quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Nos rastros da utopia

Ai América,
Que longo caminhar!
Eu sou como uma ave que passa
Apenas um cantor errante,
Mas se na minha voz há uma sinfonia  delirante
É para golpear-te , América,
Para entoar teu grito emudecido.
                                                      Quito, Agosto de 1970
                       Manoel de Andrade, Canção de Amor à América”, in
                      “Poemas para a Liberdade”, Escrituras, Editora, Brasil,2009

Manoel de Andrade no lançamento de " Nos rastros da Utopia",
  Março de 2014,  Curitiba, Brasil
Manoel de Andrade, poeta brasileiro, foi obrigado a sair do Brasil, no final da década de sessenta, época violenta promovida e sustentada  por uma ignóbil Ditadura. Percorreu a América latina levando apenas a juventude e os ideais libertários de um mundo melhor. Era a utopia que guiava o seu caminho e, como poeta, fez das palavras a arma  para agregar outras vozes que clamavam por justiça, liberdade e dignidade. Vivia-se uma época de profunda tirania em que a revolta era reprimida pela opressão e pelo desprezo dos direitos fundamentais de qualquer ser humano. 
Era o tempo de reerguer um novo pacto com o futuro. O tempo de acreditar que só pela rebeldia resiliente , pela insubmissão alargada se abririam as portas ao novo homem. E desse caminhar, Manoel de Andrade dá-nos um longo, rico e comovente registo que é o seu livro de Memórias, publicado em 2014, no Brasil,  Nos Rastros da Utopia, uma memória crítica da América Latina, nos anos 70
Extraímos, desta singular  obra, o excelente capítulo que faz um retrato vivo e lúcido dos ideais que se propalavam nos anos sessenta.
Lima - Peru 
XIV
ADEUS, ANOS SESSENTA...
QUE VENTURA TER SIDO JOVEM NESSE TEMPO!
Nos rastros da utopia
Por Manoel de Andrade
                                                          Se as coisas são inatingíveis… ora!
                                                          Não é motivo para não querê-las…
                                                          Que tristes os caminhos se não fora
                                                          A mágica presença das estrelas!
                                                                                 Mário Quintana 
           "Eram os últimos dias de 1969 e, nas conversas em Lima, discutíamos a herança que recebêramos dos “anos rebeldes”. A década de 60 se iniciara com um exército murando a liberdade de Berlím, mas terminara com três astronautas abrindo os caminhos do universo. Naqueles anos o mundo comovera-se com a mensagem de paz e de amor, na imagem sacrificada de Martin Luther King, e conhecera o real significado da resistência, na figura irretocável de Ho Chi Minh. A revolta de Nanterre mobilizara os estudantes do mundo inteiro e, ao longo do continente, aportávamos em 1970 na crista de uma poderosa onda libertária, cujas espumas espraiavam o exemplo de Che Guevara.
Vivíamos num tempo sem liberalismo e sem globalização e Cuba surgia como uma alternativa socialista e referência da luta revolucionária. O mundo era uma alquimia de ideias e a América Latina seu melhor laboratório. A nova história, no contexto continental, era a de uma só nação, de um só povo, latino e “indo-americano”  -- na expressão de Mariátegui. A esperança era uma bandeira hasteada no coração de todos os que ousavam sonhar com uma sociedade justa e fraterna, fossem eles um guerrilheiro, um intelectual engajado ou integrasse uma vanguarda estudantil. Nossa ancestralidade cultural – manchada pela violência colonial e por tantos mártires na memória sangrenta de cinco séculos – era redescoberta como uma fonte trazendo novas águas para interpretar a história. Nossos sonhos navegavam no misterioso veleiro do tempo, enfunado pelos ventos da fé revolucionária, carregado de hinos e canções libertárias, levando a mãe-terra e as sementes para os deserdados, carregado com as emoções e o encanto da solidariedade e rumando à sociedade que sonhávamos.
          Nós, os poetas, expressávamo-nos pelos líricos rastros dessa ansiada utopia, cantando as primícias de um novo mundo e pressentindo as luzes daquele imenso amanhecer. Transitávamos na rota das estrelas, em busca de um porto no horizonte, em busca de um homem novo, de uma terra prometida a ser entrevista nos primeiros clarões da madrugada. Havia uma perseverante certeza no amanhã e muitos caíram lutando com essa crença tatuada na alma, embora os sobreviventes nunca tenham chegado a contemplar essa alvorada.

           Nos anos 60, ser jovem significava estar comprometido com uma fé, com uma causa social e, naqueles passos da história, era um desconforto, perante o grupo, não ter um engajamento político e, pior ainda, ser de “direita”. Na juventude daqueles anos, ser um “reacionário” era um estigma. Essa era a palavra com que nós, da “esquerda”, desfazíamos ideologicamente os adversários da “direita” e até os dogmáticos do Partidão,[1] por quem éramos chamados de revisionistas. Por outro lado, falava-se de um “Poder Jovem”. Mas que “poder jovem” era aquele, maquiado com a credibilidade das filosofias orientais se esse poder não estivesse comprometido com o significado social da liberdade e da justiça? A ideologia marxista não nos permitia confundir os ideais inconsequentes da contracultura com o ideário daqueles que estavam dispostos a dar a vida pela construção de uma nova sociedade. Era como se houvesse, na América Latina, duas Mecas para a juventude: uma em Berkeley e outra em Cuba.

Salvador Allende         
Se a palavra “esquerda”, perante as benesses do poder, foi perdendo sua transparência ideológica, é imprescindível não se perder o significado histórico dessa dicotomia, já que na sua origem, durante a Revolução Francesa, o clero e a nobreza ficavam à direita do rei e os representantes do povo a sua esquerda. Passados duzentos e vinte anos, todos sabemos qual o lado que continua defendendo as causas sociais. Os princípios são intocáveis mas não as ideias. É razoável, portanto, que possamos resignificá-las redefinindo as cores de nossa antiga bandeira, assim como reconhecer os equívocos e os defeitos congénitos da propria  “esquerda”.
           Os anos 60, ricos pela geração de novas teses sociais, por filosofias que apontavam para o progresso das relações humanas, não mostrariam, no gosto amargo dos frutos, o doce sabor semeado pela esperança. Os grandes sonhos políticos foram desmobilizados por interesses ideológicos equivocados, pelo oportunismo eleitoral e pela sedução do poder. Os sonhos alimentados pela contracultura, inicialmente legitimados pelas postulações contra os males do capitalismo, perderam-se nas perigosas síndromes da ilusão propiciada pelas drogas, pelos desencantos da sexualidade e pela posterior dependência de tecnologias alienantes. Sonhos e esperanças  acabaram desaguando neste inquietante “mar de sargaços” em que se transformou o mundo, onde navegam os corsários da ambição e da crueldade.
Curitiba  antiga        
Mas também havia jovens que não vivenciaram essa sublime  emoção de indignar-se com as injustiças. Naqueles anos, numa outra linha de reações,  uma elitizada coluna de jovens marchava contra  tudo pelo que lutávamos. Conheci essas sinistras figuras nas ruas de Curitiba. Porta-vozes da alta hierarquia da Igreja, desfilavam altaneiras, com seus paramentos medievais, nos primeiros anos da ditadura no Brasil, defendendo o regime militar e os interesses conservadores da oligarquia que representavam com os estandartes da “Tradição, Família e Propriedade”. Vi também seus parceiros, no Chile, liderados por Maximiano Griffin Ríos, em 1969, durante o governo de Eduardo Frei, portando, nos panos ao vento com o emblema da “Fiducia”, o ódio social, o ressentimento contra um cristianismo que abraçava as causas populares e, sobretudo, plantando as sementes da conspiração que derrubaria, com outros aliados sanguinários, o governo legítimo de Salvador Allende.
          
A partir da década de 70 a ascensão do capitalismo financeiro, sob o disfarce de globalização, começou a estender as suas redes e a ganhar, com armas invencíveis, essa nova e imensa guerra mundial, avançando com sua voracidade, desterrando os valores humanos, gerando multidões de excluídos,  triturando nossas utopias, transformando o planeta num supermercado e descaracterizando a própria  cultura com atraentes modelos de um consumismo supérfluo e descartável.
            Ainda que haja, no Brasil, muitos jovens “conectados”, preocupados com a ética, com as fronteiras alarmantes da corrupção, com a redenção ambiental e com belos projetos comunitários, toda aquela geração foi vítima da nova ordem social imposta ao longo dos vinte e um anos de ditadura militar, sendo induzida a “educar-se” pela cartilha da Educação Moral e Cívica, focada na obediência, passividade, no anti-comunismo e num patriotismo doentio. Vítimas de todo um processo subliminar de moldagem comportamental, os jovens que abdicaram da consciência crítica foram transformados em meros consumidores.  Formam parte da juventude apressada dos nossos dias, descomprometida com os problemas sociais, imediatista, avessos à leitura,  ou derrotada pelo vício. Essa é a face trágica de um segmento da juventude contemporânea: jovens como meras marionetes de um mercado global de ilusões, aculturados pelas novas midias, homogeneizados desde os primeiros anos para consumir, abdicando quase sempre da análise dos fatos e do estágio promissor da cidadania.

    
Os precursores involuntários da pós-modernidade – leia-se Nietzsche e Heidegger – e os seus mais ilustres ideólogos, na filosofia e na arte, aliaram-se ao trabalho posterior de demolição comandado pela globalização. Reagindo aos paradigmas orgulhosos e dogmáticos da ciência mecanicista do século XIX, os intelectuais niilistas apostaram na reação generalizada da descrença nos valores humanos, desconstruindo o significado da verdade, da beleza e da transcendência do humanismo na tradição ocidental; anunciando uma liberdade sem a noção do dever; desrespeitando os arquétipos da religiosidade; desqualificando a história; invertendo a estética da arte ao despojá-la da estesia e do encanto (e se há algum mérito nos exageros da arte moderna é o de retratar o perfil catastrófico do mundo contemporâneo); retirando a melodia da música,  proclamando a irreverência  e ironizando os ideais e o significado da utopia. Sobre esse termo, tão desfigurado em nossos dias, certa vez estudantes colombianos fizeram ao celebrado cineasta argentino Fernando Birri, a seguinte pergunta: Para que serve a utopia? Ele respondeu que a utopia é como a linha do horizonte, está sempre a nossa frente e por isso nunca podemos alcançá-la. Se andamos dez, vinte, cem passos, ela sempre estará adiante de nós. Se a buscamos, ela se afasta. Para que serve a utopia? perguntou ele, respondendo: Para fazer-nos caminhar…
Manoel de Andrade , in  “ Nos Rastros da Utopia, uma memória crítica da América Latina, nos anos 70”, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, 2014



[1] Apodo que tinha o Partido Comunista de Brasil, na época era considerado o maior partido político de esquerda do país.

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