sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Matéria, alma do nada

MATÉRIA DE ESTRELAS

Porque é tudo para sempre, mesmo a efémera morte,
encontrar-nos-emos eternamente
e nunca mais nos veremos.
O impossível volta a ser impossível. Para sempre.

Impossível é cada manhã aberta,
um deus sonha consigo através de nós.
Às vezes quase posso tocá-lo, ao deus,
surpreendê-lo no seu sono, também ele real e efémero.

os mortos ouvem a tua música sólida
pela primeira vez, como uma respiração de estrelas.
A sua intranquilidade transforma-se em si mesma, música.

Manuel António Pina, in «Todas as Palavras - poesia reunida (1974-2011)», Ed. Assírio & Alvim.
Os Mortos

Os mortos mais do que os vivos, estão vivos.
Surgem, fortes, intensos, aparecem,
depurados e cheios de motivos.
Visitam-nos e acham que merecem
Todo o vigor da nossa atenção.
A morte deu-lhes, pensam, nova vida:
vê-se neles uma concentração
de virtudes - de vida reflectida.
Os mortos ensinam-nos a viver:
dão um valor novo ao que nos rodeia,
dão ao quotidiano acontecer
um brilho vivo que nos incendeia.
Os mortos acendem, em nós, a chama
de uma nova vida. Julgo que pedem
que olhemos fundo a luz que se derrama.
Exigem. Clamam. Os mortos não cedem.

Eugénio Lisboain “ Matéria Intensa” ,Baden: Peregrinação, 1985
INICIAL

O mar azul e branco e as luzidias
Pedras — O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in «Dual», prefácio de Eduardo Lourenço, Ed.Assírio & Alvim
GÉNESE E DESENVOLVIMENTO DO POEMA

Vozes vizinhas vindas da infância
através do sotaque de quem fala aqui ao lado
o sol inexorável sobre as águas
pressentimentos vindos com o vento
a velha fortaleza a vista da baía
a maré cheia a tarde as nuvens o azul
memória disto tudo noutro verão noutro lugar
e pelo meu olhar visivelmente vitimado
tudo possível pela mesa e pela esferográfica
pelo papel desculpa ó minha amiga pelo bar
a solidão assegurada pela multidão
a luz a hora as férias o domingo
o cruzeiro de pedra o largo o automóvel
tudo isto não importa importam só
as mínimas e únicas palavras que me ficam disto tudo
e tudo isto fixam: «tempo suspenso» ou «mar imóvel»
ou «sinto-me bem» ou — que sei eu? — «alguém morreu»

Ruy Belo, in «Todos os Poemas». 4.ª edição, Ed.Assírio & Alvim, 2014.
até cada objecto se encher de luz e ser apanhado
por todos os lados hábeis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta,
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa

Herberto Helder, in «Servidões», Ed. Assírio &Alvim, 2013
Por trás da escuridão estão os rostos que me abandonaram.
vi a sua pele trabalhada por relâmpagos. Agora
já só vejo, no instante amarelo,
o resplendor das suas pálpebras longínquas.
Antonio Gamoneda,in «Oração Fria — antologia»,  (organização e tradução de João Moita), Ed. Assírio Alvim, 2013.

Sem comentários:

Enviar um comentário