quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Não havia nada por dentro

"(...) Ele escancarou a porta e entrou como um fugitivo.
Só quando chegou a  meio do quarto é que conseguiu  ver algo para lá do ofuscante brilho da luz; e nessa altura, como se não tivesse corpo e estivesse a flutuar ao nível dos olhos, surgiu a cabeça duma mulher. Ela dera  um salto quando ele entrou de rompante  no quarto.
Por um momento contemplaram-se mutuamente, mudos, estupefactos. Os cabelos da mulher, soltos sobre os ombros, brilhavam como ouro polido. Olhou para a candura insondável dos seus olhos. Não havia nada por dentro — nada — nada.
Gaguejou um tanto descontrolado: — Preciso... preciso... de... de... saber... O olhar cândido da mulher cobriu-se de sombras; sombras de dúvida, de suspeição, a suspeita fácil dum antagonismo inextinguível, a desconfiança impiedosa do eterno instinto de defesa; o ódio profundo, irracional, incompreensível contra uma emoção abominável que vinha introduzir o seu grosseiro materialismo no combate espiritual e trágico dos seus sentimentos.
— Alvan... eu não suportaria isso...—começou a arfar. — Tenho direito... direito... a mim mesma...
Ele ergueu o braço e ficou com um ar tão ameaçador que ela parou, receosa e recuou ligeiramente.
Ficou de braço no ar... Os anos passariam — e teria de viver com aquela inocência insondável onde flutuavam sonhos de suspeita e de ódio... Os anos passariam — e nunca saberia — nunca confiaria... Os anos passariam sem fé nem amor...
— Podes suportar isso? — berrou, como se ela tivesse ouvido todos os seus pensamentos.
Parecia ameaçá-la. Ela pensou em violência, perigo — e só por um instante duvidou se havia na terra esplendores suficientes que pagassem o preço duma tão brutal experiência. Ele gritou-lhe outra vez:
— Podes suportar isso? — Era o olhar dum louco. Os seus olhos acenderam-se também. Não ouvia o clamor terrível dos pensamentos dele. Julgava ver um arrependimento repentino, um novo acesso de ciúmes, um desejo desonesto de evasão. E com um grito de cólera respondeu:
— Sim!
Ele era sacudido como se lutasse por se libertar de amarras invisíveis. Ela tremia da cabeça aos pés.
— Pois bem, eu não! — Estendeu os braços como se estivesse a afastá-la de si e saiu do quarto. A porta fechou-se com um estalido metálico. Ela deu três passos rápidos para a porta e ficou imóvel, a olhar para o dourado e branco da porta. Nenhum som vinha do outro lado, nem murmúrios nem suspiros; nem sequer se ouviam passos lá fora no tapete espesso. Era como se tivesse expirado logo que partiu — como se tivesse morrido ali e o seu corpo tivesse desaparecido ao mesmo tempo que a alma. Pôs-se à escuta — a boca aberta, o olhar vago. Então, em baixo, muito lá no fundo como se fosse nas entranhas da Terra, uma porta bateu pesadamente; e aquela casa vibrou das fundações ao telhado, mais do que vibraria com a voz do trovão.
Nunca mais regressou.”
Joseph Conrad, in “ O Regresso”, Ed. Estrofes & Versos

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