho a paz  das enseadas onde os navios largam âncora e ficam imóveis. Uma voz canta. É voz  de homem, rústica, um pouco roufenha que galga as sebes e os muros , alastra pelos campos. Não entendo o que diz nas palavras. Só ouço a toada trémula e áspera como um uivo no vento.  Não pode ser senão do homem do mar, aquela voz: sobe da garganta, longínqua, cheia das distâncias  dos litorais.
Estou como quem apenas deseja olhar e escutar. Um abandono ao ar fino da manhã. E aquela voz roufenha, quase selvagem, na toada primitiva que o mar espalha na Ilha desde o tempo em que não havia homens sobre a Terra.
Por um instante tive uma visão desse tempo primitivo – uma coisa desfocada , confusa, emaranhada de silvedos e urzes da serra. Uma coisa ainda sem nome e sem lugar nos mapas. “ Fernando Aires , in Era  uma vez o Tempo, Diário , Editora Opera Omnia, p. 458
Sobre o Autor :
“Fernando Aires nasceu em Ponta Delgada , São Miguel, Açores a 18 de Fevereiro de de 1928 e faleceu na mesma cidade em 9 de Novembro de 2010. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas , em 1958, na Universidade de Coimbra. Estagiou para  a docência na cidade do Porto. Regressado aos Açores, S. Miguel, exerceu  a actividade docente no Liceu Antero de Quental , na escola do Magistério Primário e posteriormente, durante duas décadas, até à jubilação (1995) , na Universidade dos Açores. 
Escritor, ensaísta , cronista  em muitos jornais e revistas iniciou muito cedo o seu percurso literário. Ainda estudante  , fez parte de uma tertúlia literária com outros nomes sonoros das Letras com quem viria a constituir ,em 1946, o Círculo Literário Antero de Quental  que pretendia agitar e acabar com o conservantismo que estagnava as letras açorianas.
Autor de uma obra variada, a sua escrita viria a desenvolver-se num género literário onde predomina o memorialismo, que se manifesta nesta vertente diarística, da qual resulta este Diário em cinco volume, reeditado em 2015, num  único e grosso volume.
No Prefácio a esta  obra, Eugénio Lisboa escreve : O diário é rico de meditações, de percepções, de visões , de assombros que surgem no decorrer dos dias  e que o escritor vai registando  com pathos variado.(…)
Mas porquê, afinal, escrever? A resposta dada pelo autor do diário é simples, cândida e pungente: porque é « um homem que escreve por puro prazer, porque não sabe de mais nada  que substitua esse prazer. Eis tudo». O prazer da escrita como antídoto  para o desespero de viver  e de verificar  que a vida é efémera e talvez sem sentido.(…) 
«Ponho –me a escutar os acontecimentos do passado , a reflectir sobre o que ficou escondido por detrás das aparências.” É um convite irresistível: façamos como o autor deste diário singularmente belo – ouçamos a música subtil das palavras, escutemos os acontecimentos ( ou nem tanto) deste presente que hoje é passado, reflictamos sobre o canto profundo que se esconde em passagens , às vezes, na aparência, tão anódinas…”

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