quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Memórias

 "Quando considero a minha vida fico apavorado ao achá-la informe. A existência dos heróis, aquela que nos contam, é simples: vai direita ao fim como uma seta. E a maioria dos homens gosta de resumir a sua vida num preceito, por vezes uma jactância ou numa lamentação, quase sempre numa recriminação; a sua memória fabrica-lhes complacentemente uma existência explicável e clara. A minha vida tem contornos menos firmes. Como sucede frequentemente, é talvez o que não fui que a define com maior justeza: bom soldado, mas não um grande homem de guerra; amador de arte, mas não aquele artista que Nero julgou ser, ao morrer; capaz de crimes, mas não carregado de crimes."
Marguerite Yourcenar, in Memórias de Adriano, trad. de Maria Lamas, Ulisseia, p.25

"Não sei quem foi que disse que um diário equivale a um lento suicídio. Eu não estou a escrever um diário. Estou a passar para o papel recordações de tempos idos, ocasionalmente misturadas com impressões que vão surgindo. Sinto-me, no entanto, morrer aos poucos nestas linhas. O querer dizer o que se passa em nós, analisarmo-nos por escrito, ainda que a sós connosco, é devastador. Mas talvez eu já esteja mesmo morta. Quem fala é aquela parte de fora de mim sempre atenta à de dentro e a explorá-la, um atroz, um falso eu que tive de inventar para não desistir."
Maria Ondina Braga, Estátua de Sal, ed. refundida e ampliada, Círculo dos Leitores, p.81

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