quinta-feira, 3 de março de 2016

O meu país

As amoras

O meu país sabe a amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade, in "O Outro Nome da Terra", Fundação Eugénio de Andrade

No meu país

As pequenas cidades intensas
 Onde o tempo não é dissolvido mas dura
 E cada instante ressoa nas paredes da esquina
 E o rosto loiro de Laura aflora na janela desencontrada
 E o apaixonado de testa obstinada como a de um toiro
 Em vão a procura onde ela nunca está
— É aqui que ao passarmos a nossa garganta se aperta
 Enquanto um homem alto e magro
 Baixando a direito o chapéu largo e escuro
 De cima a baixo se descobre
 Ao transpor o limiar sagrado da casa

Sophia de Mello Breyner Andresen, in “O Búzio de Cós e outros poemas”, 1997,Editorial Caminho
Pátria

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra   rio   vento   casa
Pranto   dia   canto   alento
Espaço   raiz   e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto',Ed. Caminho
O Portugal Futuro

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

Ruy Belo, in 'Homem de Palavra[s]', Assírio&Alvim

L'Eté au  Portugal

Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam?


Emigram-se uns para as Europas
e voltam como eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrimas de gozo e sarapicos.

Nas serras nuas, nos baldios campos,
nas artes e mesteres que se esvaziam,
resta um relento de lampeiros lampos
espanejando as caudas com que se ataviam.

Que espera se espera em Portugal?
Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios como o bem e o mal
- mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?

Chatins engravatados, peleguentas fúfias
passam de trombas de automóvel caro.
Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços
ou sem pernas - e como cães sem faro
os pilha poetas se versejam trúfias.

Velhos e novos, moribundos mortos,
se arrastam todos para o nada nulo,
Uns cantam, outros choram, mas tão tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais simples pulo.

Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.
(Na tarde que anoitece o entardecer nos prende)

Lisboa, Agosto 1971

Jorge de Sena, Versos e alguma prosa de Jorge de Sena, prefácio e selecção de textos de Eugénio Lisboa, co-ed. Arcádia e Moraes, pp.116-117
O Douro preso em barragens

Verde tão verde e as árvores no fundo.
 No fundo os rápidos que de água se quebravam
 subindo à sirga em de rabelos barcos.
 Mais baixas as alturas se reflectem calmas
 de rochas casas e arvoredo fundo.

Verde tão verde o rio se não corre
 de lago é preso e um barco noutra margem
 parado se contempla a esbelta proa arqueada
 sobre o telhado inverso do solar antigo.
 Só brisa matinal se encrespa de água e morre.

Verde tão verde era de espuma e rocas
 polindo-se tranquilas no fiar das águas.
 Vinham descendo os montes em socalcos que
 lambidos se inseriam no passar dos barcos.
 No fundo como nuvens se enverdecem rocas.

Verde tão verde era de rijas águas
 de espumas e de pedras e de alteadas margens.
 Tão verde ora de névoa surda
 em que de gritos não barqueiros remam.
 Que rio se era escuro e já de verdes águas.

Parado e sempiterno e velho de águas rio
não passas repassando as águas de outro tempo,
verde tão verde na manhã parada.
  (Douro, 30/8/1971)

Jorge de Sena, in “ Exorcismos”, Círculo de Poesia, Moraes Editores
Pátria

Soube a definição na minha infância
Mas o tempo apagou
As  linhas que no mapa da memória
A mestra palmatória
Desenhou.

Hoje
Sei apenas  gostar
Duma  nesga de terra
Debruada  de  mar.

Miguel Torga, in " Portugal (1950) -Antologia Poética" , Círculo de Leitores
sobre a minha cidade

sobre a minha cidade, falei-te ontem mostrei-te
as esquinas do tempo, a imagem  de fachadas
que ainda conheci, de outras que
eu próprio ignorava; sobre

a minha cidade e suas pedras, seus espaços
de árvores graves;  e o que foi arrasado,
ou está a desfazer-se; as manchas do po presente, a
poluição dos homens; e o que foi

violentamente arrancado por negócios sucessivos,
erros, brutalidades: o que era e o que foi
o que é dentro de mim o seu obscuro,
imaginário se: costumes e conflitos,

maneiras de falar, a gente
e a confusão das ruas, as casas do barredo;
sobre a minha cidade achei que tu
tiveste gratidão, a viste.

que percorreste as pontes que da minha 
cidade a ti me trazem, entre
gaivotas alastrando e músicas diferentes,
e foste nascer nela.

Vasco Graça Moura, in " os rostos comunicantes - poesia reunida-vol. 1", Quetzal Editores, p.283
O Reino Lusitano

Eis aqui, quase cume  da cabeça
De Europa , toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba  e o mar começa,
E onde Febo  repousa no Oceano.
Este quis o Céu  justo  que floreça
Nas armas  contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá, na ardente
África, estar quieto o não consente.

Esta é a ditosa Pátria minha amada,
A qual se o Céu me dá  que eu sem perigo
Torne , com esta  empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela, antam, os íncolas primeiro.

Luís de Camões, in " Os Lusíadas- Canto III ",Emp. Literária Fluminense, LDA.

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