terça-feira, 29 de março de 2016

Era uma vez...

Os Três Reinos
"Era uma vez um rei – é claro, que tinha um reino: o reino do rei. Além disso, o rei tinha dois filhos gémeos. A mãe-rainha morrera para os dar à luz. Importa saber que esse era o reino do rei, e que os dois filhos do rei eram gémeos. Desde já, porém, convém acrescentar que o rei tinha ainda um filho adoptivo, ou coisa que o valha. Também a mãe deste morrera, já viúva, deixando fama de um pouco ligeira de costumes (não demais) e muito formosa. O marido fora um dos cortesãos favoritos do rei. Toda a gente, pois, achou bonito que o pequeno se criasse no palácio, brincando familiarmente com os príncipes, e recebendo educação quase igual à sua. Toda a gente, sim, achou bonito! quase toda a gente. Mas, associando vários factos, muito à boca pequena murmuravam os maledicentes que não era só bonito como compreensível, natural... Adiante se esclarecerá este caso. Evidentemente se torna que, dos dois príncipes gémeos, um havia de ser considerado mais velho, – coisa que pertencia aos físicos determinar – ou, como quer que fosse, com mais direitos. Claro que seria esse o herdeiro do trono da coroa, do ceptro, do título de Majestade.
O tempo foi passando, e os dois irmãos crescendo. Vieram os melhores sábios indígenas, e até estrangeiros, para os educar. Do mesmo passo educavam o filho adoptivo, que, como é natural, também ia crescendo.
Ao herdeiro do trono eram dispensados cuidados especiais, porque reinar não é coisa fácil; nem de fácil ensinamento ou aprendizagem. Felizmente, o jovem príncipe revelava aptidões de excepção. Todos os Mestres contavam ao rei a sua paixão pelos livros e a sofreguidão da sua curiosidade. Mesmo nas horas de recreio o príncipe se recreava folheando os cartapácios de pergaminho; e a sua cabeça loira dobrava sobre os alfarrábios – tão amorosamente como sobre um seio. Quando tal não sucedia, caía o príncipe numa espécie de alheamento, ou parecia mergulhar em abstracções, meditações, cogitações talvez não muito próprias dos seus verdes anos. Todos os Mestres? Mas não: O Mestre de esgrima, o de equitação e o de dança eram mais reservados nos seus louvores.
Por esse tempo, o velho rei decidiu firmar um tratado de amizade com o rei do reino vizinho. Longos anos se haviam guerreado. Agora, estavam ambos velhos. A proximidade da sepultura restringe as ambições e faz embotar os impulsos bélicos. Nesse tratado ficou assente que a princesa real do tal reino vizinho casaria com o sábio príncipe. Ora a princesa noiva era feia, triste, cega dum olho, e até já falara em se meter freira. Todos lamentaram a sorte do jovem príncipe – assim sacrificado a razões de Estado. O próprio pai algoz o lamentava. Por fim, todos sorriram maliciosamente. Na corte da noiva feia, triste, cega dum olho e mística, havia donzelas e donas muito belas, de que falavam com entusiasmo os embaixadores. Homem experimentado, El-Rei sorriu também e deixou de lamentar o filho.
Só o jovem príncipe parecia indiferente ao que se passava: Era como se nada daquilo houvesse de ser com ele. A sua cabeça loira pendia sobre os alfarrábios – tão amorosamente como sobre um seio. Quando se levantava dos alfarrábios, era para olhar não as estrelas da terra, mas as que cintilam demasiado longe.
Finalmente, deu em fechar-se na sua câmara. Dizia-se que andava a escrever um grande livro. E saía de lá com olhos de cego, um ar quase de estátua, um sorriso alheio, feliz, idiota.
A pedido do rei, um dos seus Mestres ousou, um dia, aconselhá-lo: Sua Alteza não devia abusar do seu grande amor pelos livros. Decerto muito ensinam os livros; mas o trato dos homens também; também as experiências pessoais e vivas.
Aliás, quase perigava a saúde de Sua Alteza nessa vida sem ar que Sua Alteza levava. Convinha que Sua Alteza se prendesse mais aos costumes da corte, aos jogos e folguedos próprios da sua idade, aos acontecimentos do reino que havia de governar. Nisso tomasse exemplo em seu irmão; até naquele que, não sendo seu irmão, mais ou menos fora educado como tal, e tão ladino se mostrava na curiosidade por tudo que à sua volta decorria... O moço príncipe ouvia-o como se o não ouvisse, fitando-o, sem o ver, com os seus esplêndidos olhos de cego.
Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, estava-se à mesa, era na rica sala de jantar. O Mestre caiu na imprudência de uma breve alusão ao que de manhã, dissera ao seu educando. Então, o príncipe herdeiro levantou-se e respondeu: «O meu reino não é deste mundo.» Lera isto, num livro que fora de sua mãe. Todos ficaram primeiro atónitos, depois constrangidos. O rei nem repetiu os seus pratos favoritos. Tentou-se falar doutras coisas. E, no dia seguinte, o jovem príncipe herdeiro apareceu morto. Envenenara-se com flores perigosas que havia na estufa.
Estava nu, morria virgem, e tinha sobre o peito o livro que terminara essa noite. Mais tarde se viu que era um grande livro. Claro que houve gritos, espantos, choros, exéquias magníficas, exposição de grandes veludos negros e galões de oiro. A noiva do morto sempre se meteu monja. «Era o que tinha a fazer!» comentou o seu ex-futuro cunhado «Com aquele
olho vesgo...» E começou ele, o irmão gémeo do morto, a ser preparado para o difícil ofício de reinar. Não, não empalidecia este sobre alfarrábios de pergaminho!
Aos catorze anos, já comprometera uma nobre donzela da corte. As formosas donas um pouco ligeiras de costumes (não demais), só as não comprometia por já estarem comprometidas: pelo menos, com os respectivos maridos; pelo menos.
Morrer virgem – não era com este. Como para a sua pessoa se haviam transferido, agora, aquelas particulares atenções que sempre se fixam sobre o herdeiro dum trono, até certos pormenores da sua infância eram agora recordados, repetidos com sorridente complacência: Que, por exemplo, fugia para os jardins nos dias de chuva; e lá davam com ele descalço, patinhando nas poças, ou estendido na relva, a apanhar a água do céu. Ou que se misturava com os rapazes da rua para ir aos ninhos, ou jogar à pedrada. Agora, perdia-se por caçadas. Bailava tão bem que nem parecia um príncipe. Conversava familiarmente com os pajens, os
criados, os vilões. Certas noites, escapulia-se disfarçado para ir correr aventuras.
Às vezes, fazia-se jardineiro: podava roseiras cantando canções da arraia miúda (nem sempre muito decentes) e até chegava a cavar com uma sachola! Dava esmola aos mendigos por sua própria mão. Duma vez, trouxera às costas um miserável que achara desfalecido no caminho. Era moreno, ágil, tinha bons músculos, um esplêndido apetite. E ninguém como ele para divertir as damas com histórias, anedotas, intrigas, mentiras, fantasias, e beliscões à socapa.
Os seus Mestres resolveram limá-lo, podá-lo como fazia ele às roseiras.
Compenetrado do seu papel de futuro rei, deixar-se-ia fazer um rei como se quer. Todos diziam: «Desta vez, temos homem!» Pelo contraste, um certo dó humilhante recaía sobre a memória do irmão suicida...
O príncipe começou a apurar a sua educação intelectual; e, felizmente, o novo herdeiro revelava também aptidões de excepção. Todos os Mestres contavam ao rei a sua paixão pelas coisas e a viveza dos seus pontos de vista. Todos os Mestres?
Mas não: O Mestre de línguas mortas, o de matemáticas e o de protocolo eram mais reservados nos seus louvores.
Por esse tempo, o velho rei decidiu fazer jurar seu filho herdeiro do trono. Estava cansado, e sentia que a vida se lhe ia apagando. Mas, durante as cerimónias, o príncipe herdeiro teve excentricidades, liberdades insólitas, saídas de humor que chegaram a provocar o riso na ilustre assembleia, – pouco dignas da solenidade do acto. De modo que, a pedido do rei, um dos seus Mestres se atreveu a aconselhá-lo: Sua Alteza não devia abusar da originalidade de seus espíritos.
Atitudes há do entendimento, como formas de conduta, porventura apreciáveis em um qualquer; mas nem sempre convenientes num príncipe real. Urgia que Sua Alteza renunciasse a dadas particularidades do seu temperamento, em atenção ao alto papel que fora Deus servido distribuir-lhe... O príncipe ouvia-o sem nada dizer. A expressão do seu rosto é que era ambígua, como respirando uma ironia que nenhum dos seus traços acusava. Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, estava-se à mesa, era na rica sala de jantar. O mesmo Mestre falava; embora subtil e indirectamente, continuava a morigerar seu ilustre aluno. Então, o príncipe real
ergueu-se e respondeu: «O meu reino é deste mundo». Não lera isto em parte alguma. Todos ficaram sem compreender, e pouco à vontade. Tratou-se de coisas várias, com uma naturalidade fingida. O rei ergueu-se pouco depois. E, no dia seguinte, o jovem príncipe herdeiro tinha desaparecido do palácio. Em vão se fizeram as mais diligentes e minuciosas inculcas por todo o reino. Correu mais tarde que fugira numa carroça de saltimbancos nómadas." (continua)
José Régio, Há mais Mundos, 1962, (Grande Prémio de Novelística da SPE em 1963), Portugália Editora, 1963

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