quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Cândida Ventura morreu de madrugada

Cândida Ventura ,em 30 de Junho de 2011, aos 93 anos
Cândida  Ventura faleceu, hoje, de madrugada, no Hospital de Portimão. Tinha 97 anos.  
Mulher de grande personalidade  soube dar significado à palavra Liberdade. Lutou nas fileiras do PCP, quando a utopia de um mundo melhor se definia sob a bandeira vermelha e Portugal estava capturado pelas  redes da Ditadura. Deixou uma vida para viver uma outra na clandestinidade. Foi a primeira mulher a ascender à direcção do Partido Comunista. Foi denunciada, presa e torturada.  Resistiu  à indignidade, à injúria e à  força vil dos algozes que a acorrentaram . 
Partiu para o exílio e durante longos anos desenvolveu grande actividade, na antiga Checoslováquia.  
Cândida Ventura regressou a Portugal, após a revolução de Abril. Conheci-a e tive o prazer de partilhar momentos de intensa  e rica rememoração de um longo passado que narrou em livro. Registei alguns desses momentos.
Cândida Ventura era uma mulher viva, culta e inteligente. Gostava da vida . Celebrava-a todos os dias.  
Era um prazer  escutá-la, ao longo dos anos em que participou na Tertúlia que realizávamos mensalmente. Estar entre amigos e discernir sobre o mundo era-lhe  de singular importância. 
Partiu , hoje, uma amiga. Uma amiga que leva uma história maior que partilhou comigo. Fico muito mais pobre. A saudade é já a lembrança de a não ter aqui.
Adeus amiga. Até sempre Cândida Ventura.

NOTAS BIOGRÁFICAS

Cândida Margarida Ventura nasceu a 30 de Junho de 1918, em Lourenço Marques, Moçambique. Era ainda criança, quando os pais regressaram a Portugal e se instalaram nas Caldas de Monchique (Algarve), onde a mãe passou a exercer a sua profissão, Professora do Ensino Primário, e o pai  a laborar como funcionário da Administração das Termas das Caldas. A infância foi  passada neste local que lhe propiciou um  crescimento saudável e frutuoso.
A influência do pai , homem culto e defensor de  grandes causas, seria marcante no seu percurso. A serenidade  interior que sempre difundiu, foi para Cândida Ventura a trave mestra do seu desenvolvimento, pelo que o considera o exemplo maior da sua vida.
Em 1929, com 11 anos de idade, é internada no Instituto do Professorado Primário, em Lisboa , a fim de  frequentar o Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho.
Em 1936, entrou para a Faculdade de Letras de  Lisboa e, no ano seguinte, aderiu ao Partido Comunista Português. Nessa época, um forte interesse pelas questões sociais e políticas  já fazia parte do seu quotidiano. Eclodira a Guerra Civil de Espanha e  todas as informações que se obtinham eram partilhadas e analisadas diariamente, no claustro da Faculdade,  com os  colegas mais próximos onde se  destacavam  Magalhães Godinho, Magalhães Vilhena, Pilar Ribeiro, Alberto Araújo, Frederico Alves, Hugo Baptista Ribeiro, Maria Luísa Lami e Piteira Santos com quem casaria mais tarde.
Magalhães Vilhena e Magalhães Godinho foram os colegas que mais privaram com Cândida Ventura devido ao papel importante que cada um desempenhou. Magalhães Vilhena foi o colega mentor político que lhe permitiu o acesso à doutrina marxista, fornecendo-lhe as obras de referência. Magalhães Godinho foi o colega amigo que com ela descobriu e abraçou as primeiras causas políticas.
Tendo efectuado a transferência para Coimbra , terminou, em 1943, a licenciatura em Histórico-Filosóficas na Universidade de Coimbra, após ter desenvolvido uma acção relevante quer a nível estudantil, quer a nível sócio-partidário. Dinamizou  as manifestações e greves estudantis. Integrou diversas organizações académicas tais como a Federação Académica de Solidariedade, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e a Associação Portuguesa para a Paz. Orientou o trabalho do Socorro  Vermelho Internacional e participou na reorganização do Partido Comunista.  Promoveu  várias conferências, cursos de Alfabetização, de Primeiros Socorros e introduziu, nas Sociedades Recreativas,  os “ Clubes de Matemática”.
Detentora de uma excepcional argúcia e de uma sensibilidade jornalística notável, integrou a redacção do jornal “ O Diabo”, publicação progressista, difusora dos ideais socialistas, onde escreviam além de Manuel Campos Lima , Director e posteriormente seu cunhado, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca e muitos outros intelectuais da Resistência Portuguesa. Alguns anos mais tarde, durante a Ocupação Checa, voltaria a escrever para este jornal, numa rubrica semanal intitulada “ Crónicas de Leste”.
No dia em que concluiu a Licenciatura , foi convidada por aquele que seria um perene e fraterno amigo, José Gregório,  membro do Comité Central do PCP, a participar, de imediato, na organização  das greves operárias nacionais que tinham começado na zona industrial do Barreiro. A partir desse momento, o movimento grevista coordenado por José Gregório, Cândida Ventura e outro membro do PCP alastrou às  Minas de S. Pedro da Cova , a toda a região  têxtil do Norte incluindo a zona do calçado, São João da Madeira. Quando terminada essa actividade, passou à clandestinidade como funcionária do Partido, novamente por proposta de José Gregório.
Cândida Ventura afirmava-se  como  uma mulher de vanguarda, uma mulher de forte personalidade, uma verdadeira mulher para além do seu tempo.
Membro do  Comité Central do PCP desde 1949, ( a primeira mulher que  ascendeu à mais elevada estrutura do Partido após a respectiva reorganização) , foi-lhe atribuído  o controle da organização operária da Zona  Norte seguido pelo controle da Zona de  Lisboa, controle  que foi sucessivamente alternando.
Tendo em conta o universo das casas clandestinas, criou a publicação “Três Páginas” destinada às mulheres aí  residentes,  a fim de  promover o respectivo acesso à informação. Foram publicados 68 números, entre Janeiro de 1946 e Junho de 1956. Sucedeu-lhe a publicação, “ A Voz das Camaradas das Casas do Partido”,  que se manteve em laboração  até 1970.
Cândida Ventura permaneceu ininterruptamente dezassete anos em efectiva  actividade na  clandestinidade. Durante esse período, foi acusada duas vezes de ter desenvolvido trabalho fraccional por ter proferido algumas  opiniões divergentes daquelas  que eram oficializadas pelo Partido. Na primeira acusação , ocorrida no ano de 1954 ,foi expulsa do Comité Central e remetida para a  Organização da Margem Sul do Tejo. Controlar a organização da CUF, da CP, da Indústria Corticeira na Zona Industrial do Barreiro e arredores foi a missão que passou a executar, enquanto e apenas na qualidade de funcionária do Partido.  
Foi reabilitada das acusações de trabalho fraccional, após a morte de Staline, tendo sido reintegrada no Comité Central e, em jeito de recompensa, foi convidada a visitar a  URSS. Conhecer a URSS era, então , o prémio maior para qualquer comunista e para Cândida Ventura surgia  ainda acrescido  pela possibilidade de esclarecer  algumas  dúvidas relativas à falta de transparência da actuação doutrinária pela grande pátria marxista.
Logo após ter regressado da URSS e de Praga,  numa reunião do Comité Central do PCP, é novamente acusada de trabalho fraccional . Não lhe foi aplicada qualquer sanção porque teve o apoio e defesa de três membros do Comité, presentes na reunião, em que se destacou a forte e solidária intervenção de Guilherme da Costa Carvalho, tendo-se optado pela falta de fundamentação na acusação.
Em Agosto de 1960, quando se dirigia para um encontro, é presa pela PIDE e sujeita  a torturas extremas, brutais e violentas. No seu livro “ A Resistência em Portugal “, José  Dias Coelho afirma:” O seu porte na polícia e firmeza na prisão torna-a exemplo de dignidade e patriotismo para todos os portugueses antifascistas.”
Julgada e condenada a 5 anos de prisão, sairia em liberdade condicional em 1963 , por se encontrar em perigo de vida, após ter sido internada no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa.  
No “Dicionário de História do Estado Novo”, Vol.I , Fernando Rosas escreveu sobre esta prática  para com os presos políticos: “(…) outros ainda foram postos em liberdade em estado de saúde muito grave, temendo a polícia pelo seu provável falecimento em cárcere, como Cândida Ventura (…).”  Entretanto, no nº 300 do jornal  “Avante” vem publicado  um artigo sobre a acção desenvolvida por Cândida Ventura em prol do Partido e dos portugueses , exortando “todos os portugueses corajosos e para todas as mulheres generosas a fim de que exijam a liberdade para Cândida Ventura”.
Em 1964, através da acção  corajosa da família e de um  solidário movimento popular,  obteve autorização para receber tratamento em Paris. Daí,  partiu para Moscovo onde ficou internada num hospital , vindo a convalescer em Sochi, estância turística situada na orla do  Mar Negro.
Em 1965, foi para Praga , Checoslováquia,  onde permaneceu até 1975 como representante do Partido Comunista Português  junto do Comité Central do Partido Checoslovaco e do Partido Operário Polaco e, cumulativamente, fazendo parte do  Conselho de Redacção da  Revista Internacional ““Problemas da Paz e do Socialismo”. Visitou, com frequência, a URSS e outros países de Leste,  nomeadamente a Polónia, a Bulgária, a RDA, a Roménia e a Hungria.                                                Assistiu e participou no princípio e no fim da  liberalização checa, na “ Primavera de Praga”, na luta contra a ocupação da Checoslováquia  pelas tropas do Pacto de Varsóvia  e posterior “normalização”.
Em 1975 , regressou a Portugal. As descobertas que fizera ao longo de vários anos  tinham-na afastado definitivamente da dogmática cartilha comunista, pelo que abandonou o Partido, em 1976. Todavia, foi apenas em 1981, durante um Comício de solidariedade ao Povo Polaco que Cândida Ventura decidiu anunciar publicamente a sua demissão do PCP,  afirmando  que abandonara o Partido ” por discordar dos seus processos  e orientação e pela sua experiência de vida nos países do «socialismo real» .
Livre de quaisquer  amarras partidárias, concorrera, em 1976,  ao Ministério dos Negócios Estrangeiros onde a sua candidatura viria a ser sucessivamente sonegada por um funcionário  militante do PCP e também se apresentara ao Concurso de Professores para o Ensino Secundário. Nesse ano, foi colocada como Professora de História e de Introdução à Política, no Liceu  de Portimão.  Mais tarde, e após várias candidaturas, obteve colocação no Ministério dos Negócios Estrangeiros, no extinto Gabinete de Estudos e Planeamento,  vindo a ser destacada ulteriormente para a Direcção Geral das Relações Culturais Externas, onde permaneceu  até atingir o limite de idade, imposto para a aposentação.
Em Portimão , além da docência, iniciou um processo de apoio aos emigrantes de Leste, ministrando-lhes aulas de Português e de integração social.
Ao longo da sua vida , Cândida Ventura lutou afincadamente pela justiça social e pela liberdade . A militância ideológica permitiu-lhe a abertura a novos horizontes e a um continuado exercício vigilante da condição humana que foi sempre acompanhado por uma imensa curiosidade  pelo Saber, pelo Conhecimento, enquanto  requisitos para uma realização e actuação plena e eficaz. Assim, já na década de 80, inscreveu-se na Universidade de Nanterre para realizar um  Doutoramento em Sociologia Política, orientado pela Professora Doutora Annie Kriegel, especialista em Movimento Comunista Internacional.
Em carta dirigida ao reitor da Universidade, Annie Kriegel  afirmou sobre a tese de Cândida Ventura:  “(..) C’ est là une étude remarquable et dont j’ attends beaucoup . Sa connaissance du terrain, sa large expérience linguistique , le caractère exceptionnellement étendu  de son savoir  en la matière  font de Mme Cândida Ventura un chercheur de qualité rare.(…) »
Cândida Ventura não pode concluir o Doutoramento devido à morte inesperada de Annie Kriegel, já que o seu objectivo não era a obtenção de um novo título académico. O que a norteava e o que a estimulava era o Conhecimento e o privilégio de poder trabalhar com aquela prodigiosa investigadora e professora, Annie Kriegel,. Em 1986, obteve, contudo, um DEA, Diplôme d’ Etudes Approfondies , em Sociologia Política pela Universidade de Nanterre.
Em 13 de Novembro de 2009, em Bratislava, na Eslováquia, Cândida Ventura, convidada da cerimónia  oficial  comemorativa do  20º Aniversário da Independência,  ( Conferência Governamental), foi homenageada pelo governo eslovaco devido ao importante e corajoso trabalho que realizou ao longo de vários anos  na defesa e promoção de  um verdadeiro socialismo onde a Liberdade pudesse ser efectivamente usufruída por  todos os cidadãos. Nessa cerimónia, foi-lhe atribuída uma medalha honrosa, comemorativa da Fundação Alexander Dubcek, com a seguinte justificação: “A Fundação Alexander Dubcek atribui a medalha comemorativa a Cândida Ventura: A medalha é concedida pelo apoio efectivo ao movimento de regeneração de 1968, na Checolosváquia, pelo apoio à política de reformas de Alexander Dubcek, e pelo esforço de conservação do seu legado e das suas ideias humanistas e de solidariedade na consciência dos cidadãos europeus e do seu Portugal natal. Com gratidão e consideração.  MU Dr. Pavol Dubcek, Presidente da Associação (Fundação) Alexander Dubcek,  Novembro de 2009”.
O  seu nome, juntamente com outros de  figuras relevantes, vem impresso no livro “Alexander Dubcek, Político, Homem de Estado, Humanista” onde estão igualmente  impressas as seguintes dedicatórias:
1ª - Dedicatória do Professor Laluha : “ À estimada Sra. Cândida Ventura , com a maior consideração e os meus agradecimentos de fidelidade às ideias da Primavera de Praga em 1968 e do Sr.  Alexander Dubcek. Prof,. Laluha , Bratislava ,13/11/2009”
2ª -  Dedicatória do Dr.  Pavol Dubcek (Pag. 11) “Com a consideração profunda , dedica Pavol Dubcek:…O meu agradecimento vai também para todos os membros da Internacional Socialista, para os amigos Italianos, Espanhóis, Portugueses e mais admiradores de Alexander Dubcek, pelo reconhecimento e apoio moral do exterior. Em particular quero expressar o meu apreço e agradecimento pelo trabalho e empenho da Sra. Cândida A. Ventura de Portugal, nomeadamente pela angariação dos meios financeiros que ajudaram à publicação desta colectânea.”
 Cândida Ventura vive actualmente em Portimão. Vai completar 93 anos, em 30 de Junho, e continua a ser uma mulher culta, dinâmica e impulsionadora de acções que promovam os direitos humanos. O seu percurso vivencial traduz a história do século XX e XXI. Ouvi-la é presenciar o passado histórico recente. Escutá-la  é não apagar a memória.                                                                                     
Portimão,  5.6.2011
Maria José Vieira de Sousa, in "O socialismo que eu vivi" de Cândida Ventura, Editora Bizâncio

5 comentários:

  1. Hoje é realmente um dia muito triste. Sinto que perdi uma grande amiga! A Cândida era uma pessoa cuja grandeza de carácter, a dignidade, a fina inteligência e a nobreza excediam a duração de uma vida, ainda assim longa e muito vivida! Que notícia tão triste! Espero que descanse em paz e que o seu exemplo e percurso de vida não sejam esquecidos! Até ao nosso reencontro, Cândida!

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  2. Os sonhadores não morrem jamais, porque vivem na mágica dimensão do amanhã, e o amanhã dos que sonham é feito de luz e de esperança. Há um mundo maior na imperecível romagem da vida, e lá, os que combateram o bom combate, empunharão novas bandeiras.Daqui do Brasil minha prece te segue, rogando ao Bom Deus que essa transição te seja leve e venturosa e que mãos amigas te saúdem com candura na chegada.
    Manoel de Andrade

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  3. Foi um privilégio ter tido oportunidade de te ouvir, vivênciar os relatos de uma experiência única e irrepetível, da luta pela liberdade de pensamento e opinião, de direitos fundamentais da pessoa, de ter te sempre por perto neste derradeira caminhada da vida, sem ti, sinto que levas um pouco de mim...

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  4. Foi um privilégio ter tido oportunidade de te ouvir, vivênciar os relatos de uma experiência única e irrepetível, da luta pela liberdade de pensamento e opinião, de direitos fundamentais da pessoa, de ter te sempre por perto neste derradeira caminhada da vida, sem ti, sinto que levas um pouco de mim...

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    1. Bem hajam todos os que recordam a Cândida . O respeito, o carinho e a saudade ficarão sempre em nós.

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