quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Crónica Impossível


Todos os erros podem ser perdoados ao que possui uma verdadeira  candura. 
                                                                              Walt Whitman           
                
África aparece quase todos os dias nos noticiários do nosso país. África, um imenso continente posicionado a sul desta Europa. 
Europa que nos liberta em carimbo de livre trânsito, mas que se interdita e renega o verdadeiro  “génio europeu”.
Desgastada, desirmanada, envelhecida agrega-se em desacordos  que impedem a sobrevivência de um humanismo que  definia a sua identidade.
A Europa da reconstrução,  da concórdia, do porto seguro definha perante a inacção dos seus governantes. Nem Ulisses a reconheceria. Ergueram-se barreiras, construíram-se muros e revitalizaram-se campos para   concentrar quem chega. São os cais dos novos portos de acolhimento. Os cais sem horizonte, sem esperança de saída.
E as gentes gesticulam, choram, gritam, sofrem. Não era esta a Europa sonhada . E de Ítaca já não resta pedra.
Foi assim 2015. Começou em Janeiro. A tragédia prossegue, num crescendo que se tenta, agora, ocultar. As imagens  já não surgem diariamente  nos écrans das televisões. Os atentados , em França, roubaram-lhe o espaço. O terror atingiu as entranhas deste velho continente. Apresentam-se infindáveis registos seguidos de contínuas descobertas.  Os governantes lançam-se em discursos emotivos  e de solene e pesado sentido de estado. A solidariedade tem de ser imposta. É a Europa. E um humanismo tíbio e egoísta ressurge entre muros.
Abater, arrasar, destruir, eliminar. Palavras tortuosas que traduzem novas atrocidades. A anestesia europeia  continua. A vingança leva-a até à terra do novo e bárbaro fundamentalismo.  Lá, onde o desvario, a crueldade são possíveis. Qual cruzada deste  tempo de hedionda realidade.
E as lágrimas  dos que chegam  espalham-se num mar de desespero. Ninguém as vê. Mas de África soam ecos de ilegitimidade. É uma greve de fome que comove. Um caso entre vários. A causa dos Direitos Humanos propala-se pelo nosso país, num ardor catártico. Angola um país africano. Angola em transgressão. Angola , um país onde a fome não permite greves.
Angola , terra de gente anónima que procura sobreviver em busca do pão de cada dia. Angola onde o pão se conquista para rejeitar a fome. Quem luta quer pão. Lutar para ter pão é a promessa diária da gente que labuta nesse chão africano.
E é dessa gente e dessa Angola que esta Crónica rouba o título. A Crónica impossível numa Europa farta que perdeu a chama da caridade, da compaixão, da ternura e de se rever no outro que chega .
Era um dia de chuva, de uma chuva tropical que surge de repente e tudo inunda. Março de 2015, tempo de verão angolano. A baixa de Luanda estava repleta de trânsito. Circular pelas ruas era uma aventura que se tornava um forte desafio para quem andava a pé. Estava encurralada numa dessas ruas. Corria um autêntico rio de água a que não podia fugir.Tinha de o  atravessar. Era a rua, a única saída. Do outo lado, uma quitandeira vendia os seus produtos. Viu-me. Gritou: Espera, mãezinha!
Abandonando o seu posto , meteu-se à água , colocando, no chão inundado, pedras  atrás de pedras, para que pudesse passar. Verificando que não era o suficiente, agarrou-me e quase me levou nos braços até ao outro passeio, inteira e  enxuta. Molhada e  em risco de perder a mercadoria que vendia ,  sorriu como um sol  após a  tormenta. Nada pediu. Apenas um largo sorriso, em jeito de despedida.
Procurei-a, incessantemente, nos dias posteriores. Nunca a encontrei. Nunca mais a vi.
É esta a  gente de Angola. A gente humilde que tenta sobreviver à fome , mesmo quando ela anda à solta.
É este o gesto que se perdeu nesta Europa e  se esqueceu neste canto português.
É este o espírito que se evadiu e que impede que este gesto tivesse ocorrido em Portugal. Seria, aqui, um acontecimento impossível, neste ano de 2015.
Mas se me for permitido sonhar, pedirei a quem tiver esse  poder que permita o regresso da verdadeira candura, em 2016. Talvez os erros possam ser reparados.
                                      Praia da Rocha, 31 de Dezembro de 2015
Maria José Vieira de Sousa

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Os meus doze livros de 2015

        
                Tudo no mundo existe  para algum dia terminar num livro.
                                                                  Stéphane Mallarmé

Quem gosta de ler não tem apenas como leitura os novos livros. Aqueles que surgem ao longo do ano. As novidades apregoadas e assinaladas nas grandes livrarias e até nos supermercados. Os livros, em escaparates, já são exibidos em tabelas : o top dos mais vendidos. Publicitar o livro, exercer o convite à leitura  é uma nobre aposta, mas fica esvaziada quando o critério selectivo não tem apenas o valor intrínseco da obra. Muitos livros são apresentados porque são obra de gente que vive sob as luzes dos media. E mata-se  qualquer aposta em torno de um bom livro. 
Lê-se a vida inteira  para saber que livros reler na velhice - afirmou o escritor brasileiro Autran  Dourado. Concordo e partilho deste critério. Leio e releio novos e velhos livros que me encantaram e sempre serão objecto de puro prazer literário. 
Nunca ninguém lê o mesmo livro como nunca ninguém ouve a mesma música - alguém o disse e corresponde ao que penso ser verdadeiro. A leitura é um acto solitário. Apropria-se de nós numa posse egoísta e total. Lemos e, se  o fizermos em conjunto, as palavras ,apesar de serem escutadas por todos em sincrónica audição, não chegam a cada um em sintonia. Há um ressoar que confere diferentes apropriações. 
Os livros que selecciono para este 2015 partem destes pressupostos. Foram livros que reli ou li com imenso deleite. Que me acompanharam e ressoaram em total eufonia. 
A lista de leitura é enorme, bem como o encanto que me provocou. Tal como os meses do ano, opto por destacar doze.
A apresentação não tem qualquer ordem valorativa. 
Que venham novos prazeres, em 2016.

 - De Eugénio Lisboa: 
" Acta est fabula , Memórias  - V- Regresso a Portugal ( 1995- 2015)
Editora Opera Omnia, Outubro de 2015 - ( Literatura Memorialística)
"Crónica dos Anos da Peste", Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1996 , ( Ensaios)
- De J. Rentes de Carvalho:
" Pó, Cinza e Recordações", Editora Quetzal, Maio de 2015, ( Literatura Diarística)
- De Onésimo Teotónio Almeida:
 "Despenteando Parágrafos", Editora Quetzal, Setembro de 2015,   (Ensaios)
- De Albert Camus:
" Le premier homme", Éditions Gallimard, 1994, ( Romance)
" Estado de Sítio" , Editora Livros do Brasil, 2001, ( Teatro)
De Gustave Flaubert:
" L'Education sentimentale" , Ed. Flammarion, ( Romance)
De Eduardo Bettencourt Pinto:
" Tango Nos Pátios Do Sul", Ed. Campo das Letras, 2001, ( Poesia)
De António Osório:
"A Luz Fraterna , Poesia Reunida (1965 - 2009) ", Editora Assírio & Alvim, 2009, (Poesia)
De Sebastião Alba: 
" Uma Pedra Ao Lado Da Evidência", Ed. Campo de Letras, Novembro de 2000,(Poesia)
De Saul Bellow: 
" Na Corda  Bamba", Ed. Quetzal, Julho de 2015, ( Romance em forma de Diário)
De Joseph Conrad:
" Histórias Inquietas", Ed. Assírio & Alvim, 2002, (Contos) 

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O Cravo Bem Temperado

                                    
                                                A  música é o barulho que pensa. 
                                                                          Victor Hugo
“O Cravo Bem Temperado” de J.S. Bach em lâmpadas coloridas
Representar visualmente uma obra de música, qualquer que seja o estilo, é um desafio, mas neste vídeo onde se representam duas composições bem conhecidas de Bach, do “Cravo bem Temperado”, o resultado é excelente.
Bach publicou, em 1722,  um livro com fugas e prelúdios com o objectivo de ajudar os jovens que  pretendiam aprender música e também para aqueles  mais experientes que já  estudavam música. Os dois livros escritos por Bach (o outro foi em 1744) foram estudados muito tempo depois por Mozart e Beethoven, que usaram estes livros como influência para as suas obras, mesmo que para aquela época o Barroco já estivesse ultrapassado.
Estes livros de Bach foram divulgados em forma de manuscritos e somente foram impressos muito tempo depois. O título da obra indica que as composições contidas neles foram feitas para um tipo de afinação chamado de “bem temperado”.
O animador Alan Warburton, a pedido do site Sinfini Music, criou uma animação em CG que ilustra um prelúdio e uma fuga da colecção, utilizando lâmpadas coloridas que se acendem conforme as notas são tocadas. O comprimento de cada lâmpada representa a duração das notas, enquanto a altura de cada lâmpada representa a altura da nota tocada. O resultado é este:

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O que fica nos nossos corações?

«No fim, o mundo não importa nada. Só importa o que fica nos nossos corações.
- Que é que fica – pergunta o convidado – nos nossos corações?...
- A outra pergunta – responde o general. E não solta a maçaneta da porta. – A outra pergunta resume-se em saber o que ganhámos com toda a nossa inteligência, orgulho e superioridade? A outra pergunta é, se não tivesse sido aquela atracção penosa por uma mulher que morreu, qual teria sido o verdadeiro conteúdo da nossa vida? Sei que é uma pergunta difícil. Eu não sei responder-lhe. Vivi tudo, vi tudo e não sei responder a essa pergunta. Vi paz e guerra, vi miséria e grandiosidade, vi-te cobarde e vi-me a mim mesmo vaidoso, vi luta e concordância. Mas no fundo, o significado da vida e das nossas acções talvez tenha sido esse laço que nos uniu a alguém – laço ou paixão, chama-lhe o que quiseres. Essa é a pergunta? Sim, é essa. Gostava que me dissesses – continua tão baixo como se tivesse medo de que alguém estivesse atrás das suas costas ouvindo as suas palavras -, qual é a tua opinião sobre isso? Pensas também que o significado da vida não seja outro senão a paixão, que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo, e depois arde para sempre, até à morte? Aconteça o que acontecer? E que se nós vivemos essa paixão, talvez não tenhamos vivido em vão? É assim tão profunda, tão maldosa, tão grandiosa e desumana a paixão?... E talvez não se dirija a uma pessoa em concreto, mas apenas ao desejo mesmo?... Essa é a pergunta. Ou dirige-se a uma pessoa em concreto, desde sempre e para sempre à única e mesma pessoa misteriosa, que pode ser boa ou má, mas cujas acções e qualidades não influenciam a intensidade da paixão que nos une a ela? Responde, se sabes responder – diz mais alto e insistente.
- Porque é que me perguntas? – replica o outro tranquilamente. – Sabes que é assim.»
Sándor Márai, in "As velas ardem até ao fim", Dom Quixote

domingo, 27 de dezembro de 2015

Ao Domingo Há Música

Sim, o amor é vão
É certo e sabido
Mas então (Porque não)
Porque sopra ao ouvido
O sopro do coração
Se o amor é vão
Mera dor mero gozo
Sorvedouro caprichoso
No sopro do coração
No sopro do coração

Mas nisto o vento sopra doido
E o que foi do
Corpo no turbilhão

Sopra doido
E o que foi do
Corpo alado
Nas asas do turbilhão
Nisto já nem de ar precisas
Só meras brisas
Raras
Clã


O amor é vão, mas quando sopra,  o coração enche-se de magia. O ano de 2015, que está a encerrar, foi um ano em que o desamor se evidenciou. Muitos rostos  perpassaram perante nós, nas molduras televisivas, marcados pela dor da guerra, da ganância, do malogro e do ódio que reina em muitos corações. 2016 está na agenda. Começa e com ele esperemos que as loas lançadas por  estas canções deste último Domingo de Dezembro façam sorrir e enfunar o mundo. E que de abraços se feche este ano. 

Os Clã em O Sopro do Coração (Sérgio Godinho / Hélder Gonçalves)
DVD Gordo Segredo, 2005


Adele em Make You Feel My Love, ao vivo no espectáculo no Royal Albert Hall

Andrea Bocelli &Mary J Blige, em What Child Is This.


Dá-me um abraço , videoclip do 1º single do álbum "A Porta ao lado", de Miguel Gameiro

Tiago Bettencourt,  em Canção de engate.
And I wanna kiss you, make you feel alright
I'm just so tired to share my nights
I wanna cry and I wanna love
But all my tears have been used up

On another love, another love
All my tears have been used up
On another love, another love
All my tears have been used up
On another love, another love
All my tears have been used up

Tom Odell , em Another Love


Márcia com JP Simões, em A PELE QUE HÁ EM MIM

Sarah Mclachlan, em Song for a Winter

sábado, 26 de dezembro de 2015

Mas vim ver o mar

Revisitámos o Diário de Miguel Torga, obra em dezasseis volumes, e retirámos a seguinte entrada de 25 de Dezembro de 1987:
"Figueira da Foz, 25 de Dezembro de 1987  -  O Natal é telúrico. Mas vim ver o mar. Na terra nascem messias, profetas, tiranos, energúmenos. Nele, nasce Vénus, a deusa do amor. Em cada onda, vem à praia o seu corpo branco de sereia e de mulher. Eu, pelo menos , vejo-a desde a juventude, cada vez mais bela e sedutora. Dantes , acenava-me convidativamente. Agora sorri-me apenas como uma lembrança."
Miguel Torga, in " Diário XV ", Círculo dos Leitores

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Dia de Natal com Música


No fim, o mundo não importa nada. Só importa o que fica nos nossos corações.
                               Sándor Márai, in "As velas ardem até ao fim", Dom Quixote



SIBELIUS Violin Concerto in D minor, Op. 47 , Ray Chen com a Gothenburg Symphony Orchestra ,regida pelo Maestro Kent Nagano.

I. Allegro moderato
II. Adagio di molto
III. Allegro, ma non tanto

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Natal

 

Natal

Neste caminho cortado
Ente pureza e pecado
Que chamo vida,
Nesta vertigem de altura
Que me absolve e depura
De tanta queda caída,
É que tu nasces ainda
Como nasceste
Do ventre de Tua mãe.
Bendita a Tua candura.
Bendita a minha também.

Mas se me perco e Te perco,
Quando me afogo no esterco
Do meu destino cumprido,
À hora em que eu Te rejeito
E sangra e dói no Teu peito
A chaga de eu ter esquecido,
É que Tu jazes por mim
Como jazeste
No colo da Tua mãe.
Bendita a Tua amargura
Bendita a minha também.
Reinaldo Ferreira, in " Poemas"

NATAL

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Manuel Alegre

NATAL
Nem aqui, nem agora. Vã promessa
Doutro calor e nova descoberta
Se desfaz sob a hora que anoitece.
Brilham lumes no céu? Sempre brilharam.
Dessa velha ilusão desenganemos:
É dia de Natal. Nada acontece.
José Saramago, in " Natal...Natais Antologia reúne oito séculos de poesia sobre o Natal- Antologia de Vasco Graça Moura", Público

NATAL
Os joelhos em terra,
as mãos erguidas, presas.
E Deus o céu descerra
aos murmúrios que rezas.

Brilham mais as estrelas.
Mais neve o céu derrama.
E, se por fora gelas,
Por dentro és uma chama.

E beija a tua face
o luar que aparece,
como se Deus mandasse
um sim à tua prece.
Alberto de Serpa (Porto, 1906-1972). in " Natal...Natais Antologia reúne oito séculos de poesia sobre o Natal- Antologia de Vasco Graça Moura", Público

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Cresceu-me uma pérola no coração




Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu… como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos… sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta… dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca do mar ao fundo da rua
assim envelheci… acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade

 Al Berto, in Medo,Assírio &Alvim

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Ler Eugénio Lisboa

              Tal como a democracia, a palavra cultura precisa não só de ser                   definida , mas também ilustrada, cada vez que a empregamos. 
                                                                                   T.S. Eliot          

Eugénio Lisboa publicou, em Novembro, o V volume das suas Memórias . "Acta Est Fabula" , desenvolvida em cinco volumes, ficará na História da Literatura Portuguesa como um grande monumento literário. O relato da vida singular de um grande intelectual afirmar-se-á como a referência, como o objecto de estudo da história da cultura portuguesa e mundial. Sendo um homem do mundo, um cosmopolita, Eugénio Lisboa imprimiu nas páginas deste magnum opus uma visão lúcida e crítica do mundo .
O primeiro volume de "Acta est fabula" foi galardoado com o Grande Prémio da Literatura Biográfica APE . 
Recordamos , com excepcional prazer, as palavras proferidas por Eugénio Lisboa na cerimónia de entrega do Prémio, em Castelo Branco.

Exm.º Senhor Presidente da Câmara de Castelo Branco
Exm.º Presidente da APE
Exm.º Vice-Presidente da APE
Exm.ª Porta-Voz do Júri do Prémio 
Exm.º Comendador Jorge Morão
Estou aqui, hoje, em Castelo Branco, por onde passei, em Junho de 1977, numa atormentada viagem entre Estocolmo e Lisboa, estou aqui, dizia, para receber um Prémio. Melhor ainda: um Grande Prémio.
Há piores razões para se estar num lugar, embora as opiniões, no que respeita a galardões, se dividam. Os prémios, como tudo na vida, são matéria de controvérsia. Há reacções a eles, de todos os gostos e formatos.
Há quem os recuse liminarmente. Tolstoi, por exemplo, avisou a Academia sueca, em vias de lho atribuir, que o não fizesse, porque ele, Tolstoi, o autor insigne da Guerra e Paz e da Ana Karenina, se veria na obrigação de o recusar. George Bernard Shaw, o mais civilizado de todos os recusadores, aceitou o diploma e a medalha, mas rejeitou o alentado pacote de coroas suecas, que pouca falta lhe faziam: que o dessem, sugeriu ele, a um jovem e promissor escritor sueco, que mal não lhe faria; Jean-Paul Sartre, o pior dos três, recusou ostensivamente o Prémio, mas consta que mandou recado submarino ao embaixador sueco, dizendo que não queria o diploma nem a medalha, mas que se não importaria de ficar com o dinheiro. A elegância nunca tinha sido o seu forte e continuaria a não sê-lo de aí em diante. Jean Cocteau, o “enfant terrible” da literatura francesa do século passado, adoptou, a este respeito, a atitude mais radical, ao aconselhar: “Não só não deves aceitar um prémio, como não deves sequer merecê-lo.” Isto é, segundo o critério do autor de Orphée, no merecer um prémio já havia um indício de cedência ou conformismo…
O já citado e eminente dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, talvez o maior dramaturgo em língua inglesa, depois de Shakespeare, via, na atribuição dos prémios, um projecto amaciador, quando dizia: “O objectivo real dos prémios que se dão nas escolas é o de encorajar as crianças a criarem o mínimo possível de turbulência.” Eu não creio, sinceramente não creio que os meus amigos que, por acaso, foram membros do júri, me tivessem atribuído este prémio para pacificarem quaisquer meus pruridos de turbulência.
Outra reacção típica dos recebedores de prémios reside em afectarem um ar recomendavelmente humilde, insinuando não merecerem eles o prémio que lhes foi atribuído, o qual deveria ter ido parar a terceiros, que, às vezes, até nomeiam. Foi o caso de Hemingway que, ao ser-lhe atribuído o Nobel, em 1954, se apressou a dizer que o laureado não devia ter sido ele, mas, antes, ou o escritor espanhol Pio Baroja ou a grande contista dinamarquesa Karen Blixen. O que, de modo algum, implicava que o laurel lhe não tivesse sabido bem. E até nem consta que tivesse dividido o seu valor monetário com aqueles dois alegadamente injustiçados. Fair-play, sim, mas devagar, como certamente recomendaria el-rei D. Sebastião.
Neste saboroso registo do “não sou eu quem merece o prémio”, o mais capitoso exemplo que conheço é o do grande cómico americano Jack Benny, com quem imparavelmente me ri, na minha infância e adolescência, o qual, no momento de lhe ser outorgado um galardão qualquer, reagiu nestes termos: “Eu não mereço este prémio, mas, se vamos a isso, também não mereço ter a artrite que tenho.” Por outras palavras, se tinha artrite, mesmo sem merecê-la, por que não haveria de ter um prémio, mesmo não o merecendo? Convenhamos que a lógica é irrespondível. É esta resposta do meu outrora admirado Jack Benny que me deixa relativamente confortável quanto à possibilidade – ou mesmo, alta probabilidade – de eu aqui estar a receber um galardão não irresistivelmente merecido. Que saiba, não tenho artrite, mas tenho 84 anos, que valem por não sei quantas artrites e mais um infindável número de outras desvantagens. Venha, pois, o prémio, mesmo com a dimensão de Grande Prémio, e aqui ficam os meus agradecimentos aos membros do júri, a quem deu para repararem no meu livrinho. Mentiria como um desbragado mentiroso, se dissesse que não fiquei feliz. Não sei se ficaria igualmente feliz com um prémio atribuído a qualquer outro livro meu (e sei do que falo, porque já os recebi). Mas o carinho e o investimento emocional que pus neste, em particular, quero dizer: neste primeiro volume das minhas sonhadas e arquitectadas memórias em 5 volumes, foi tão grande, que o reconhecimento a ele dado pelo júri me caiu fundo, no coração. É, para mim, um livro especial, como são e serão os restantes volumes da saga. Andei anos a magicá-lo, a sonhá-lo, a fruí-lo, antes de me meter a escrevê-lo. É que iria falar, nele – falar-vos, nele – de algo muito importante que me aconteceu, há muitos anos, em África: ter ali nascido e ter, para sempre, ficado espantado por isso me ter acontecido, a mim: ter nascido e ter nascido, ali. O meu livro – e os dois volumes que se lhe seguiram e os dois que se lhe hão-de seguir – falam o tempo todo – mesmo quando o não dizem claramente – desse espanto inaugural, que nunca mais me abandonou, ao longo do caminho da vida. O Alto Mahé, a Rua Norte, o Largo João Albasini, a Estrada do Zixaxa, o Cine-Variedades, onde se inventou o cinema, mesmo em frente à imponente Casa das Tias, a Rua Mendonça Barreto, no Alto Mahé, de onde eu via o mundo todo, nas páginas dos livros que devorava, o liceu, no outro extremo da 24 de Julho, o Cabo Submarino, as matinées do Scala – tudo marcas profundas que o espanto de as ter recebido, como dom dos deuses, sem bem saber porquê, gravou a fogo na minha memória. Ficaram cá, dentro de mim, e eu não gostaria de ficar egoistamente com elas, de as não partilhar convosco, antes de me ir embora para paragens de que não há nunca notícia.
Do corpo do texto deste 1º volume – o que foi premiado – transportei para a contra capa, uma significativa passagem que ilumina o fundo do meu propósito, ao empreender esta minha busca de um tempo (nunca) perdido: “Lanço, neste papel, memórias que me parecem importantes – a mim.
Escrever memórias é tentar imprimir a marca da eternidade a momentos para nós inesquecíveis e inesquecidos, intensos, mágicos, às vezes, quase insuportavelmente vivos… mas que serão, para outros, provavelmente despidos de interesse. Captar a atenção destes, a sua cumplicidade, atraí-los a esta narrativa de minúcias e convencê-los de que estes momentos foram realmente algo de especial – eis a tarefa gigantesca do memorialista. Tarefa impossível ou quase, mas que, de quando em quando – uma vez num milhão – resulta. Não vou meter-me a acreditar – sou paranóico, sim, mas devagar – que este meu empreendimento é esse “um num milhão”. Mas, como acontece com todos aqueles que pousam palavras no papel, gostaria muito que fosse. Como dizia o maluco chapado do Álvaro de Campos, “Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez”.
Fico, pois, feliz, com o Prémio, porque alguém reparou no meu livro e gostou dele – e um livro é um filho nosso. Não se leva a bem que o não achem bonito. Mas fiquei também feliz – e não pouco – por verificar que há instituições e autarquias que acreditam – bem hajam! – que a cultura é importante para a imagem que um país projecta, em todos os sectores da vida, que a cultura não é um mero adereço mais ou menos fútil e inócuo, que é parte subliminarmente vital do melhor que esse país tem a oferecer. Sem uma imagem culturalmente forte, ninguém vai ter muita fé na qualidade dos outros produtos que ele ostenta, sejam eles industriais ou agrícolas ou meros mas não insignificantes serviços.
Só mais uma observação: não creio que um prémio literário confira qualquer poder ao galardoado – nem sequer poder literário. Dizia esse grande sage americano que dava pelo nome de Oliver Wendell Holmes que “o único prémio acarinhado pelos poderosos é o poder. Para o general, o prémio não é uma tenda maior – o prémio é o comando.” O poder – mesmo o poder literário – foi algo que nunca visei e junto do qual sempre respirei mal. Não seria agora, nesta hora tardia do meu caminhar pela vida, que iria mudar o meu modo de estar no mundo. Este prémio deixa-me feliz e grato – mas intacto.
Resta-me agradecer à Câmara de Castelo Branco, que financiou o galardão e organizou, com cuidado e competência, a cerimónia da sua atribuição, à Associação Portuguesa de Escritores, cujo Presidente e meu Amigo, Dr. José Manuel Mendes, se dignou deslocar-se a esta cidade, assinalando, carinhosamente, o patrocínio intelectual do prémio, ao Dr. José Correia Tavares, que foi presidente do júri e se desmultiplicou nas árduas tarefas de logística e promoção, as quais não são de diminuta importância, e, por fim, à Professora Isabel Cristina Rodrigues, minha colega e amiga dos meus tempos na Universidade de Aveiro e porta-voz do júri, cujo voto e palavras aqui proferidas, comovidamente, assinalo, abrangendo, na minha gratidão os outros membros do júri: Doutora Teresa Martins Marques e o Doutor António Cândido Franco, também meus caros amigos.
Como diz o título das minhas memórias, ACTA EST FABULA.
A todos, mais uma vez, os meus sinceros agradecimentos. Bem hajam!
Eugénio Lisboa (Castelo-Branco, 4 de Março de 2014

domingo, 20 de dezembro de 2015

Ao Domingo Há Música

“ A arte é uma actividade humana que consiste em alguém transmitir de forma consciente aos outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que experimenta, de modo a outras pessoas serem contagiadas pelos mesmos sentimentos, vivendo-os também (...)  é um meio de comunicação indispensável para a vida e para a progressão em direcção ao bem de um indivíduo e da humanidade, unindo-os nos mesmos sentimentos.” Lev Tolstói, in " O que é a Arte?" , Ed. Gradiva


Reabri este blog por causa de uma notícia que muito me entristeceu. A morte de uma amiga. Uma amiga que amava a Arte e a vida. Gostava de Música. E um dos últimos registos, que, com ela, escutei, vinha da Rússia. Uma colectânea de canções tradicionais russas. Recordo como vibrava com esses sons  familiares. Havia um invulgar fulgor que se acendia  em cada novo começo de uma canção. Tinha vivido tantos momentos com estes acordes. Na memória , os sons têm magia. Levam-nos e reproduzem os mesmos sentimentos. Senti-os na minha amiga Cândida Ventura, naquele dia de um Outono algarvio.  Nos seus noventa e quatro anos fervilhava  uma longa história de luta , de bravura, de tenacidade e de muito amor à Arte que  nos uniu naquele e em muitos outros momentos. 
Rememoro  para lhe  dedicar a Música deste domingo , apropriando-me com  muita força da expressão " From Russia with love".

Ivan Rebroff (n. Berlim, 31 de Julho de 1931 e m. em Frankfurt am Main, 27 de Fevereiro de 2008) foi um cantor alemão que deu voz a muitas canções populares russas. Era um excelente cantor com uma extraordinária amplitude vocálica. Atingia mais de quatro oitavas.
Rebroff, além de cantar músicas populares russas, era um exímio intérprete de ópera, música clássica e popular de vários outros países.
Apresentamo-lo em três famosos  e excepcionais registos. 

Ivan Rebroff em " O Barqueiro do Volga", uma canção muito popular e de grande beleza acústica.
Ivan Rebroff na célebre canção   "Kalinka Malinka".

Uma  fantástica interpretação da conhecida canção russa " Moscovo" por Ivan Rebroff.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Somos hóspedes da criação


" É difícil acreditar que a história que começou com o Génesis terminou. O jogo e contra-jogo entre a "criação" e a "invenção" foi sempre, em parte, subjectivo e flexível. Para Alexander Pope, a "invenção" é a mais elevada faculdade do homem , um atributo próximo da divindade: “ É universalmente reconhecido que pertence  a Homero a maior Invenção que um escritor  jamais fez. “ Paul Celan considera que a “ invenção” equivale a falsidade. Em Dada, chega-se  à inversão dos dois termos  através da paródia e da negação. Todavia, as duas modalidades são, em si próprias , intensamente criativas. Solicitam a reflexão a ir, ainda que especulativamente, mais longe.
Estamos a entrar numa cultura planetária  e numa hierarquia de valores cada vez mais dominada pelas ciências e pelas sua aplicações tecnológicas. Umas e outras experimentam um progresso constante, na medida em que o saber produz mais saber. É precisamente este movimento de avanço ilimitado – que só a extinção do espírito humano poderia deter – que tem vindo a substituir a categoria  e os símiles do infinito que caracterizavam o Deus de S. Tomás de Aquino e de Descartes. Vimos que o ritmo da especialização nas ciências, juntamente com o volume da nova informação engendrada pelas ramificações correspondentes, poderá previsivelmente desembocar numa crise. O desfecho poderá ser uma espécie de implosão ou de derrocada interior. Todavia, de momento,  esses efeitos negativos  da entropia parecem improváveis. Em termos de energia  cerebral  e de prestígio social, de recursos económicos e de rendimento prático, as ciências e a tecnologia têm à sua frente um amanhã sem limites.
Vimos  que a relação entre a epistemologia das ciências e a noção de “criação” foi sempre equívoca. Para a maioria dos cientistas, ao longo da história , o termo  de referência  foi a “descoberta”; a tecnologia, pelo seu lado, visou  a “ invenção” . As novas cosmologias  consideram a “ criação” um conceito ambíguo, mitológico ou até mesmo tabu. Perguntar o que antecedeu o Big Bang e os primeiros  nano-segundos  de condensação e de expansão do nosso universo corresponde , dizem –nos, à adopção de uma linguagem desprovida de sentido. Porque o próprio tempo não tinha sentido antes desse acontecimento singular.  Tanto a lógica mais elementar como o senso-comum nos dizem que semelhante decreto não passa de um bluff arrogante. O simples facto . de nos ser possível formular a pergunta, e de os processos normais  do pensamento  a poderem mobilizar, basta  para lhe conferir  sentido e legitimidade. O postulado do nada  e da intemporalidade inquestionáveis  (“ que não podem pôr-se em questão”),  que os astrofísicos transformaram num dogma, é tão arbitrário e, sob múltiplos aspectos, ainda mais místico, que as narrativas da criação que encontramos no Génesis e noutros lugares. A intuição reflexiva de um vir ao ser que não compreendemos, mas cuja eficácia é sugerida através das analogias da criatividade humana, mas perdeu da sua força. O que este livro tenta demonstrar é como recurso a tais analogias  se pode tornar uma convenção vazia, ou até mesmo corrosiva, quando são recusados os pressupostos da fé e de uma metafísica transcendental. Não é gratuitamente que se ri da hipótese de Deus.
Mas, segundo a afirmação cáustica de Laplace, grande matemático e astrónomo, é precisamente dessa hipótese que as ciências ( e a tecnologia) não têm qualquer necessidade premente. São a descoberta científica e a invenção tecnológica que, cada vez  mais , governarão o nosso sentido  da história social e o idioma apropriado  a essa história. Já hoje é , em grande medida, na arquitectura e no design industrial  que procuramos a satisfação da nossa exigência de refinamento e de aventura estética. Há sinapses entre as artes  na sua acepção tradicional , a álgebra do engenheiro e o virtuosismo do artífice  (Cellini sintir-se ia maravilhosamente num Ferrari). Nesta simbiose , as linhas divisórias entre o criado e o inventado perderam o seu rigor . Depois de ouvir Duchamp, Brancusi integra as curvas dançantes da hélice na sua escultura. Pressentimos que o mesmo se passará com as artes no próximo capítulo.
Mas a exultação  e a dor, a angústia e o júbilo, o amor e o ódio continuarão a reclamar uma expressão articulada. Continuarão a exercer a sua pressão sobre a linguagem que, sob essa pressão, se torna literatura. A inteligência humana continuará a fazer perguntas que a ciência decretou ilegítimas ou sem–resposta. Ainda que talvez condenada a uma circularidade última, esta persistência é a do pensamento que se torna urgente, quer dizer , metafísico. Um génio de trivialidade daimónica habita o regime imperial das ciências. É possível que a música  conheça melhor, ainda que nada oponha a qualquer definição maior resistência que a natureza desse conhecimento.
Vimos que a armação da poiesis foi, em sentido amplo, teológica; que reside nas regiões que mais se afastam da física (meta-física). Há um compromisso explícito com a transcendência em Ésquilo, em Dante, em Bach, em Dostoievski. Que intervém ainda com uma força indefinida num retrato de Rembrandt ou na noite da morte de Bergotte na Recherche de Proust. O bater das asas do desconhecido morou no coração da poiesis. Haverá , poderá haver,  a partir do ateísmo, filosofia, literatura, música e arte maiores?
Até hoje , o verdadeiro ateísmo tem sido raro. E também não ridiculariza a hipótese de Deus. Pode ser o testemunho de uma sombria privação: 
" Não existe, o sacana”  (Samuel Beckett). O ateísmo pode exigir  uma disciplina moral e um altruísmo extremos. Impõe ao escritor  ou ao pensador uma solidão ainda mais  austera que aquela  que presentemente o nosso modo de vida dissipou. O zero negro que o verdadeiro ateu  pressupõe na e depois da morte torna os seus actos ao mesmo tempo imanentemente responsáveis e, em certo sentido, desesperados. Suponhamos que um autêntico ateísmo possa vir a substituir o agnosticismo-aspirina, o “sopro nem quente nem frio” que invade  hoje  a nossa pós-modernidade. Suponhamos  que esse ateísmo comece a possuir  e a alimentar os mestres  da forma articulada  e os construtores do pensamento.  Poderão as suas obras  rivalizar com as dimensões , as forças  de convicção, de molde a transformar a vida, que já conhecemos?  O que poderá  ser a contrapartida ateia  de um fresco  de Miguel Ângelo ou do Rei Lear? Estas interrogações  nascem de uma possibilidade que não seria pertinente excluir.  E é impossível negar o fascínio das perspectivas  que abrem. Actualmente, a busca  de contacto com seres inteligentes do espaço exterior tornou-se quase uma obsessão. Trata-se-á de uma tentativa premonitória de aliviar o isolamento? De esquecer , por meio do murmúrio amplificado do rádio-telescópio, o trovão hoje demasiado longínquo da criação?
Fomos durante muito tempo hóspedes da criação, e creio que o continuamos a ser ainda . Devemos ao nosso hospedeiro a cortesia da interrogação. “ George Steiner, in Gramáticas da Criação, Ed. Relógio D’Água, pp 368-371
Sobre o livro: “George Steiner inicia Gramáticas da Criação , a sua obra mais radical, com a frase “ Já não temos começos”. Este livro , pela exploração exaustiva da noção de criação no pensamento ocidental , na literatura, na religião e na história, pode ser considerado um opus magnum”.
O fragmento que se acabou de transcrever é a parte final desta obra , a conclusão.
Sobre o autor: “George Steiner é membro do Churchill College em Cambridge. Recebeu vários prémios pelas suas obras , nomeadamente  os das Fundações  Fulbright e Guggenheim, o Prémio Morton Dauwen Zabel da Academia Americana de Artes e Letras e o Prémio Truman Capote. “ 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Recordar Ludwig van Beethoven


No princípio, só a vida existia

No princípio, só a vida existia;
O mundo era o que havia
Ao alcance da vida...
E mais nada.

Tudo era certo, simples, claro.

Quando o passado passar
(E passará, porque o passado é hoje)
E o futuro vier
(E há-de vir, porque o futuro é hoje),
Então, sim; há-de saber-se tudo
E tudo será certo, simples, claro.

Eu, porém, não sei nada.
Reinaldo Ferreira

Ludwig van Beethoven faria 245 anos nesta quinta-feira. Nasceu a 17 de Dezembro de 1770, em Bona, Alemanha. É um dos maiores compositores da História da Música.
Choral fantasy in C minor, op. 80 é uma obra  belíssima para o recordar. Ei-la numa excelente interpretação de Herbert Schuch ao piano, Olga Guryakova: soprano, Marie-Nicole Lemieux: mezzosoprano, Nikolai Schukoff: tenor ,Franz-Josef Selig: bass acompanhados pela Orchestre Philharmonique de Radio France conduzida pelo Maestro John Nelson.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Cândida Ventura morreu de madrugada

Cândida Ventura ,em 30 de Junho de 2011, aos 93 anos
Cândida  Ventura faleceu, hoje, de madrugada, no Hospital de Portimão. Tinha 97 anos.  
Mulher de grande personalidade  soube dar significado à palavra Liberdade. Lutou nas fileiras do PCP, quando a utopia de um mundo melhor se definia sob a bandeira vermelha e Portugal estava capturado pelas  redes da Ditadura. Deixou uma vida para viver uma outra na clandestinidade. Foi a primeira mulher a ascender à direcção do Partido Comunista. Foi denunciada, presa e torturada.  Resistiu  à indignidade, à injúria e à  força vil dos algozes que a acorrentaram . 
Partiu para o exílio e durante longos anos desenvolveu grande actividade, na antiga Checoslováquia.  
Cândida Ventura regressou a Portugal, após a revolução de Abril. Conheci-a e tive o prazer de partilhar momentos de intensa  e rica rememoração de um longo passado que narrou em livro. Registei alguns desses momentos.
Cândida Ventura era uma mulher viva, culta e inteligente. Gostava da vida . Celebrava-a todos os dias.  
Era um prazer  escutá-la, ao longo dos anos em que participou na Tertúlia que realizávamos mensalmente. Estar entre amigos e discernir sobre o mundo era-lhe  de singular importância. 
Partiu , hoje, uma amiga. Uma amiga que leva uma história maior que partilhou comigo. Fico muito mais pobre. A saudade é já a lembrança de a não ter aqui.
Adeus amiga. Até sempre Cândida Ventura.

NOTAS BIOGRÁFICAS

Cândida Margarida Ventura nasceu a 30 de Junho de 1918, em Lourenço Marques, Moçambique. Era ainda criança, quando os pais regressaram a Portugal e se instalaram nas Caldas de Monchique (Algarve), onde a mãe passou a exercer a sua profissão, Professora do Ensino Primário, e o pai  a laborar como funcionário da Administração das Termas das Caldas. A infância foi  passada neste local que lhe propiciou um  crescimento saudável e frutuoso.
A influência do pai , homem culto e defensor de  grandes causas, seria marcante no seu percurso. A serenidade  interior que sempre difundiu, foi para Cândida Ventura a trave mestra do seu desenvolvimento, pelo que o considera o exemplo maior da sua vida.
Em 1929, com 11 anos de idade, é internada no Instituto do Professorado Primário, em Lisboa , a fim de  frequentar o Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho.
Em 1936, entrou para a Faculdade de Letras de  Lisboa e, no ano seguinte, aderiu ao Partido Comunista Português. Nessa época, um forte interesse pelas questões sociais e políticas  já fazia parte do seu quotidiano. Eclodira a Guerra Civil de Espanha e  todas as informações que se obtinham eram partilhadas e analisadas diariamente, no claustro da Faculdade,  com os  colegas mais próximos onde se  destacavam  Magalhães Godinho, Magalhães Vilhena, Pilar Ribeiro, Alberto Araújo, Frederico Alves, Hugo Baptista Ribeiro, Maria Luísa Lami e Piteira Santos com quem casaria mais tarde.
Magalhães Vilhena e Magalhães Godinho foram os colegas que mais privaram com Cândida Ventura devido ao papel importante que cada um desempenhou. Magalhães Vilhena foi o colega mentor político que lhe permitiu o acesso à doutrina marxista, fornecendo-lhe as obras de referência. Magalhães Godinho foi o colega amigo que com ela descobriu e abraçou as primeiras causas políticas.
Tendo efectuado a transferência para Coimbra , terminou, em 1943, a licenciatura em Histórico-Filosóficas na Universidade de Coimbra, após ter desenvolvido uma acção relevante quer a nível estudantil, quer a nível sócio-partidário. Dinamizou  as manifestações e greves estudantis. Integrou diversas organizações académicas tais como a Federação Académica de Solidariedade, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e a Associação Portuguesa para a Paz. Orientou o trabalho do Socorro  Vermelho Internacional e participou na reorganização do Partido Comunista.  Promoveu  várias conferências, cursos de Alfabetização, de Primeiros Socorros e introduziu, nas Sociedades Recreativas,  os “ Clubes de Matemática”.
Detentora de uma excepcional argúcia e de uma sensibilidade jornalística notável, integrou a redacção do jornal “ O Diabo”, publicação progressista, difusora dos ideais socialistas, onde escreviam além de Manuel Campos Lima , Director e posteriormente seu cunhado, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca e muitos outros intelectuais da Resistência Portuguesa. Alguns anos mais tarde, durante a Ocupação Checa, voltaria a escrever para este jornal, numa rubrica semanal intitulada “ Crónicas de Leste”.
No dia em que concluiu a Licenciatura , foi convidada por aquele que seria um perene e fraterno amigo, José Gregório,  membro do Comité Central do PCP, a participar, de imediato, na organização  das greves operárias nacionais que tinham começado na zona industrial do Barreiro. A partir desse momento, o movimento grevista coordenado por José Gregório, Cândida Ventura e outro membro do PCP alastrou às  Minas de S. Pedro da Cova , a toda a região  têxtil do Norte incluindo a zona do calçado, São João da Madeira. Quando terminada essa actividade, passou à clandestinidade como funcionária do Partido, novamente por proposta de José Gregório.
Cândida Ventura afirmava-se  como  uma mulher de vanguarda, uma mulher de forte personalidade, uma verdadeira mulher para além do seu tempo.
Membro do  Comité Central do PCP desde 1949, ( a primeira mulher que  ascendeu à mais elevada estrutura do Partido após a respectiva reorganização) , foi-lhe atribuído  o controle da organização operária da Zona  Norte seguido pelo controle da Zona de  Lisboa, controle  que foi sucessivamente alternando.
Tendo em conta o universo das casas clandestinas, criou a publicação “Três Páginas” destinada às mulheres aí  residentes,  a fim de  promover o respectivo acesso à informação. Foram publicados 68 números, entre Janeiro de 1946 e Junho de 1956. Sucedeu-lhe a publicação, “ A Voz das Camaradas das Casas do Partido”,  que se manteve em laboração  até 1970.
Cândida Ventura permaneceu ininterruptamente dezassete anos em efectiva  actividade na  clandestinidade. Durante esse período, foi acusada duas vezes de ter desenvolvido trabalho fraccional por ter proferido algumas  opiniões divergentes daquelas  que eram oficializadas pelo Partido. Na primeira acusação , ocorrida no ano de 1954 ,foi expulsa do Comité Central e remetida para a  Organização da Margem Sul do Tejo. Controlar a organização da CUF, da CP, da Indústria Corticeira na Zona Industrial do Barreiro e arredores foi a missão que passou a executar, enquanto e apenas na qualidade de funcionária do Partido.  
Foi reabilitada das acusações de trabalho fraccional, após a morte de Staline, tendo sido reintegrada no Comité Central e, em jeito de recompensa, foi convidada a visitar a  URSS. Conhecer a URSS era, então , o prémio maior para qualquer comunista e para Cândida Ventura surgia  ainda acrescido  pela possibilidade de esclarecer  algumas  dúvidas relativas à falta de transparência da actuação doutrinária pela grande pátria marxista.
Logo após ter regressado da URSS e de Praga,  numa reunião do Comité Central do PCP, é novamente acusada de trabalho fraccional . Não lhe foi aplicada qualquer sanção porque teve o apoio e defesa de três membros do Comité, presentes na reunião, em que se destacou a forte e solidária intervenção de Guilherme da Costa Carvalho, tendo-se optado pela falta de fundamentação na acusação.
Em Agosto de 1960, quando se dirigia para um encontro, é presa pela PIDE e sujeita  a torturas extremas, brutais e violentas. No seu livro “ A Resistência em Portugal “, José  Dias Coelho afirma:” O seu porte na polícia e firmeza na prisão torna-a exemplo de dignidade e patriotismo para todos os portugueses antifascistas.”
Julgada e condenada a 5 anos de prisão, sairia em liberdade condicional em 1963 , por se encontrar em perigo de vida, após ter sido internada no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa.  
No “Dicionário de História do Estado Novo”, Vol.I , Fernando Rosas escreveu sobre esta prática  para com os presos políticos: “(…) outros ainda foram postos em liberdade em estado de saúde muito grave, temendo a polícia pelo seu provável falecimento em cárcere, como Cândida Ventura (…).”  Entretanto, no nº 300 do jornal  “Avante” vem publicado  um artigo sobre a acção desenvolvida por Cândida Ventura em prol do Partido e dos portugueses , exortando “todos os portugueses corajosos e para todas as mulheres generosas a fim de que exijam a liberdade para Cândida Ventura”.
Em 1964, através da acção  corajosa da família e de um  solidário movimento popular,  obteve autorização para receber tratamento em Paris. Daí,  partiu para Moscovo onde ficou internada num hospital , vindo a convalescer em Sochi, estância turística situada na orla do  Mar Negro.
Em 1965, foi para Praga , Checoslováquia,  onde permaneceu até 1975 como representante do Partido Comunista Português  junto do Comité Central do Partido Checoslovaco e do Partido Operário Polaco e, cumulativamente, fazendo parte do  Conselho de Redacção da  Revista Internacional ““Problemas da Paz e do Socialismo”. Visitou, com frequência, a URSS e outros países de Leste,  nomeadamente a Polónia, a Bulgária, a RDA, a Roménia e a Hungria.                                                Assistiu e participou no princípio e no fim da  liberalização checa, na “ Primavera de Praga”, na luta contra a ocupação da Checoslováquia  pelas tropas do Pacto de Varsóvia  e posterior “normalização”.
Em 1975 , regressou a Portugal. As descobertas que fizera ao longo de vários anos  tinham-na afastado definitivamente da dogmática cartilha comunista, pelo que abandonou o Partido, em 1976. Todavia, foi apenas em 1981, durante um Comício de solidariedade ao Povo Polaco que Cândida Ventura decidiu anunciar publicamente a sua demissão do PCP,  afirmando  que abandonara o Partido ” por discordar dos seus processos  e orientação e pela sua experiência de vida nos países do «socialismo real» .
Livre de quaisquer  amarras partidárias, concorrera, em 1976,  ao Ministério dos Negócios Estrangeiros onde a sua candidatura viria a ser sucessivamente sonegada por um funcionário  militante do PCP e também se apresentara ao Concurso de Professores para o Ensino Secundário. Nesse ano, foi colocada como Professora de História e de Introdução à Política, no Liceu  de Portimão.  Mais tarde, e após várias candidaturas, obteve colocação no Ministério dos Negócios Estrangeiros, no extinto Gabinete de Estudos e Planeamento,  vindo a ser destacada ulteriormente para a Direcção Geral das Relações Culturais Externas, onde permaneceu  até atingir o limite de idade, imposto para a aposentação.
Em Portimão , além da docência, iniciou um processo de apoio aos emigrantes de Leste, ministrando-lhes aulas de Português e de integração social.
Ao longo da sua vida , Cândida Ventura lutou afincadamente pela justiça social e pela liberdade . A militância ideológica permitiu-lhe a abertura a novos horizontes e a um continuado exercício vigilante da condição humana que foi sempre acompanhado por uma imensa curiosidade  pelo Saber, pelo Conhecimento, enquanto  requisitos para uma realização e actuação plena e eficaz. Assim, já na década de 80, inscreveu-se na Universidade de Nanterre para realizar um  Doutoramento em Sociologia Política, orientado pela Professora Doutora Annie Kriegel, especialista em Movimento Comunista Internacional.
Em carta dirigida ao reitor da Universidade, Annie Kriegel  afirmou sobre a tese de Cândida Ventura:  “(..) C’ est là une étude remarquable et dont j’ attends beaucoup . Sa connaissance du terrain, sa large expérience linguistique , le caractère exceptionnellement étendu  de son savoir  en la matière  font de Mme Cândida Ventura un chercheur de qualité rare.(…) »
Cândida Ventura não pode concluir o Doutoramento devido à morte inesperada de Annie Kriegel, já que o seu objectivo não era a obtenção de um novo título académico. O que a norteava e o que a estimulava era o Conhecimento e o privilégio de poder trabalhar com aquela prodigiosa investigadora e professora, Annie Kriegel,. Em 1986, obteve, contudo, um DEA, Diplôme d’ Etudes Approfondies , em Sociologia Política pela Universidade de Nanterre.
Em 13 de Novembro de 2009, em Bratislava, na Eslováquia, Cândida Ventura, convidada da cerimónia  oficial  comemorativa do  20º Aniversário da Independência,  ( Conferência Governamental), foi homenageada pelo governo eslovaco devido ao importante e corajoso trabalho que realizou ao longo de vários anos  na defesa e promoção de  um verdadeiro socialismo onde a Liberdade pudesse ser efectivamente usufruída por  todos os cidadãos. Nessa cerimónia, foi-lhe atribuída uma medalha honrosa, comemorativa da Fundação Alexander Dubcek, com a seguinte justificação: “A Fundação Alexander Dubcek atribui a medalha comemorativa a Cândida Ventura: A medalha é concedida pelo apoio efectivo ao movimento de regeneração de 1968, na Checolosváquia, pelo apoio à política de reformas de Alexander Dubcek, e pelo esforço de conservação do seu legado e das suas ideias humanistas e de solidariedade na consciência dos cidadãos europeus e do seu Portugal natal. Com gratidão e consideração.  MU Dr. Pavol Dubcek, Presidente da Associação (Fundação) Alexander Dubcek,  Novembro de 2009”.
O  seu nome, juntamente com outros de  figuras relevantes, vem impresso no livro “Alexander Dubcek, Político, Homem de Estado, Humanista” onde estão igualmente  impressas as seguintes dedicatórias:
1ª - Dedicatória do Professor Laluha : “ À estimada Sra. Cândida Ventura , com a maior consideração e os meus agradecimentos de fidelidade às ideias da Primavera de Praga em 1968 e do Sr.  Alexander Dubcek. Prof,. Laluha , Bratislava ,13/11/2009”
2ª -  Dedicatória do Dr.  Pavol Dubcek (Pag. 11) “Com a consideração profunda , dedica Pavol Dubcek:…O meu agradecimento vai também para todos os membros da Internacional Socialista, para os amigos Italianos, Espanhóis, Portugueses e mais admiradores de Alexander Dubcek, pelo reconhecimento e apoio moral do exterior. Em particular quero expressar o meu apreço e agradecimento pelo trabalho e empenho da Sra. Cândida A. Ventura de Portugal, nomeadamente pela angariação dos meios financeiros que ajudaram à publicação desta colectânea.”
 Cândida Ventura vive actualmente em Portimão. Vai completar 93 anos, em 30 de Junho, e continua a ser uma mulher culta, dinâmica e impulsionadora de acções que promovam os direitos humanos. O seu percurso vivencial traduz a história do século XX e XXI. Ouvi-la é presenciar o passado histórico recente. Escutá-la  é não apagar a memória.                                                                                     
Portimão,  5.6.2011
Maria José Vieira de Sousa, in "O socialismo que eu vivi" de Cândida Ventura, Editora Bizâncio