sábado, 30 de abril de 2016

A Arte de Ser Avó

A Arte de Ser Avó
Conto de Rachel de Queiroz
"Quarenta anos, quarenta e cinco. Sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem as suas alegrias, as suas compensações – todos dizem isso, embora  pessoalmente, ainda não as tenha descoberto – mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que tinha e lhe fugiu subtilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações,  não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres – não são mais aqueles que  recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis – nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual  morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é “devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.
Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto…
No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do neto. Não importa que ela hipocritamente, ensine a criança a lhe dar beijos e a lhe chamar de “vovozinha” e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora noutra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, “não ralha nunca”. Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com as cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender e apagar a luz eléctrica mil vezes se quiser – e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem querer – e ser acreditado!
Fazer má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna…
Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui em baixo  ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz “Vó”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino – involuntariamente! – bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém” se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague." Rachel de Queiroz
Sobre a  Autora
Rachel de Queiroz nasceu em  Fortaleza (CE), em 17 de Novembro de 1910, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ) em 4 de Novembro de 2003. Tradutora, romancista, escritora, jornalista, cronista profícua e importante dramaturga brasileira. Autora de destaque na ficção social nordestina. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras.
Estreou em 1927, com o pseudónimo de Rita de Queiroz, publicando trabalho no jornal O Ceará, de que se tornou afinal redactora efectiva. Em fins de 1930, publicou o romance O quinze, que teve inesperada e funda repercussão no Rio de Janeiro e em São Paulo. Com vinte anos apenas, projectava-se na vida literária do país, agitando a bandeira do romance de fundo social, profundamente realista na sua dramática exposição da luta secular de um povo contra a miséria e a seca.
Foi membro do Conselho Federal de Cultura, desde a sua fundação, em 1967, até sua extinção, em 1989. Participou da 21ª Sessão da Assembleia Geral da ONU, em 1966, onde serviu como delegada do Brasil, trabalhando especialmente na Comissão dos  Direitos do Homem. Em 1988, iniciou  a sua colaboração semanal no jornal O Estado de S. Paulo  e no Diário de Pernambuco.
Recebeu o Prémio  Nacional de Literatura de Brasília pelo conjunto de obra em 1980; o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Ceará, em 1981; a Medalha Mascarenhas de Morais, em solenidade realizada no Clube Militar (1983); a Medalha Rio Branco, do Itamarati (1985); a Medalha do Mérito Militar no grau de Grande Comendador (1986); a Medalha da Inconfidência do Governo de Minas Gerais (1989); O Prémio Luís de Camões (1993); o Prémio Moinho Santista, na categoria de romance (1996); o  Diploma de Honra ao Mérito do Rotary Clube do Rio de Janeiro (1996);  o título de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2000). Em 2000, foi eleita para o elenco dos “20 Brasileiros empreendedores do Século XX”, em pesquisa realizada pela PPE (Personalidades Patrióticas Empreendedoras)." In Academia Brasileira de Letras

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Recordar Alfred Hitchcock

Hitchcock morreu há 36 anos
"Alfred Hitchcock nasceu em Londres, a 13 de Agosto de 1899. Foi um mestre do cinema, considerado um dos mais populares realizadores de todos os tempos. Hoje é dia de recordar Hitchcock, que morreu a 29 de Abril de 1980.
Alfred tem origens humildes. Era filho de um vendedor de frutas, William Hitchcock, um homem que teve grande importância na definição do seu carácter. Disciplinador, William entregou o filho a um polícia, que o colocou numa cela, quando Alfred tinha apenas 5 anos.
Frequentou um colégio jesuíta, que acentuou a disciplina imposta pelo pai. A educação disciplinadora viria a revelar-se nos filmes de Hitchcock, que como realizador apresenta a analogia entre pecado e redenção, entre inocência e culpa. O medo pelo proibido abriu espaço ao desejo de suspense, que marcaria a sua obra.
As origens do cinema macabro e criminal  derivam também da sua formação académica e das visitas recorrentes ao museu da Scotland Yard, bem como à sua paixão pela escrita de Charles Dickens. Estava criado o perfil do futuro realizador, mestre de suspense e da recriação do mundo do crime.
Prosseguiu a formação na área de Belas Artes da Universidade de Londres, enquanto ajudava o pai na loja de frutas. O cinema afirmava-se e cativava adeptos.
Hitchcock soube, através de uma revista, que uma empresa de cinema dos EUA, a Famous Players-Lasky Company, iria abrir um estúdio. Apresentou-se nos escritórios da Famous com esboços de letreiros para filmes mudos projectados por si e acaba contratado. Acabava de entrar no cinema.
Em 1925, recebeu uma proposta para dirigir uma coprodução de ‘The Pleasure Garden’, naquela que seria a primeira mostra como realizador, que agradou aos críticos e  lhe abriu as  portas para o futuro: a realização de grandes filmes.
Hitchcock muda-se para os EUA em 1939 e torna-se cidadão norte-americano, em 1955. A estreia de Alfred Hitchcock em Hollywood, ‘Rebecca’, em 1940, vence o Óscar de melhor filme.
Ao longo dos anos, foi produzindo verdadeiras obras de arte, coleccionando prémios, com seis nomeações para os Óscares, com os filmes Rebecca (1940), Lifeboat (1944), Spellbound (1945), Rear Window (1954) e Psycho (1960), como director; e Suspicion (1941), como produtor.
É considerado o maior realizador de todos os tempos. Morre de insuficiência renal, na sua casa em Los Angeles, a 29 de Abril de 1980." Adaptação de artigo  em PTjornal


(Accione legendas no ícone à esquerda do ajuste de resolução)
Título Original: Rebecca.
Género: Mistério, Suspense Psicológico.
País: Estados Unidos, 1940
Artistas: Laurence Olivier, Joan Fontaine, George Sanders.
Direcção: Alfred Hitchcock.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Mário de Sá-Carneiro, o Mestre

Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)
O OIRO E A NEVE
(SÁ-CARNEIRO VISTO POR JOSÉ RÉGIO)
Por Eugénio Lisboa 
"É próprio de todos os grandes escritores admirarem alguns dos seus pares e amarem outros: admirar não é o mesmo que amar. Pessoa admirava Milton e amava Dickens. Flaubert admirava Zola, mas amava Hugo. Régio admirava Eça e Pessoa, mas amava Camilo e Sá-Carneiro. Há aqueles com quem sentimos afinidades e aqueles em quem admiramos qualidades que não temos nem nos interessa particularmente ter.
Régio admirou, estudou e ajudou a promover os argonautas do chamado “primeiro modernismo” (Sá-Carneiro, Pessoa e Almada), mas não se reviu em todos, por igual. Consultando os textos – actividade exótica mas indispensável – torna-se óbvio que preferiu Sá-Carneiro a Pessoa – no primeiro, reconhecia verdadeiro génio, no segundo, via apenas elevadíssimo talento. E não foram conclusões tardias, no seu percurso: já em 1925, por ocasião da apresentação da sua tese de licenciatura à Universidade de Coimbra, Régio, muito embora reconhecendo em Pessoa egrégias qualidades e até grandeza, não lhe dava a honra de capítulo separado, que reservava para Sá-Carneiro. Mas fazia mais, já nessa remota data: considerava, por um lado, o autor de A Confissão de Lúcio como “o maior intérprete de certa personalidade contemporânea”, por outro, aludindo às revistas do modernismo, afirmava que “é nelas também que nos aparece o nome do Mestre – Mário de Sá-Carneiro.” Note-se bem: não fala de “um” Mestre, mas “do Mestre”.
A última e maior “perfídia” é, aludindo ao “sacudir as velhas fórmulas e os velhos meios de expressão”, dizer que isso [a Sá-Carneiro] o distancia de todos os imitadores e simuladores – dando à sua lição a força e a grandeza da sinceridade”. Por tudo quanto já nessa altura escrevia e, depois, não deixou de continuar a escrever, não custa muito deduzir que tinha, para Pessoa, lugar reservado entre “os imitadores e os simuladores”.
Régio ficará sempre fiel ao autor de Dispersão, dando-lhe a sua atenção de ensaísta e dramaturgo. Com efeito, o seu livro fundamental – Ensaios de Interpretação Crítica – colige textos consagrados a quatro amores de sempre: Camões, Camilo, Florbela e Sá-Carneiro. Pessoa está ausente. Eça também. (Escreveu bastante sobre um e outro, mas não os colocou neste trono.) Por outro lado, das suas Três Peças em um Acto, uma tem, como protagonista, Sá- Carneiro, e, como miolo, a sua agonia. E é sabido como José Régio privilegiava o teatro, de entre as suas mais vitais e necessárias pulsões criativas. Dedicar, portanto, uma das suas peças de teatro a um personagem da feira literária contemporânea é homenagem de truz.
José Régio
No magistral estudo que lhe dedica, nos já citados Ensaios de Interpretação Crítica, Régio indica, penetrantemente, certas características particularmente constituintes e definidoras do peculiar génio de Sá-Carneiro, que são, curiosamente, características também suas. Por exemplo: “Se mais prosador que poeta, mais poeta que prosador, é questão difícil e bizantina a propósito de Mário de Sá-Carneiro, desde que reconheçamos, como deve ser, o fundo poético de toda a sua criação. Uma unidade indiscutível se verifica entre os seus poemas e os seus contos, novelas, trechos em prosa: unidade na matéria e na forma, no conteúdo e no estilo.” O mesmo, palavra por palavra, se poderia dizer da obra do autor de Mas Deus É Grande. (Muitos críticos de Régio passaram muito tempo, e gastando muito papel e muita paciência ao leitor, tentando decidir se ele era sobretudo poeta ou sobretudo prosador). Para aduzir um argumento de natureza pessoal, se me é permitido, não me fez mal nenhum entrar na obra de Régio pela porta da prosa, o mesmo me acontecendo com a obra de Sá-Carneiro: com ambos, a poesia veio depois – e nada se perdeu.
Outra característica que Régio aponta em Sá-Carneiro e que eu, já por mais de uma vez lhe apontei, a ele, Régio: a “monotonia do génio”. Eu cito: “Decerto é muito verificável na obra de Sá-Carneiro a monotonia do génio; isto é: certo perpétuo reaparecimento, numa obra, dos temas íntimos e mais pessoais a uma original personalidade humano-artística”. Monotonia que se verifica em tantos grandes criadores, como, por exemplo, Tolstoi. E até a “correcção” com que matiza esta característica de “monotonia” se pode aplicar à do próprio autor de A Chaga do Lado: “Nada, porém, de linear ou recto se implica forçosamente numa unidade psico-estética, e a unidade da obra de Sá-Carneiro não recusa uma relativa diversidade, notável sobretudo em obra tão pouco extensa.” Tal diversidade manifesta-se, talvez, com mais força, na obra, por outro lado, também “monótona”, de Régio, dada a sua muito maior extensão.
Outra importante característica detectada na personalidade de Sá-Carneiro, pelo autor de Poemas de Deus e do Diabo, é o de existir, fortemente, numa pessoa tão singular e que tão obviamente arrasta a asa ao anormal e ao patológico, uma tão grande apetência pelo normal e até pelo banal. Mais uma vez, cito: “Uma de tais evidentes contradições (se é que não são antes aparentes ou superficiais) é a sedução do normal, do simples, do comum, num autor por outro lado tão atraído para o Estranho, o Privilegiado, o Escabroso, o Misterioso; tão fora do comum ele próprio como homem. O tédio, o cansaço, até o ódio pelo que esteja fora, ainda que acima, do normal, não manifestam senão o mesmo: pois, simultaneamente, não invalidam a estima que continua a merecer-lhe o que até ao ódio o enfastia. Será a primeira vez que um autor ao mesmo tempo aborrece e preza a sua pesada originalidade?”
Isto que Régio tão penetrantemente sonda no seu estudo clássico dedicado à obra do autor de Princípio, detectei-o eu mesmo na obra do escritor presencista, ao escrever o meu longo ensaio José Régio – A Obra e o Homem, quando ali assinalei, no personagem Lèlito (alter ego de Régio), esta mesma empatia com a gente simples, normal, vulgar, pessoas como, entre muitos outros, o Sr. Bento Adalberto, do romance A Velha Casa. E lembrei, a propósito, as penetrantes observações que, a este respeito, faz o personagem Tonio Kröger, da novela com o mesmo nome, de Thomas Mann, nos seus desabafos com a artista Lisaveta. Aí declara ele, personagem singularíssimo de artista-criador, o seu ocasional cansaço do convívio com os “duendes” da criação literária, os grandes anormais e pervertidos, e o seu desejo de um outro convívio com gente simples, quotidiana e tributável, não excepcional…
Estas contradições, que dividem o ser humano em mais de uma pulsão forte, existem, em certa medida, em toda a humanidade,  mas agudizam-se, com excepcional intensidade, nos grandes criadores de arte, que são, segundo Proust, os grandes nervosos, o sal da terra… Era talvez neste sentido que o grande romancista americano F. Scott Fitzgerald observava: “Os escritores não são exactamente pessoas, ou, se são minimamente bons, são uma data de gente diferente, esforçando-se por serem uma única pessoa.”
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro
Régio via em Sá-Carneiro o génio que não via em Pessoa, a quem classificava de grande homem de letras, mas não de grande poeta. Mas o que é, afinal, um génio? Nabokov, sempre inventivo e original, sugeriu que génio seria, por exemplo, um africano, torrado pelo sol, que, sem nunca ter ouvido falar nisso, subitamente congeminasse o conceito de neve… Assim sendo, Sá-Carneiro, pelintra, pedinte e fisicamente disforme (o Esfinge Gorda), congeminou, para seu uso imaginário, a elegância do Outro-Ele, as festas excessivamente requintadas e perversas de ricaços sofisticados e anormais, os jogos de luz prodigiosamente caprichosos e sexuados, em palácios delirantemente sumptuários – os “indícios de oiro”, que, afinal, nunca possuiu. Sonhar a neve ou sonhar o oiro – não será o mesmo? Passarmos a ter o que não temos? O grande criador compensa-se, como pode, daquilo que a vida lhe não deu, disse-o Valéry e tê-lo-ão dito ou pensado muitos outros, antes e depois dele.  "
Eugénio Lisboa, em ensaio publicado no JL de 27.04.2016

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Esta canção é para ti

Esta canção é para ti, andorinha escoteira, que vieste inesperadamente pousar no peitoril molhado da janela. Para ti, friorenta e assustada, que és o anúncio precoce da Primavera escondida sob as dobras espessas da chuva. Canto o temporal nocturno que te revelou aos meus olhos, solitária e esquiva, enquanto te ofereço o coração florido de estranhas esperanças.
No líquido negrume, quase senti a tua fome de calor e abrigo. Só tenho para dar-te as mãos em concha e a certeza de compreender o apelo misterioso que te trouxe de terras soalheiras à cidade vestida de silêncio e de bruma. Não vieste enganada, como diriam os práticos que nada sabem das coisas, como tu, aladas e inquietas; vieste porque, talvez, um menino doente esperasse por ti para morrer tranquilo. Ou uma rosa temporã fiasse do teu regresso alacre a ordem soberana para desabrochar em cor. Vieste, andorinha, talvez porque um poeta olhava tristemente a lonjura da noite e aguardava a palavra, secreta e inviolável, inscrita na elegância do teu voo.
Que importam os barómetros, relógios, calendários?
Agradeço-te por mim, pelo menino, pela rosa temporã desabrochada. Requeriam-te e vieste: por isso te agradeço, por isso celebro, cantando, a tua vinda inesperada.
Bem-vinda sejas, andorinha! Bem-vinda sejas! Pelo menino e pela rosa, pela cidade e por mim, ergo no ar esta canção que é para ti - para ti, friorenta e inquieta, nesga de céu estrelado entre nuvens de chumbo e temporal.
Daniel Filipe, in Discurso sobre a cidade - crónicas, Editorial Presença, colecção forma, n.º 8, Setembro de 1977, pp. 50-51.


GARÇA PERDIDAna voz maior de  Dulce Pontes, do álbum "O primeiro canto" (1999)

terça-feira, 26 de abril de 2016

A Criação e a distante melodia

De Franz Joseph Haydn (1732-1809),《The Creation》Oratorio, Hob. XXI:2 (1798), English version, Vienna 1800.
Part 1 / The First Day:
1. Overture (Introduction) - The Representation of Chaos
Emma Kirkby (soprano / Gabriel)
Anthony Rolfe Johnson (tenor / Uriel)
Michael George (bass / Raphael)
Choir of New College, Oxford
The Chorus of Academy of Ancient Music
Distante melodia

Num sonho d´Íris morto a oiro e brasa,
Vêm-me lembranças doutro Tempo azul
Que me oscilava entre véus de tule -
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.

Então os meus sentidos eram cores,
Nasciam num jardim as minhas Ânsias,
Havia na minha alma Outras Distâncias -
Distâncias que o segui-las era flores...

Caía Oiro se pensava Estrelas,
O luar batia sobre o meu alhear-me...
– Noites-lagoas, como éreis belas
Sob terraços-lis de recordar-Me...

Idade acorde d´Inter-sonho e Lua,
Onde as horas corriam sempre jade,
Onde a neblina era uma saudade,
E a luz – anseios de Princesa nua...

Balaústres de som, arcos de Amar,
Pontes de brilho, ogivas de perfume...
Domínio inexprimível d´Ópio e lume
Que nunca mais, em cor, hei-de habitar...

Tapetes de outras Pérsias mais Oriente...
Cortinados de Chinas mais marfim...
Áureos Templos de ritos de cetim...
Fontes correndo sombra, mansamente...

Zimbórios-panteões de nostalgias,
Catedrais de ser-Eu por sobre o mar...
Escadas de honra, escadas só, ao ar...
Novas Bizâncios-Alma, outras Turquias...

Lembranças fluidas... cinza de brocado...
Irrealidade anil que em mim ondeia...
– Ao meu redor eu sou Rei exilado,
Vagabundo dum sonho de sereia...
Paris 1914 - Junho 30
Mário de Sá-Carneiro, (Lisboa,  16 de Maio de 1890 -Paris,  26 de Abril de 1916) in Poemas Completos, Assírio & Alvim, 2001
Há cem anos  desapareceu um dos grandes poetas portugueses do século XX , com apenas vinte e cinco anos de idade. 


segunda-feira, 25 de abril de 2016

O sonho cumpria-se naquele dia




No dia da cor  azul

Ser livre é um imperativo que não passa pela definição de nenhum estatuto.  Não é um dote. É um dom.
 Miguel Torga

A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida.
Miguel de Cervantes, (29 de Setembro de 1547-  22 de Abril de 1616) in "Dom Quixote".

O afinador de palavras apresentou-se ao fim do dia. A luz, obumbrada pelo ocaso, escondia as cores que sempre exibia. Era um aparecimento estudado. Sorria com alguma astuta ingenuidade, não fossem descobrir que tudo fora  planeado.  A quoi bon, o jogo das palavras pertencia-lhe.
Nesse dia, vestira o azul. Fora um labor infindável. Vieram tantas que ficara exausto. Tinha sido uma revelação. Não era que havia um ror de palavras   a acreditar no impossível. 
O azul era a cor da utopia. Todas aquelas palavras que  tinham lançado acordes, que poetavam, que esgrimiam o som libertário para uma nova humanidade, que carregavam o sonho de um mundo justo se enfileiraram para que as afinasse. Outras ainda, mal alinhadas nas letras que as faziam nascer, vinham trôpegas à espera de um elixir  que as fortalecesse. Só ele conhecia os poderes do azul. Só ele sabia quem  o podia vestir. A autenticidade revelava-se a um pequeno lançar de olhos. Ficou atónito com tanta palavra genuína. Que fazer se o dia tinha cronómetro? E ele que se exigia demais. Como dizimar tanta  maleita inesperada?
Frágeis e desamparadas rogavam, com assertiva doçura, uma recuperação. O azul era melodicamente gentil, intrinsecamente harmonioso. Fugia ao aparatoso, ao ruído dissonante da exigência. Elas, as palavras, queriam  não um remendo, não um penso que se acomodasse  às circunstâncias desse tempo crísico, dessa época infame. Não . Ouvira, límpido e nítido, sem  qualquer vacilação, um rotundo e ardente não. Que burilasse. Que se servisse de um cinzel  e as esculpisse sem demora, mas para todo o sempre.
Qual folha caduca? Que pensamento abstruso.  O Outono  acontecia apenas na natureza. Palavras são palavras. Têm vida própria. Forma definida e lugar no  repositório  das nações. E sabia-se. Era um dado categórico. E o azul identificava as palavras que acreditavam no impossível.
Trabalhou. Recuperou.  Cinzelou. Remendou. O dia prolongou-se até que a cor se tornou invisível. Muitas palavras ficaram prostradas no chão, quando se obscureceu. Nada mais podia fazer. Sem os raios do sol, o azul tornava-se volátil. Desaparecera na magia do insondável poder da luz.
Amanhã seria outro dia. Vestiria também uma outra cor. Afinaria outras palavras. O azul teria de esperar pela roda do tempo.
Agora, escurecia. A noite protegia. Guardara uma única palavra. Trazia-a no bolso. Vinha redonda . A sorrir para quem a esperava, a espargir um odor magnificente. Que azul luminoso a vestia. Era única e imperdível. Fora difícil restabelecê-la. Com ela estavam associadas muitas outras palavras . Não eram visíveis. Mas compunham-na .
Uma sinfonia  soltava-se,  audível apenas para ele: a sinfonia da criação. Desconhecida, majestosa e sedutora. Nem ao fluir, a lembrança dos sons do  Oratorio de Haydn  se apunha. Surgiam diferentes, apesar de produzidos pela estética do belo e sustentados por um denominador comum. Separava-os a  sonoridade dos instrumentos. Era uma sinfonia de  acordes únicos, heróicos  e gloriosos.  Uma sinfonia que se erguera do caos, do nada informe que debruava o vazio. Explodia, alargando-se, em eufónicos e imparáveis movimentos, para lhe encher  o corpo e a mente de novas forças, de diferentes vontades que teria de partilhar.
Vinha com uma palavra forte. Sabia-o. Vira-a por dentro. Tinha as letras bem desenhadas. Nove letras em sincronia perfeita. Ficaria para sempre, como a saudade das coisas felizes. Deixaria de lhe pertencer, logo que fosse  apresentada. Seria de todos e para todos.
Com leveza e disciplinada ternura, começou a retirá-la  devagarinho. À medida que saía,  a noite transformava-se. Tomava-a  um  novo e estranho esplendor. E quando a desnudou e a mostrou inteira , o brilho intenso da Liberdade  iluminou os rostos e encheu de promessas o coração  de cada  um. 
Assim se cumpria, naquele dia, o sonho que veste o azul.
Maria José Vieira de Sousa,  in “O Afinador de Palavras “, 2016

domingo, 24 de abril de 2016

Ao Domingo Há Música

"Inspirado na obra A volta ao Mundo em oitenta dias, escrita  por Julio Verne , o Centro Cultural de Belém programou Os Dias da Música  de 2016 como uma viagem à volta do mundo, não em 80 dias, mas em 80 concertos."
Hoje, às 19 horas, na sala Fernando Pessoa, o concerto pertence a James Blood. Nas páginas da programação define-se este grande homem do jazz com as seguintes palavras: James “Blood” Ulmer está a comemorar 75 anos de vida da forma mais pessoal possível: a sós com a sua guitarra. Para todos os efeitos, é uma das mais idiossincráticas figuras da história do jazz. Como ele não há mais ninguém, ainda que muitos o tentem imitar. Este é um homem que se foi reinventando – e à sua música – ao longo de um percurso de décadas em que viu o seu estatuto único como guitarrista ser confirmado uma vez e outra. Segundo o crítico Greg Tate, o estatuto de quem surgiu como o “elo que faltava entre Wes Montgomery e Jimi Hendrix e entre os P-Funk e Mississippi Fred McDowell”.
Ulmer desdenhou da segurança e do conforto de cada sucesso para mudar tudo. Aderiu ao método harmolódico de Ornette Coleman com o fito de ir mais além, estabelecendo uma nova forma de afinar o seu instrumento. Encheu o jazz de funk, de rock e mesmo de folk e até na cena norte-americana dos blues está a deixar marcas. Nenhum dos idiomas musicais da diáspora afro-americana sai incólume dos seus dedos: misturam-se, confundem-se e ficam profundamente renovados. É um gigante da música do século XX e deste início do XXI, independentemente de géneros e tendências.


E porque  a voz e o talento de James “Blood” Ulmer nos surpreende e nos agrada,  ei-lo numa actuação na Jazzhouse, Copenhagen, em 5 de Fevereiro de 2016 , no Vinterjazz Festival 2016.



"Are You Glad to Be in America?",   numa original interpretação de James Blood Ulmer. Esta canção foi lançada no Álbum de  James Ulmer de 1980, com o mesmo nome.

sábado, 23 de abril de 2016

A celebração do Livro

 
  Il n'existe qu'une façon de lire  et elle consiste à flaner  dans les bibliothèques  ou les librairies, à prendre les livres qui vous attirent et ne lire que ceux-là, à les abandonner quand ils vous ennuient, à sauter les passages  qui traînent et à ne jamais rien lire parce qu'on s'y sent obligé, ou parce que c'est la mode.
                 Doris Lessing,  Carnet d'or
    Prefiro ser lido muitas vezes  por um só do que uma só vez por muitos.
                 Paul Váléry, Cahiers

Os livros são a obra-prima que todos nós temos como sendo nossa. Comprámo-la onde queremos para a termos onde desejarmos. Não interessa se quem a produziu  tenha os direitos de autor. A consciência de obra-prima passa pelo conhecimento da nossa incapacidade para a produzir. Sabemos que só alguém com talento a soube criar para nós. Pertence-nos desde o momento que a descobrimos, que a adquirimos.   É nossa. E como obra-prima é objecto da nossa atenção , do nosso deleite, da nossa constante e infinda devoção. Com ela abrimos horizontes, por ela  descobrimos  que somos universais: o mundo  entra-nos pela porta  sem que tenhamos de sair de qualquer lugar.  E quando o amor se descobre no artista que a produziu , os laços  agregam-se em ritos. Lemos e relemos todas as suas obras. Um lugar  é-lhe atribuído junto àqueles que já lá moram:  o retábulo dos eleitos.
Catalogamos os nossos livros por autores. Alguém disse que levamos uma vida inteira a ler para descobrir os livros ou os autores que releremos na velhice. E daí que o acto de leitura tem um ritual que se vai construindo . Descobrimos o primeiro livro  para ler o segundo , comprar o terceiro e nunca mais deixar de os querer. Vamos lendo por prazer , por necessidade, por estudo , por consulta até que passamos  a ler apenas o que nos enleva, o que nos toca. A liberdade de rejeitar torna-se nossa. Lemos o que lemos porque a soma de tanta leitura nos dá o direito de leitor, daquele que  escolhe os escritores  da sua vida.
23 de Abril, Dia Internacional do Livro. Ano de 2016 ,dia dos 400 anos da morte de Shakespeare e o dia seguinte àquele que regista também a morte do grande Miguel Cervantes. Dois nomes que se eternizarão no retábulo da memória literária dos tempos.  
Todos os lemos. Descobrimo-los, talvez, em idades diferentes,  por razões  diferenciadas  ou apenas  pelo prazer da leitura. O gosto pelos livros é o motor que acelera a descoberta. 
Neste últimos dias , tenho tido como companheiros três livros que releio. Gosto de desenvolver várias leituras, em simultâneo. Uma delas materializa-se no livro de um autor eleito, Eugénio Lisboa, o mais brilhante crítico literário destes séculos. Transcrevo um excerto que revela quão importante é ler para descobrir o que nos seduz  e o que nos desencanta. 
"4.4.97, S. Pedro – Ontem, o dia todo em Aveiro. De manhã, conversa com uma aluna, que vai fazer, com outro professor, uma tese de mestrado sobre a decantada identidade portuguesa. Tinha-lhe falado, en passant, nos contos de Domingos Monteiro. E em outros livros dele. Ligado ao Pascoaes e um pouco à gente da filosofia portuguesa, talvez aí encontrasse material a trabalhar. Não que eu sintonize com a chamada “filosofia portuguesa”, que nem sei bem o que seja. Mas a ordem de preocupações deles talvez ajude – nem que à rebours – a identificar um ou outro ingrediente.
(...)
Dei uma aula sobre Jorge de Sena. Olhava para as alunas, um pouco perplexo, e perguntava-me: “Que significa tudo isto, para elas? De que estou a falar-lhes? Haverá, entre mim e elas, algum denominador comum?” Tentei saber como reagiram ao que lhes lera. Viajo sem mapas e sem sinais. Há, entre elas e mim, um fosso de 40 anos, dos quais, 17 vividos em Inglaterra e os outros em Moçambique, Paris, Estocolmo e África do Sul. Falaremos a mesma língua? Saio das aulas sempre um pouco perplexo.
À tarde, o simpático Luis Serrano, geólogo e óptimo poeta, vem buscar-me para me mostrar a Fundação Cultural, instalada num magnífico edifício, no centro de Aveiro. Depois fomos tomar um refresco e cavaquear. Soube-nos bem. Isto de estar num Café ou numa esplanada a conversar com amigos também vai acabando. As pessoas não têm tempo. Andam todas a gerir quatro empregos, a estafar-se, a chegar ao momento da verdade, com a surpresa brutal de que tudo acabou depressa e não se chegou a saber what was it all about.
Falámos de Joyce. Ele encetou, a medo, uma hipótese, vaga, de reserva… Disse-lhe, brutal e provocante: “É um chato.” Riu, aliviado. É sempre a reacção que obtenho, de interlocutores, quando assim lanceto a bolha. O Joyce será realmente apreciado? Quantas pessoas têm a coragem e a limpidez de dizerem o que de facto pensam das chamadas obras-primas imortais? Valéry a Gide: “Conheces algum livro mais enfadonho do que a Ilíada?” Gide, sobressaltado, mas conciliador: “Conheço: La Chanson de Roland”. [Ou Montherlant, comentando o livro Les Pages Immortelles de Goethe: “Se isto são as páginas imortais de Goethe, o que não serão as páginas que não são imortais…” O importante não é estarmos de acordo com estes “atrevimentos” – o importante é haver quem seja capaz deles, - Escrito em Fevereiro de 2015]."
Eugénio Lisboa, in " Acta Est Fabula. Memórias- V- Regresso a Portugal:1995-2015),Editora Omnia Opera, pp.128,129

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Como será o amanhã.?

Celebra-se a Terra  num dia imposto pelo calendário. Nasceu no dia 22 de Abril de 1970, nos USA, sob  proposta do Senado.  Reconhecido pela ONU,  em 2009 , ficou instituído como o  Dia Internacional da Terra.
Nos diversos domínios do Saber e da Arte, muitas vozes se têm levantado para louvar ou alertar para este planeta em que vivemos. 
Eis  a voz do poeta brasileiro Manoel de Andrade,num belo e actual poema, o cântico da grande Dulce Pontes e dois registos videográficos sobre o futuro e o estado do planeta.



DISTOPIA
Como será  o amanhã...!?
um itinerário sem destino?
um calendário de incertezas?
O que restará dessa anêmica biosfera...!?
do fluxo agonizante das nascentes...
das bandeiras hasteadas pela vida!?
Dia a dia e esse palco inquietante...!
esse escasso oxigênio,
essa delgada água,
esse termômetro assustador.
Ano a ano e a ampulheta  do  caos escorrendo lentamente  nossas  vidas...!
nessa paisagem devorada,
nesse carbono letal,
nesse mapa pontilhado pela morte.

(…)

Como será  teu  amanhã!?  
um teclado de emoções?
um híbrido palpitar?
Com que apetite digitarás as tuas ânsias
degustando essa cultura cibernética?
digerido  pelos circuitos  virtuais,
pelo marketing neurológico das partículas,
por esse “chip” instalado no teu cérebro,
processando uma ordem dogmática: conecte, “navegue”, consuma...
Com que senha  abrirás teu coração?
haverá um ícone para a solidariedade?
um link  para a compaixão?
Qual a fronteira entre tu mesmo e a máquina?
quem são essas moléculas engenhosas?
esses átomos amestrados
a devassar teu íntimo recanto de criatura?

Como será nosso amanhã!?
Uma bússola sem norte?
um insulto à liberdade?
com que farol iluminaremos nosso rumo
acuados pela ousadia da violência
e sitiados pelo próprio livre-arbítrio?
Aqui e acolá as estreitas fronteiras do pânico...
esse semáforo que não abre...
esse alguém que te observa...
esse olhar engatilhado...
uma abordagem indigesta
e o cronômetro do pavor computando teu destino.
No roteiro dantesco da sobrevivência
reabres dia a dia tua agenda...,
é o teu cotidiano decomposto,
essa incerteza diária de chegar...
essas balas que assobiam no perímetro dos teus passos.

Como será nosso amanhã!?
Um mundo sem idioma?
um cântaro de fel?
Falo de um território  dominado por estranhas hierarquias,
por facções tatuadas com os signos da maldade,
pelos  mercenários do vício
enriquecidos  pelos lucros homicidas.
Falo de uma legião de vítimas,
de uma síndrome cruel e invencível,
de criaturas e sonhos em farrapos.
Falo dos “juízes” da vida e da morte,
de sentenças e chacinas,
de um comando sinistro e impassível.
Falo da cidadania encurralada pelas milícias do ódio
e de um mercado inexorável do extermínio.

Como será o amanhã!?
um shopping de entretenimentos?
uma oficina de vaidades?
um imenso bazar de grifes e mesmices?               
Quem sabe...,  uma alameda  “fashion”...
onde desfilam as esbeltas silhuetas da ilusão,
estampadas, dia a dia, nas páginas coloridas do glamour. 
Ou, talvez, um teatro de incautos “marionetes”...
encenando  a sensualidade e  o acinte
na  pública ribalta do hedonismo!

Como será o amanhã?
Um santuário virtual do “encanto”?
uma cidadela da luxúria?
Falo da explícita pedagogia do erotismo,
 seus ícones, seus balcões,
suas vitrines pontocom.
De suas telas insinuantes,
seu varejo literário,
e sua indigesta ditadura musical.
Falo da sodomia on-line,
de devassadas alcovas eletrônicas
e desse promíscuo ritual de fantasias.

E pergunto, perplexo, pela pátria do amanhã...
e falo das paisagens sedutoras do poder,
desse cheiro putrefato que chega do planalto.
Falo de uma oficial  voracidade...
dessa doméstica fauna de homens públicos,
...essa nossa biodiversidade insustentável.
Falo da ascensão vertiginosa da esperteza,
dessa inumerável galeria de “celebridades”,
trajadas com as fisiológicas legendas do poder.
Falo do escândalo nosso de cada dia,
da nação envergonhada por quadrilhas palacianas,
por dossiês sonegados e pelos crimes arquivados.
Falo dessa insultante presunção de inocência,
dessa triste balada da alma humana,
dançando pela culpa absolvida
e gargalhando com escárnio da justiça.

O que sobrará enfim desse perene banquete...!?
para onde caminha essa infantil humanidade...
embriagada pelo licor das ilusões
e indiferente à dor dos desgraçados?
Quem sabe reste um naco qualquer de fraternidade
para ser digerido com um gole de esperança...
um “cardápio” para os filhos da miséria,
uma migalha perene...
para saciar essa fome que janta, na calçada,  o nosso lixo remexido.

E eis porque falo de uma alarmante geografia de lágrimas,
de uma favela planetária
de uma legião mundial de parias.
Falo de criaturas açoitadas pela vida
de um mundo que  “não dorme e que não come”
que “não lê e não escreve”...
Como saciar tanta  sede de justiça?
como conter essa fome parindo seus herdeiros?

Ó Senhores...é tão triste ironizar a esperança
mas diante dessa insólita passarela
nós nos perguntamos: o que se espera dessa sórdida assembléia ???
Um projeto político para a solidariedade humana?
ou  emendas com  intenções inconfessáveis,
retórica ambiental e ongs humanitárias?
E o que se pode esperar  desse desfile de beldades...
novas “tendências” para a fraternidade
um  “estilo de vida” para os excluídos,
finos “tecidos” para cobrir o pudor dos maltrapilhos!!!???
Ou, talvez, “padrões” mais “chiques” de caridade,
 “estampas” coloridas para a compaixão,
melhores “ângulos” para fotografar a beneficência!!!???
Mas afinal quem ousa desfilar nessa excêntrica avenida!?
quem  são essas almas extraviadas,
essas tribos debochadas?
Quem comanda essas falanges
essa alcatéia  de homo sapiens,
de corruptos e deslumbrados,
de perversos e pervertidos?
Que poder é esse...
esse paradigma sombrio que invadiu nossa decência?

Que poder é esse?
potencial, subliminar, imprevisível...
É uma corporação, uma egrégora ???
Falo de um império global com seus invisíveis tentáculos,
seu discurso sedutor,
suas catilinárias e suas litanias,
suas metáforas globalizadas,
seus descarados silogismos e seus slogans mentirosos.
Quem  são eles?
nossos irmãos bastardos,
nossa herança cármica,
nosso “presente de grego” ?
Digo que é um sinistro “cavalo de Tróia”
há meio século parindo suas satânicas criaturas
invadindo  todos os caminhos
disputando os espaços da ilusão
conquistando todas as trincheiras
mascarando a liberdade
ironizando os códigos da verdade
silenciando a voz do coração.
São os negociantes do poder
os mercadores do sexo
as falanges do vício.
São os falsos profetas,
os tribunos celestes da intolerância
franqueados pela simonia
inaugurando um templo em cada esquina.
São os senhores do mundo e do impasse
manchados com as cores da discórdia.
São os fabricantes da bomba,
os que gargalham sobre o sangue dos caídos.
Seus nomes  se escrevem em todos os idiomas,
se escrevem  sob o signo de uma águia poderosa,
com os mortos e os órfãos das nações vencidas.
Se escrevem  com as siglas planetárias da ganância
e com os filhos planetários da miséria

Senhores...para onde caminhamos...?
em que galeria serão expostas nossas ‘artes’...?
o que revelarão amanhã nossos retratos de Dorian Gray”,
pincelados com as cores da cobiça e da luxúria.
Falo da alma humana adoecida por chagas milenares
e pergunto como surgirá nossa face no espelho do amanhã...
maquiada com as sombras do orgulho e do egoísmo
e tatuada com tantos desatinos.
Falo dessa estesia emasculada,
dessa irreverente cadência de vaidades.
Falo dessa máscara hilariante da “felicidade”,  
de criaturas tombadas do abismo da ilusão.

 
E diante de “triunfo de tantas nulidades”
Todos afinal nos perguntamos: como  descrever o enredo do futuro???
Será um show permanente de aparências
ou uma trincheira de gangues e facções?
Será uma ilha oficial da fantasia
ou o gueto planetário da miséria?
Será ainda um vale semeado de ambição
ou já um planeta inteiramente saqueado?

(Ah! esse mundo  sitiado...
essa convivência pari passu  com a maldade...
esse estresse à flor da pele...
esse desencanto, essa impotência...
esse presente sem sentido do amanhã...)

O que restará do estado de direito
das Bastilhas e dos muros derrubados
das bandeiras hasteadas sobre o sangue dos tiranos
o que restará do Sermão da Montanha e  das chagas do Calvário
da revolução de outubro e do sonho de Ernesto
quem manterá acesa a memória luminosa dos heróis
quem defenderá a trincheira da decência
quem ousará dizer não
o que acontecerá com os últimos rebeldes

Senhores..eu vos peço perdão...
por este lirismo sombrio,
pelos meus versos perplexos,
por esse indigesto cantar.
                                                                         
Senhor, nós te pedimos perdão...
por tantas balas perdidas,
por tantas pérolas aos porcos
e pelos dossiês da vergonha.
Perdão Senhor
pela pedofilia online
e pela inocência ultrajada.
Perdão pelas cartilhas da vaidade
e as dietas assassinas.
Nós te pedimos perdão
por esses ninhos queimando,
por essa relva secando,
por essa floresta no chão.
Perdão, Senhor, por esses cardumes boiando
pelos rios asfixiados
por essas águas morrendo
Perdão pelas  chaminés borbulhantes,
por essas folhas exaustas,
pela agonia do ozônio,
por essa Gaia ferida.
(...)
                              Curitiba, 12 de Dezembro de 2006
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, 2007, Brasil

A Terra e o Futuro :


"Mudanças climáticas põem em risco o futuro do planeta e também o de nossos filhos e netos. Essas mudanças no clima nos últimos 200 anos afectaram a saúde da Terra. O efeito das mudanças climáticas é o aquecimento global.
Investigações apontam que a actual crise climática dá à impressão de estar ocorrendo lentamente, mas a verdade é que está acontecendo muito depressa e se está convertendo numa verdadeira emergência planetária. Segundo o Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), a temperatura média do planeta subirá 4 graus até o fim do século, se mantiver o crescimento dos níveis de poluição da atmosfera.
A Terra tem febre.
Calor, secas, incêndios, tempestades, vulcões, inundações e correntes frias com neve atingem simultaneamente diferentes áreas de um mesmo continente. O clima mudou completamente tanto que nem dá mais para perceber as quatro estações do ano.
Os cientistas atestam que a mão humana está por detrás das actuais alterações climáticas. A era industrial agravou a doença da Terra, pois a concentração de dióxido de carbono na atmosfera está aumentando cada vez mais. Este gás é um dos principais responsáveis pela criação do efeito estufa que está provocando essas alterações climáticas na Terra.
Com isso, várias catástrofes atmosféricas vêm acontecendo constantemente e vitimando terrivelmente a humanidade nos últimos tempos. Houve tsunami, inundações, furacões, terremotos, ciclones... Desmatamentos assassinos, agressões às espécies, ameaçando-as de extinção, poluição da água e do ar, tudo isso esteriliza a fecundidade da terra.
A terra está doente e agoniza e nós não estamos sabendo cuidar dela!"