sábado, 28 de novembro de 2015

A clandestina esperança

A vida bate 

Não se trata do poema e sim do homem
 e sua vida
– a mentida, a ferida, a consentida
 vida já ganha e já perdida e ganha
 outra vez.
 Não se trata do poema e sim da fome
 de vida,
 o sôfrego pulsar entre constelações
 e embrulhos, entre engulhos.
 Alguns viajam, vão
 a Nova York, a Santiago
 do Chile. Outros ficam
 mesmo na Rua da Alfândega, detrás
 de balcões e de guichês.
 Todos te buscam, facho
 de vida, escuro e claro,
 que é mais que a água na grama
 que o banho no mar, que o beijo
 na boca, mais
 que a paixão na cama.
 Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
 te acham e te perdem.
 Outros te acham e não te reconhecem
 e há os que se perdem por te achar,
 ó desatino
 ó verdade, ó fome
 de vida!

 O amor é difícil
 mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
 E estamos na cidade
 sob as nuvens e entre as águas azuis.
 A cidade. Vista do alto
 ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
 como se estivesse pronta.
 Vista do alto,
 com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
 é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
 Mas vista
 de perto,
 revela o seu túrbido presente, sua
 carnadura de pânico: as
 pessoas que vão e vêm
 que entram e saem, que passam
 sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
 sangue urbano
 movido a juros.
 São pessoas que passam sem falar
 e estão cheias de vozes
 e ruínas . És Antônio?
 És Francisco? És Mariana?
 Onde escondeste o verde
 clarão dos dias? Onde
 escondeste a vida
 que em teu olhar se apaga mal se acende?
 E passamos
 carregados de flores sufocadas.
 Mas, dentro, no coração,
 eu sei,
 a vida bate. Subterraneamente,
 a vida bate.

Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
 sob as penas da lei,
 em teu pulso,
 a vida bate.
 E é essa clandestina esperança
 misturada ao sal do mar
 que me sustenta
 esta tarde
 debruçado à janela de meu quarto em Ipanema


na América Latina.
Ferreira Gullar , in " A Vida Bate" ,Buenos Aires: IMPSAT, 1999.


Sobre Ferreira Gullar :


"No centro do  programa "Roda Viva", o poeta e escritor Ferreira Gullar, dono de um "poema sujo" e de uma incessante capacidade de criar e de acreditar na criação. Gullar completou a 10 de Setembro de 2010, oitenta anos de vida e vai recitar no "Roda Viva"  trechos de suas vivências, de São Luiz do Maranhão, do exílio, do Rio de Janeiro, das artes plásticas que circundaram a sua poesia dos amigos artistas, dos que foram e dos que virão."

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