quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Não era nenhum sonho


“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar.Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.
Que me aconteceu ? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado,desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia! Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado — ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? — cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara.                       
Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por cima há ainda o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos comboios, com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos. Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se lentamente sobre as costas, — mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contacto, sentiu-se percorrido por um arrepio gelado. Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo, pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o pequeno almoço. Eu que tentasse sequer fazer isso com o meu patrão: era logo despedido. De qualquer maneira, era, capaz de ser bom para mim — quem sabe? Se não tivesse de me aguentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e dizer-lhe exactamente o que penso dele. Havia de cair ao comprido em cima da secretária! Também é uma doença permanente dos caixeiros-viajantes.
Libertar-se da colcha era tarefa bastante fácil: bastava-lhe inchar um pouco o corpo e deixá-la cair por si. Mas o movimento seguinte era complicado, especialmente devido à sua invulgar largura. Precisaria de braços e mãos para erguer-se; em seu lugar, tinha apenas as inúmeras perninhas, que não cessavam de agitar-se em todas as direcções e que de modo nenhum conseguia controlar. Quando tentou dobrar uma delas, foi a primeira a esticar-se, e, ao conseguir finalmente que fizesse o que ele queria, todas as outras pernas abanavam selvaticamente, numa incómoda e intensa agitação. Mas de que serve ficar na cama assim sem fazer nada, perguntou Gregório a si próprio.
Pensou que talvez conseguisse sair da cama deslocando em primeiro lugar a parte inferior do corpo, mas esta, que não tinha visto ainda e da qual não podia ter uma ideia nítida, revelou-se difícil de mover, tão lentamente se deslocava; quando, finalmente, quase enfurecido de contrariedade, reuniu todas as forças e deu um temerário impulso, tinha calculado mal a direcção e embateu pesadamente na extremidade inferior da cama, revelando-lhe a dor aguda que sentiu ser provavelmente aquela, de momento, a parte mais sensível do corpo. Visto isso, tentou extrair primeiro a parte superior, deslizando cuidadosamente a cabeça para a borda da cama. Descobriu ser fácil e, apesar da sua largura e volume, o corpo acabou por acompanhar lentamente o movimento da cabeça. Ao conseguir, por fim, mover a cabeça até à borda da cama, sentiu-se demasiado assustado para prosseguir o avanço, dado que, no fim de contas caso se deixasse cair naquela posição, só um milagre o salvaria de magoar a cabeça. E, custasse o que custasse, não podia perder os sentidos nesta altura, precisamente nesta altura; era preferível ficar na cama.
Quando, após repetir os mesmos esforços, ficou novamente deitado na posição primitiva, suspirando, e viu as pequenas pernas a entrechocarem-se mais violentamente que nunca, se possível, não divisando processo de introduzir qualquer ordem naquela arbitrária confusão, repetiu a si próprio que era impossível ficar na cama e que o mais sensato era arriscar tudo pela menor esperança de libertar-se dela. Ao mesmo tempo, não se esquecia de ir recordando a si mesmo que era muito melhor a reflexão fria, o mais fria possível, do que qualquer resolução desesperada.
Nessas alturas, tentava focar a vista tão distintamente quanto podia na janela, mas, infelizmente, a perspectiva da neblina matinal, que ocultava mesmo o outro lado da rua estreita, pouco alívio e coragem lhe trazia. Sete horas, disse, de si para si, quando o despertador voltou a bater, sete horas, e um nevoeiro tão denso, por momentos, deixou-se ficar quieto, respirando suavemente, como se porventura esperasse que um repouso tão completo devolvesse todas as coisas à sua situação real e vulgar.
A seguir, disse a si mesmo: Antes de baterem as sete e um quarto, tenho que estar fora desta cama. De qualquer maneira, a essa hora já terá vindo alguém do escritório perguntar por mim, visto que abre antes das sete horas. E pôs-se a balouçar todo o corpo ao mesmo tempo, num ritmo regular, no intuito de rebocá-lo para fora da cama. Caso se desequilibrasse naquela posição, podia proteger a cabeça de qualquer pancada erguendo-a num ângulo agudo ao cair. O dorso parecia ser duro e não era provável que se ressentisse de uma queda no tapete. A sua preocupação era o barulho da queda, que não poderia evitar, o qual, provavelmente, causaria ansiedade, ou mesmo terror, do outro lado e em todas as portas. Mesmo assim, devia correr o risco.

Quando estava quase fora da cama — o novo processo era mais um jogo que um esforço, dado que apenas precisava rebolar, balouçando-se para um lado e para outro — , veio-lhe à ideia como seria fácil se conseguisse ajuda. Duas pessoas fortes — pensou no pai e na criada — seriam largamente suficientes; não teriam mais que meter-lhe os braços por baixo do dorso convexo, levantá-lo para fora da cama, curvarem-se com o fardo e em seguida ter a paciência de o colocar direito no chão, onde era de esperar que as pernas encontrassem então a função própria. Bem, à parte o facto de todas as portas estarem fechadas à chave, deveria mesmo pedir auxílio? A despeito da sua infelicidade não podia deixar de sorrir ante a simples ideia de tentar.
Tinha chegado tão longe que mal podia manter o equilíbrio quando se balouçava com força e em breve teria de encher-se de coragem para a decisão final, visto que daí a cinco minutos seriam sete e um quarto... quando soou a campainha da porta. É alguém do escritório, disse, com os seus botões, e ficou quase rígido, ao mesmo tempo que as pequenas pernas sé limitavam a agitar-se ainda mais depressa. Por instantes, tudo ficou silencioso. Não vão abrir a porta, disse Gregório, de si para si, agarrando-se a qualquer esperança irracional. A seguir, a criada foi à porta, como de costume, com o seu andar pesado e abriu-a. Gregório apenas precisou ouvir o primeiro bom dia do visitante para imediatamente saber quem era: o chefe de escritório em pessoa. Que sina, estar condenado a trabalhar numa firma em que a menor omissão dava imediatamente asa à maior das suspeitas! Seria que todos os empregados em bloco não passavam de malandros, que não havia entre eles um único homem devotado e leal que, tendo uma manhã perdido uma hora de trabalho na firma ou coisa parecida, fosse tão atormentado pela consciência que perdesse a cabeça e ficasse realmente incapaz de levantar-se da cama? Não teria bastado mandar um aprendiz perguntar-se era realmente necessária qualquer pergunta — , teria que vir o próprio chefe de escritório, dando assim a conhecer a toda a família, uma família inocente, que esta circunstância suspeita não podia ser investigada por ninguém menos versado nos negócios que ele próprio? E, mais pela agitação provocada por tais reflexões do que por qualquer desejo, Gregório rebolou com toda a força para fora da cama. Houve um baque sonoro, mas não propriamente um estrondo. A queda foi, até certo ponto, amortecida pelo tapete; também o dorso era menos duro do que ele pensava, de modo que foi apenas um baque surdo, nem por isso muito alarmante. Simplesmente, não tinha erguido a cabeça com cuidado suficiente e batera com ela; virou-a e esfregou-a no tapete, de dor e irritação.
— Alguma coisa caiu ali dentro — disse o chefe de escritório na sala contígua do lado esquerdo. Gregório tentou supor no seu íntimo que um dia poderia acontecer ao chefe de escritório qualquer coisa como a que hoje lhe acontecera a ele; ninguém podia negar que era possível. Como em brusca resposta a esta suposição, o chefe de escritório deu alguns passos firmes na sala ao lado, fazendo ranger as botas de couro envernizado. Do quarto da direita, a irmã segredava para informá-lo da situação:
— Gregório, está aqui o chefe de escritório.
Eu sei, murmurou Gregório, de si para si; mas não ousou erguer a voz o suficiente para a irmã o ouvir.
— Gregório — disse então o pai, do quarto à esquerda —, está aqui o chefe de escritório e quer saber porque é que não apanhou o primeiro comboio. Não sabemos o que dizer. Além disso, ele quer falar contigo pessoalmente. Abre essa porta, faz-me o favor. Com certeza não vai reparar na desarrumação do quarto.
— Bom dia, Senhor Samsa, saudava agora amistosamente o chefe de escritório.
— Ele não está bem — disse a mãe ao visitante, ao mesmo tempo que o pai falava ainda através da porta, ele não está bem, senhor, pode acreditar. Se assim não fosse, ele alguma vez ia perder um comboio! O rapaz não pensa senão no emprego.
Quase me zango com a mania que ele tem de nunca sair à noite; há oito dias que está em casa e não houve uma única noite que não ficasse em casa. Senta-se ali à mesa, muito sossegado, a ler o jornal ou a consultar horários de comboios. O único divertimento dele é talhar madeira. Passou duas ou três noites a cortar uma moldurazinha de madeira; o senhor ficaria admirado se visse como ela é bonita. Está pendurada no quarto dele. Num instante vai vê-la, assim que o Gregório abrir a porta. Devo dizer que estou muito satisfeita por o senhor ter vindo. Sozinhos, nunca conseguiríamos que ele abrisse a porta; é tão teimoso... E tenho a certeza de que ele não está bem, embora ele não o reconhecesse esta manhã.
— Já vou — disse Gregório, lenta e cuidadosamente, não se mexendo um centímetro, com receio de perder uma só palavra da conversa.
— Não imagino qualquer outra explicação, minha senhora — disse o chefe de escritório. — Espero que não seja nada de grave. Embora, por outro lado, deva dizer que nós, homens de negócios, feliz ou infelizmente, temos muitas vezes de ignorar, pura e simplesmente, qualquer ligeira indisposição, visto que é preciso olhar pelo negócio.
— Bem, o chefe de escritório pode entrar? — perguntou impacientemente o pai de Gregório, tornando a bater à porta.
— Não — disse Gregório. Na sala da esquerda seguiu-se um doloroso silêncio a esta recusa, enquanto no compartimento da direita a irmã começava a soluçar. Por que não se juntava a irmã aos outros? Provavelmente tinha-se levantado da cama há pouco tempo e ainda nem começara a vestir-se. Bem, por que chorava ela? Por ele não se levantar e não abrir a porta ao chefe de escritório, por ele estar em perigo de perder o emprego e porque o patrão havia de começar outra vez atrás dos pais para eles pagarem as velhas dívidas? Eram, evidentemente, coisas com as quais, nesse instante, ninguém tinha de preocupar-se. Gregório estava ainda em casa e nem por sombras pensava abandonar a família. É certo que, de momento, estava deitado no tapete e ninguém conhecedor da sua situação poderia seriamente esperar que abrisse a porta ao chefe de escritório. Mas, por tão pequena falta de cortesia, que poderia ser plausivelmente explicada mais tarde, Gregório não iria por certo ser despedido sem mais nem quê. E parecia-lhe que seria muito mais sensato deixarem-no em paz por agora do que atormentá-lo com lágrimas e súplicas. É claro que a incerteza e a desorientação deles desculpava aquele comportamento.
— Senhor Samsa — clamou então o chefe de escritório, em voz mais alta -, que se passa consigo? Para aí barricado no quarto, a responder só por sins e nãos, a dar uma série de preocupações desnecessárias aos seus pais e — diga-se de passagem- a negligenciar as suas obrigações profissionais de uma maneira incrível!
Estou a falar em nome dos seus pais e do seu patrão e peço-lhe muito a sério uma explicação precisa e imediata. O senhor espanta-me, espanta-me. Julgava que o senhor era uma pessoa sossegada, em quem se podia ter confiança, e de repente parece apostado em fazer uma cena vergonhosa. Realmente, o patrão sugeriu-me esta manhã uma explicação possível para o seu desaparecimento — relacionada com o dinheiro dos pagamentos que recentemente lhe foi confiado — mas eu quase dei a minha solene palavra de honra de que não podia ser isso.
Agora, que vejo como o senhor é terrivelmente obstinado, não tenho o menor desejo de tomar a sua defesa. E a sua posição na firma não é assim tão inexpugnável. Vim com a intenção de dizer-lhe isto em particular, mas, visto que o senhor está a tomar tão desnecessariamente o meu tempo, não vejo razão para que os seus pais não ouçam igualmente. Desde há algum tempo que o seu trabalho deixa muito a desejar; esta época do ano não é ideal para uma subida do negócio, claro, admitamos isso, mas, uma época do ano para não fazer negócio absolutamente nenhum, essa não existe, Senhor Samsa, não pode existir.
— Mas, senhor — gritou Gregório, fora de si e, na sua agitação, esquecendo todo o resto, vou abrir a porta agora mesmo. Tive uma ligeira indisposição, um ataque de tonturas, que não me permitiu levantar-me. Ainda estou na cama. Mas me sinto bem outra vez. Estou a levantar-me agora. Dê-me só mais um minuto ou dois! Não estou, realmente, tão bem como pensava. Mas estou bem, palavra. Como uma coisa destas pode repentinamente deitar uma pessoa abaixo. Ainda ontem à noite estava perfeitamente, os meus pais que o digam; ou, antes, de facto, tive um leve pressentimento. Deve ter mostrado indícios disso. Por que não o comuniquei eu ao escritório! Mas uma pessoa pensa sempre que uma indisposição há de passar sem ficar em casa. Olha, senhor, poupe os meus pais! Tudo aquilo por que me repreende não tem qualquer fundamento; nunca ninguém me disse uma palavra sobre isso. Talvez o senhor não tenha visto as últimas encomendas que mandei. De qualquer maneira, ainda posso apanhar o comboio  das oito; estou muito melhor depois deste descanso de algumas horas. Não se prenda por mim, senhor; daqui a pouco vou para o escritório e hei de estar suficientemente bom para o dizer ao patrão e apresentar-lhe desculpas!
Ao mesmo tempo que tudo isto lhe saía tão desordenadamente de jacto que Gregório mal sabia o que estava a dizer, havia chegado facilmente à cómoda, talvez devido à prática que tinha tido na cama, e tentava agora erguer-se em pé, socorrendo-se dela. Tencionava, efectivamente, abrir a porta, mostrar-se realmente e falar com o chefe de escritório; estava ansioso por saber, depois de todas as insistências, o que diriam os outros ao vê-lo à sua frente. Se ficassem horrorizados, a responsabilidade já não era dele e podia ficar quieto. Mas, se o aceitassem calmamente, também não teria razão para preocupar-se, e podia realmente chegar à estação a tempo de apanhar o trem das oito, se andasse depressa. A princípio escorregou algumas vezes pela superfície envernizada da cómoda, mas, aos poucos, com uma última elevação, pôs-se de pé; embora o atormentassem, deixou de ligar importância às dores na parte inferior do corpo. Depois deixou-se cair contra as costas de uma cadeira próxima e agarrou-se às suas bordas com as pequenas pernas. Isto devolveu-lhe o controlo sobre si mesmo e parou de falar, porque agora podia prestar atenção ao que o chefe de escritório estava a dizer.
— Perceberam uma única palavra? — perguntava o chefe de escritório. —
Com certeza não está a tentar fazer de nós parvos?
— Oh, meu Deus — exclamou a mãe, lavada em lágrimas —, talvez ele esteja terrivelmente doente e estejamos a atormentá-lo. Grete! Grete! — chamou a seguir.
— Sim, mãe? — respondeu a irmã do outro lado. Chamavam uma pela outra através do quarto de Gregório.
— Tens de ir imediatamente chamar o médico. o Gregório está doente. Vai chamar o médico, depressa. Ouviste como ele estava a falar?
— Aquilo não era voz humana — disse o chefe de escritório, numa voz perceptivelmente baixa ao lado da estridência da mãe.
— Ana! Ana! — chamava o pai, através da parede para a cozinha, batendo as palmas, chama imediatamente um serralheiro!
E as meninas corriam pelo corredor, com um silvo de saias — como podia a irmã ter-se vestido tão depressa?-, e abriam a porta da rua de par em par. Não se ouviu o som da porta a ser fechada a seguir; tinham-na deixado, evidentemente, aberta, como se faz em casas onde aconteceu uma grande desgraça.
Mas Gregório estava agora muito mais calmo. As palavras que pronunciava já não eram inteligíveis, aparentemente, embora a ele lhe parecessem distintas, mais distintas mesmo que antes, talvez porque o ouvido se tivesse acostumado ao som delas. Fosse como fosse, as pessoas julgavam agora que ele estava mal e estavam prontas a ajudá-lo. A positiva certeza com que estas primeiras medidas tinham sido tomadas confortou-o. Sentia-se uma vez mais impelido para o círculo humano e confiava em grandes e notáveis resultados, quer do médico, quer do serralheiro, sem, na verdade, conseguir fazer uma distinção clara entre eles. No intuito de tornar a voz tão clara quanto possível para a conversa que estava agora iminente, tossiu um pouco, o mais silenciosamente que pôde, claro, uma vez que também o ruído podia não soar como o da tosse humana, tanto quanto podia imaginar. Entrementes, na sala contígua havia completo silêncio. Talvez os pais estivessem sentados à mesa com o chefe de escritório, a segredar, ou talvez se encontrassem todos encostados à porta, à escuta.
Lentamente, Gregório empurrou a cadeira em direcção à porta, após o que a largou, agarrou-se à porta para se amparar as plantas das extremidades das pequenas pernas eram levemente pegajosas - e descansou, apoiado contra ela por um momento, depois destes esforços. A seguir empenhou-se em rodar a chave na fechadura, utilizando a boca. Infelizmente, parecia que não possuía quaisquer dentes — com que havia de segurar a chave?-, mas, por outro lado, as mandíbulas eram indubitavelmente fortes; com a sua ajuda, conseguiu pôr a chave em movimento, sem prestar atenção ao facto de estar certamente a danificá-las em qualquer zona, visto que lhe saía da boca um fluído castanho, que escorria pela chave e pingava para o chão.
— Ouçam só — disse o chefe de escritório na sala contígua — esta dando volta na chave.Isto foi um grande encorajamento para Gregório; mas todos deviam tê-lo animado com gritos de encorajamento, o pai e a mãe também: Não, Gregório, deviam todos ter gritado, - Continua, agarra-te bem a essa chave! E, na crença de que estavam todos a seguir atentamente os seus esforços, cerrou imprudentemente as mandíbulas na chave com todas as forças de que dispunha. À medida que a rotação da chave progredia, ele torneava a fechadura, segurando-se agora só com a boca, empurrando a chave, ou puxando-a para baixo com todo o peso do corpo, consoante era necessário. o estalido mais sonoro da fechadura, finalmente a ceder, apressou literalmente Gregório. Com um fundo suspiro de alívio, disse, de si para si:
 Afinal, não precisei do serralheiro, e encostou a cabeça ao puxador, para abrir completamente a porta. Como tinha de puxar a porta para si, manteve-se oculto, mesmo quando a porta ficou escancarada. Teve de deslizar lentamente para contornar a portada mais próxima da porta dupla, manobra que lhe exigiu grande cuidado, não fosse cair em cheio de costas, mesmo ali no limiar. Estava ainda empenhado nesta operação, sem ter tempo para observar qualquer outra coisa, quando ouviu o chefe de escritório soltar um agudo Oh!, que mais parecia um rugido do vento; foi então que o viu, de pé junto da porta, com uma mão a tremer tapando a boca aberta e recuando, como se impelido por qualquer súbita força invisível. A mãe, que apesar da presença do chefe de escritório tinha o cabelo ainda em desalinho, espetado em todas as direcções, começou por retorcer as mãos e olhar para o pai, após o que deu dois passos em direcção a Gregório e tombou no chão, num torvelinho de saias, o rosto escondido no peito. O pai cerrou os punhos com um ar cruel, como se quisesse obrigar Gregório a voltar para o quarto com um murro; depois, olhou perplexo em tomo da sala de estar, cobriu os olhos com as mãos e desatou a chorar, o peito vigoroso sacudido por soluços.”Franz Kafka, in " A Metamorfose", Livros do Brasil

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