quarta-feira, 30 de março de 2016

Era uma vez (cont.)

Os Três Reinos ( cont.)
"Claro que houve consternação geral. O rei caiu de cama; já todos temiam que não resistisse a este novo grande golpe. Ele que, durante tantos anos, habilissimamente retivera nas mãos a governação do seu reino tão policiado, tão submetido, tão dirigido, agora se via sem herdeiro natural que lhe sucedesse, e lhe continuasse a obra. Dois filhos legítimos tivera: gémeos e tão diferentes, senhores de extraordinários dons. Ambos como que o haviam renegado, renunciando à herança para que os preparara. E agora já no seu reino tão disciplinado fermentavam pequenos focos de anarquia, ainda pequenos mas que poderiam alastrar. Já as massas pressentiam a senilidade do pulso que tão energicamente as havia refreado.
Neste desconsolo, perdidos os seus dois filhos legítimos, ainda foi o tal adoptivo que principiou a fazer-lhe companhia. Já quase o não podia dispensar o rei. Também o moço parecia não se poder afastar do seu leito. Sempre que lhe era permitido falar, El-Rei conversava com ele. Coisa interessante!, – nessas práticas achava grande prazer. Como se disse, recebera o moço instrução idêntica à dos príncipes, tendo sido educados quase no mesmo pé. Em certos assuntos, porém, que muito eram da especialidade do rei, mostrava uma curiosidade que nenhum dos príncipes mostrara. Na história política do reino, por exemplo; na sua geografia humana; nas suas actuais relações com o estrangeiro; na discussão das suas Leis, etc. E a inteligência que no tratamento destas questões manifestava – áridas, como geralmente são, para jovens – por atrevimento que seja afirmá-lo, não ficava atrás da que noutras haviam manifestado os príncipes. Ora, desaparecidos os dois herdeiros naturais do trono, chegado El-Rei ao último quartel da vida, vários pretendentes ao mesmo disputavam entre si seus direitos. Já, no palácio, fervia a intriga na sombra. Já os pretendentes e partidários rivais se falavam com o sorriso amarelo nos lábios, o verdete do ódio nos corações.
Um ponto único havia, em que todos se entendiam: a malquerença àquele moço que tão visivelmente seduzia o velho rei. Pelos meios de que dispunha cada um, cada um procurava desacreditar no espírito do velho rei o seu jovem amigo. Decerto não passava isto despercebido do jovem. E o resultado foi não ser este, mas eles, que eram pessoas da família real, quem o rei afastou da sua câmara, até do seu paço. Por maquinações do jovem? Sustentavam os escorraçados que sim! e espumavam de raiva e juravam tremendas vinganças futuras, – atribuindo àquele moço uma tão diabólica intuição na intriga que suplantava toda e qualquer experiência.
A ser isto verdade, poderiam quaisquer manejos do moço passar incompreendidos do seu protector? O diabo sabe muito porque é velho; e a debilidade física do rei não se manifestava mentalmente. Dado o que depois se passou, poder-se-á admitir que «a velha raposa astuta» (como depois, lhe chamavam os seus parentes escorraçados) até apreciara o engenho com que o moço ia tentando exautorar, junto do seu real amigo, aqueles grandes senhores que, por seu turno, o procuravam desprestigiar a ele.
Ora o que depois se passou, foi o seguinte: Uma tarde, ao fim da tarde, estavam reunidos na câmara real os importantes da corte. O rei para aí os convocara, pois há algum tempo dava grandes sinais de melhoras. («Ainda não é desta!» lamentavam os seus parentes tornados seus inimigos). E diante de todos, que estavam sumamente intrigados, se dirigiu o rei ao seu jovem protegido, dizendo:
«Tive dois filhos legítimos, que um após outro sonhei me sucedessem. O reino dum não era deste mundo. O do outro era-o por demais. Tu, qual é o teu reino?»
Um silêncio pânico se fez, pois todos achavam estranhíssima esta cena. Talvez o moço hesitasse um momento; não mais que um momento. Logo respondeu: «Que reino pode ser o meu senão o vosso?» Então o rei chamou-o a si, apertou a sua cabeça contra o peito. Como já não podia fugir à sensibilidade dos velhos, teve de fazer um grande esforço para não soluçar. Mais tarde declarou que sempre esse fora, secretamente, o mais amado dos seus filhos, embora filho natural; que esse ia ser perfilhado, jurado herdeiro do trono; e que sem demora ele, rei, resignaria no filho o poder real, pois não só estava cansado, como temia ver-se constrangido a fazer por força o que desde já faria de vontade...
Isto disse ele sorrindo. Olhava complacentemente o filho. Impossível, porém destrinçar até que ponto no seu espírito de velha raposa astuta, esse conhecedor dos homens brincava ou não. E assim se disse, assim se fez. De nada valeram as conspirações dos pretendentes despeitados. Com a satisfação de ter um digno sucessor para o seu reino, o velho rei restabeleceu-se, e ainda pôde viver alguns anos. Morreu de muito avançada idade. Laus Deo!"
José Régio, Há mais Mundos, 1962, (Grande Prémio de Novelística da SPE em 1963), Portugália Editora, 1963
José Régio

Sem comentários:

Enviar um comentário