segunda-feira, 11 de abril de 2016

Quero a minha Mãe

Mãe
Por António Lobo Antunes
A pouco e pouco fui admitindo o seu amor pelos filhos enquanto ela se queixava da sua lenta cegueira que a impedia de ler. Quantos homens se podem gabar da sua mãe gostar de Proust? E de Céline? E dos grandes russos? E dos meus, que lamentava – Porquê livros tão desesperados se a tua vida é boa?
Quando o Pedro se foi embora a Mãe disse
– Uma mãe não tem o direito de continuar viva com um filho morto
e, como não tinha o direito de continuar viva, foi-se embora igualmente. Tão magra de tristeza que não fazia relevo no caixão. Sem cenas, sem partes gagas, sem lágrimas quase, com uma imensa dignidade que sempre foi a dela. Era magra, pequena, de aparência frágil e dura como ferro. Tivemos sempre os dois uma relação difícil. Só quando estive muito doente e ela veio ver-me percebi que dava a vida por mim, percebi o que os filhos representavam para ela. E fez seis. E ensinou-os a ler. E casou com um homem difícil, de qualidades e defeitos enormes. Ensinou-lhes mais coisas depois de os ensinar a ler. Casou com um homem colérico, caprichoso, mimado, inteligente, sedutor, honesto, insuportável às vezes, irresistível outras. Vi-a beijar-lhe a boca no caixão. De volta do enterro disse-lhe
– Isto sem o pai parece vazio
ele que passava a maior parte do tempo fechado no escritório, a ouvir música, a ler, a estudar e quase só o encontrávamos à mesa. E a Mãe respondeu
– É que ele tinha uma presença muito forte.
Devia ter: deu-me cargas de porrada memoráveis. Aí pelos catorze anos abriu as portas de madeira da janela do quarto
(era uma casa antiga)
porque eu estava a dormir, atrasadíssimo para o liceu. Perguntei-lhe
– Vem assistir ao acordar de um génio?
Ficou a olhar para mim de boca aberta e nunca mais me tocou. Não me disse nada mas disse ao Pedro
– O António tem faísca
o que, da parte dele, era o maior dos elogios e deixou de me maçar com as minhas catastróficas prestações escolares e a ler às escondidas o que eu escrevia, ele que não possuía nem sentido de humor nem talento criativo. Muitos anos mais tarde tirou um caderno da gaveta:
– Vê isto.
chamava-se Máximas Mínimas. Folheei o isto, perguntei
– Quer que lhe responda como escritor ou como filho?
respondeu-me
– Como escritor
opinei
– Pai o que fez não vale nada
e não imaginava que um caderno se evaporasse tão depressa. A Mãe, felizmente, não escrevia, mas ocupava-se do resto. Por exemplo pedir para me colocarem na fila da frente dado que eu não ligava nenhuma às aulas. Não puseram e eu pude continuar a nem ouvir os professores. Felizmente que os meus irmãos a compensavam sendo bons alunos enquanto, na sua opinião, eu estava destinado a pedir esmola nas esplanadas. Mas lá acabei o liceu, entrei para a Faculdade de Medicina onde reprovei copiosamente até a Mãe me prometer a carta de condução se eu passasse e dali para a frente foi um despacho. Depois o estágio, depois a guerra, uma carta da Mãe a anunciar-me com grande cópia de pormenores o nascimento da Zézinha. Começava assim: como há dois meses não temos notícias tuas não sabemos se estás morto ou vivo. Para o caso de estares vivo
(por acaso estava)
nasceu-te uma filha, seguida da descrição do parto com grande cópia de pormenores. Isto era típico da Mãe, esconder a ternura. Excepto com o Miguel, talvez, a quem chamava pombinha branca, minha pombinha branca, tratamento que eu detestaria mas, no fundo, não se me dava de receber de vez em quando. Jamais me chamaram pombinha branca na vida. Volta e meia, confesso, faz-me falta. Bom, depois com todos já adultos as pombas levaram sumiço. Às quintas- -feiras, já mais perus que pombinhas jantávamos em casa dos Pais. Cada um tinha a sua sala, a da Mãe cheia de retratos, a do Pai cheia de livros e discos. Pedia-me
– Ouve lá isto
e tanto podia ser Coltrane como música barroca e, de repente, uma noite, percebi que ele tinha admiração por mim e que ma dava através da minha filha Joana, devido ao seu imenso pudor. A Mãe, essa, queria sempre que eu lhe dissesse poesia. Adorava António Nobre, que ela não aceitava que fosse maricas
– Que disparate
e, volta e meia, nos intervalos dos versos, declarava desafiar qualquer mulher no mundo a ser capaz de pôr cá fora filhos mais bonitos e inteligentes que os dela. Quando foi da votação do aborto votou a favor:
– As mulheres devem ser donas do seu corpo embora eu nunca aceitasse que me fizessem um.
A pouco e pouco fui admitindo o seu amor pelos filhos enquanto ela se queixava da sua lenta cegueira que a impedia de ler. Quantos homens se podem gabar da sua mãe gostar de Proust? E de Céline? E dos grandes russos? E dos meus, que lamentava
– Porquê livros tão desesperados se a tua vida é boa?
Não me percebia muito bem, era uma criatura estranha para ela mas era seu filho. E depois a memória dele? E depois a inteligência? E andávamos nisto quando o Pedro morreu. Foi de repente e foi horrível. Na sua cabeça e no seu coração perdeu o direito de estar viva, e apressou-se a ir ter com o filho. Pronto. Entre nós houve sempre uma relação estranha. Quanto me amava, quanto é que eu a amava? O certo é que de vez em quando, estando sozinho, me sai pela boca fora, sem eu dar conta, uma espécie de grito
– Quero a minha Mãe
e palavra de honra que sinto a sua mão a fazer-me uma festa.”
António Lobo Antunes, em Crónica publicada na revista Visão , em 23.03.2016

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