sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O sono da razão

O sono da razão
por Eugénio Lisboa
"António Sérgio foi uma das figuras mais marcantes e influentes, na cultura portuguesa da primeira metade do século XX – e mesmo um pouco para além. Racionalista assumido, nem por isso deixou de mostrar-se possuidor de uma sensibilidade fina e arguta, na sondagem magistral que fez a vários textos da nossa literatura. Como incessantemente sugeriu Régio, não há nada como uma empenhada aliança entre sensibilidade e inteligência para se auscultar com alguma profundidade o sentido e a música dos textos. A respeito da singularidade de Sérgio, como crítico literário, conviria sempre reler o magistral estudo que lhe dedicou David Mourão-Ferreira.
Num singular livrinho da autoria de Carlos Leone – O essencial sobre António Sérgio -, dizem-se algumas coisas que merecem comentário. Abonando-se em Eduardo Lourenço e, em particular, num texto deste sobre o “mito da razão”, em Sérgio, Leone, depois de considerar o racionalismo do autor dos Ensaios como “estigma intelectual”, proclama, com ar contente e oracular, que “a diminuição de estatuto intelectual e simbólico que a imputação de uma natureza mítica causou ao racionalismo de Sérgio foi imediata, profunda e duradoura.” Há aqui uma embrulhada épica entre “mito” e a (alegadamente) consequente “diminuição de estatuto”, que deixo a Lourenço o cuidado de desembrulhar. Se, para tanto, se sentir inclinado (ninguém tem culpa do uso que dão às suas asserções).
Vem, em todo o caso, a talhe de foice, sublinhar-se aqui o efeito, que frequentemente se não procurou, produzido, no nosso país, por afirmações “fortes” oriundas de figurões de grande proa: o que demonstra, sobretudo, o estado de menoridade mental em que ainda vivem as nossas chamadas “elites” intelectuais. Bastou o manifesto anti-Dantas do gavroche Almada Negreiros, para que nunca mais ninguém tocasse, nem com pinças, nos textos do autor de A Ceia dos Cardeais – tal era o medo de ficarem “estigmatizados” (para utilizar o saboroso vocábulo de Leone). E, no entanto, as páginas notáveis que nos deixou Júlio Dantas, no teatro, na crónica, são mais do que muitas. Bastou, também, que Sérgio escrevesse o ensaio intitulado “O caprichismo romântico na obra do Sr. Junqueiro”, no qual, aliás, não punha em questão o excelso poeta que havia em Junqueiro, para que nunca mais ninguém se aproximasse do autor de Pátria, mesmo de mãos enluvadas e máscara no nariz (a começar e a acabar na nossa elite universitária que ignora Junqueiro e dele foge como do último dos pestiferados – há, além disso, a famosa “retórica” junqueiriana, de que se afastam, horrorizados, por via de mandatos que obrigam os poetas a depenarem-se, se querem ser levados a sério...) Bastou que Lourenço inculcasse na presença (em Régio...) uma suspeita de contra-revolução, para que as hostes se tresmalhassem, em pânico desabalado, a que se vão associando luminares estrangeiros, sempre obedientemente atentos aos ventos que por aqui sopram. É esta falta de coragem e autonomia dos que se diria representarem as cúpulas da nossa elite cultural – que me parece um sintoma assustador de menoridade mental. Os “palpites” oriundos de certas paragens mais ou menos “estabelecidas” e repetidamente “exaltadas” tornam-se rapidamente dogmas, com sanções severas previstas (ou que se imaginam previstas.) para os heréticos.
Leone associa-se aos muitos que, de Rousseau para cá, com especial ênfase nos promotores do irracionalismo de Bergson, se empenham no assalto à razão, a favor do “instinto” e/ou da “intuição”. Nas acutilantes palavras cunhadas por Russell, o intelecto seria o “mau rapaz” da fita, e o instinto o “bom rapaz”. Sérgio seria, neste contexto, a encarnação do “mau rapaz”.
Vistas as coisas assim, mandado para o esgoto o lixo racionalista do autor de Cartesianismo ideal e cartesianismo real, o autor de O Essencial não se detém em pormenores irrelevantes e precipita-se, com alegria e brio – e, lá para o final do seu livrinho, num capítulo preciosamente intitulado “Posteridade e recepção da obra”, conclui assim o seu voo de pássaro sobre o canon sergiano: “...o esquecimento de António Sérgio é devido ao fim do seu mundo político, feito pela palavra, pelo discurso, pela razão.”
Lemos e pasmamos. Mas, para que não fiquem dúvidas, Leone apressa-se a esclarecer o sentido que se oculta nestas palavras tremendas: “Na sociedade cuja comunicação depende e decorre essencialmente por imagens, António Sérgio e o sergianismo dificilmente fazem, sequer, sentido.” É, convenhamos, de arromba (e nem é preciso determo-nos na gramática claudicante)! É que não se salva ninguém: pelo dreno abaixo vão Sérgio, Platão, Aristóteles, Descartes, Bacon, Kant, Hume, Schopenhauer, Wittgenstein, Russell, Heidegger – tudo rapazes que recorreram à palavra, ao discurso, às vezes, à razão e, desafortunadamente, se esqueceram das imagens. Mas pior, mais grave, muito mais grave – não se salva, sequer, o próprio Leone que, muito embora não recorra por aí além à razão, faz uso exclusivo da palavra e do discurso, mandando as imagens às ortigas!
Eu sei que tem estado em moda cuspir-se desenfastiadamente na razão mas, até para isso, conviria um pouco mais de subtileza – para disfarçar. Caso contrário pode desastradamente acontecer o que prediz o famigerado capricho de Goya: o sono da razão gera monstros. O grande Pascal, com todas as suas angústias e abismos, não podia ser mais claro, quando avisava: “A razão ordena-nos muito mais imperiosamente do que um mestre; desobedecer a este faz-nos infelizes; desobedecer àquela faz-nos tolos.”
Lourenço, com a subtileza ondoyante et diverse que o caracteriza, ensaiou, em grande estilo, destronar Sérgio: exercício sedutor, quando o percurso o é, e que só tem efeitos destrutivos duradouros, quando os destinatários dele se demitem da mínima autonomia mental atribuível a um verdadeiro “clerc”. Leone, sem subtileza nenhuma, traduziu para calão grosseiro o rendilhado fino do autor de  O Labirinto da Saudade com os pasmosos resultados que pus em gostoso itálico. É que a razão, tal como a democracia, é realmente uma coisa pífia – com a reserva importante de que ainda se não encontrou coisa melhor." Eugénio Lisboa, em  ensaio publicado no JL

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