sábado, 17 de outubro de 2015

As vozes do tempo

As Vozes do Tempo
Por Eduardo Galeano
O Sol
"Algures na Pensilvânia, Anne Merak trabalha como assistente do Sol.
Desde a sua mais distante memória, sempre exerceu estas funções. Todas as manhãs, Anne ergue os braços e empurra o Sol, para que ele surja no céu; e todas as noites baixa os braços, para o deitar no horizonte.
Era ainda muito pequena quando começou a dedica-se a esta tarefa, e nunca deixou de a cumprir.
Há meio século declararam-na louca. Desde então, Anne passou por vários asilos, foi tratada por muitos psiquiatras e engoliu enormes quantidades de comprimidos.
Nunca puderam curá-la.
Por sorte.
O banqueiro modelo
John Pierpont Morgan era dono do banco mais poderoso do mundo e de mais oitenta e oito empresas.
Como era um homem muito ocupado, tinha-se esquecido de pagar os impostos.
Desde havia três anos, desde a crise de 1929, nada tinha declarado.
A notícia desencadeou a ira das multidões arruinadas pela bancarrota de Wall Street e causou um escândalo em todo o país.
Para se livrar da sua imagem de banqueiro voraz, o homem de negócios solicitou o responsável pelas relações públicas do circo Ringling Brothers.
O perito aconselhou-o a contratar um fenómeno da natureza, Lya Graf, uma mulher de trinta anos que media sessenta e oito centímetros mas cujos rosto e corpo nada tinham de uma anã.
Foi assim lançada uma grande campanha de publicidade cuja atracção principal era uma fotografia que mostrava o banqueiro sentado num trono, com ar de bom pai de família e com a mulher miniatura nos joelhos. A ideia consistia em representar o poder financeiro protegendo o povo vítima da crise.
Foi um insucesso.
Pintura  de Paula Rego
Curso de Medicina
Foi num curso de cuidados intensivos, em Buenos Aires, que Rubén Omar Sosa estudou o caso de Maximiliana, a lição mais importante de todos os seus anos de estudos.
Um professor expôs a situação: a senhora Maximiliana, esgotada após uma vida inteira passada sem domingos, dera entrada no hospital pouco tempo antes e todos os dias pedia a mesma coisa:
– Por favor, doutor, pode ver -me a tensão?
O médico fazia uma ligeira pressão sobre o pulso da mulher e dizia:
– Está muito boa. Setenta e oito. Perfeita.
– Ah, obrigada, doutor. E agora, se faz favor, pode ver-me a tensão?
E o médico pegava -lhe mais uma vez no pulso e de novo lhe explicava que estava tudo bem e que não podia estar melhor.
A cena reproduzia-se todos os dias. Sempre que o médico passava perto do quarto da senhora Maximiliana, a vozinha rouca chamava-o e estendia-lhe o braço, qual raminho, uma e outra vez.
Ele obtemperava, porque o bom médico deve ser paciente com os seus pacientes, mas a si mesmo ia dizendo: Esta velha é um bocado chata, e pensava: Tem um parafuso a menos.
Só anos mais tarde compreendeu que ela apenas pedia que alguém lhe tocasse.
As palavras
Na selva do Alto Paraná um camionista recomendou-me que fosse prudente:
– Cautela com os selvagens, ainda há alguns em liberdade por aqui. Não muitos, felizmente. Começaram a fechá-los em parques zoológicos.
Falava comigo em espanhol. Mas não era a sua língua do dia-a-dia. O camionista falava guarani, a língua desses mesmos selvagens que ele temia e desprezava.
Coisa estranha, no Paraguai a língua que se fala é a dos vencidos.
Ainda mais estranho: os vencidos acreditam, continuam a acreditar, que as palavras são sagradas. As palavras que mentem ofendem aquilo que nomeiam, mas as que falam verdade revelam a alma das coisas.
Os vencidos afirmam que a alma jaz nas palavras que a dizem. Se te der as minhas palavras, dou-me. A língua não é uma lixeira.
O mercado global
Árvores cor de canela, fruta dourada.
Mãos acaju embrulham as sementes brancas em grandes folhas verdes.
As sementes fermentam ao sol. Depois, uma vez desembrulhadas, ao ar livre, o sol seca-as e, lentamente, vai-lhes dando uma cor acobreada.
O cacau enceta então a sua viagem sobre o mar azul.
Para passar das mãos que o cultivam às bocas que o comem, o cacau é submetido a tratamento nas fábricas das Cadbury, Mars, Nestlé ou Hershey, e depois é posto à venda nos supermercados do mundo: por cada dólar que entra na caixa, chegam três centavos e meio às aldeias de onde vem o cacau. Richard Swift, um jornalista de Toronto, deslocou-se ao Gana, a uma dessas aldeias.
Visitou as plantações.
Quando se sentou para descansar, tirou do bolso umas barras de chocolate e antes mesmo de poder dar uma trincadela, uma multidão de crianças curiosas rodeou-o.
Nunca tinham provado. Gostaram muito.
O nascimento
No hospital público situado no bairro mais rico do Rio de Janeiro tratavam um milhar de pacientes por dia. Quase todos pobres ou muito pobres.
Um médico de serviço contou o seguinte a Juan Bedoian:
– A semana passada tive de escolher entre duas bebés recém-nascidas. Nós temos um único respirador.
Elas chegaram ao mesmo tempo, moribundas, e tive de decidir qual das duas ia viver.
Não me compete a mim escolher, pensara o médico, que Deus decida.
Mas Deus nada dissera.
Fosse qual fosse a sua decisão, o médico cometeria um crime.
Se não fizesse nada, cometeria dois.
Não havia tempo para tergiversar. As duas bebés estavam no limiar da morte, já tinham começado a deixar este mundo.
O médico fechou os olhos. Uma foi condenada a morrer, a outra a viver.
A saúde
Um enxame de crianças invade o autocarro numa das paragens.
Trazem livros, cadernos e uma data de coisas nos braços, falam e riem-se sem parar.
Falam todos ao mesmo tempo, soltam gritos, agitam-se, empurram-se e desatam às gargalhadas por tudo e por nada.
Um cavalheiro pega-se com Andrés Bralich, um dos mais turbulentos.
– Que é isso, miúdo, apanhaste a doença do riso?
Basta uma simples olhadela para constatar que todos os outros passageiros do autocarro já foram alvo de tratamento e que estão completamente curados.
Mão-de-obra
Mohammed Ashraf não vai à escola.
Do romper do dia ao erguer da lua, talha, recorta, perfura, monta e cose as bolas de futebol que saem da aldeia paquistanesa de Umarkot e rolam para os estádios do mundo inteiro.
Mohammed tem onze anos. Executa este trabalho desde os cinco.
Se soubesse ler, e se soubesse ler inglês, compreenderia o que está escrito nas etiquetas que coloca em cada uma das suas obras: Esta bola não foi fabricada por crianças.
Contra a corrente
As ideias do semanário Marcha mostravam uma certa propensão para o vermelho, mas as finanças do jornal, quanto a elas, estavam mesmo lá dentro. Hugo Alfaro, que além de ser jornalista assumia a função de gerente e desempenhava a perigosa tarefa de pagar as contas, só dava saltos de contente em raras ocasiões:
– Pronto, já temos com que pagar o próximo número!
Tinha sido vendido o espaço publicitário. Ao longo da história universal do jornalismo independente, este género de milagre foi celebrado como uma prova da existência de Deus.
Em contrapartida, Carlos Quijano, o director, empalidecia.
Que horror! Não havia pior notícia do que aquela boa notícia. Havendo publicidade, era preciso sacrificar-lhe uma ou várias páginas, e cada pedacinho de página representava um espaço sagrado e essencial para contestar as certezas, fazer cair as máscaras, sacudir os sacos de lacraus e encontrar a confirmação de que amanhã não seria apenas um outro nome atribuído a hoje.
A ditadura militar que caiu sobre o Uruguai pôs fim aos trinta e quatro anos de existência do semanário Marcha, bem como a algumas outras loucuras.
A prisão
Em 1984, Luis Niño inspeccionou a prisão de Lurigancho por conta de um organismo de defesa dos direitos humanos.
Embrenhou-se naquelas solidões amontoadas e tentou, conforme pôde, abrir caminho por entre os presos nus ou vestidos com andrajos.
Depois pediu para falar com o director da prisão.
Como este estava ausente, quem o recebeu foi o chefe dos serviços médicos.
Luis explicou que vira prisioneiros agonizar, vomitar sangue, muitos deles a arder com febre e atormentados com chagas, espantando-o não ter visto um único médico.
O dito chefe explicou -lhe:
– Nós, os médicos, só intervimos quando os enfermeiros nos chamam.
– E onde estão os enfermeiros?
– Não temos orçamento para os contratar.
O assaltante assaltado
"Na América Latina, os regimes militares mandavam queimar os livros subversivos. Nas democracias de agora, queimam-se os livros de contabilidade. As ditaduras militares faziam desaparecer pessoas. As ditaduras financeiras fazem desaparecer dinheiro.
Um certo dia, os bancos da Argentina recusaram-se a restituir o dinheiro aos seus clientes.
Norberto Roglich depositara no banco todas as suas economias para evitar que os ratos as roessem ou que os ladrões as roubassem. Quando foi assaltado pelo banco, o senhor Norberto estava muito doente, porque os anos nunca vêm sozinhos e a sua reforma não bastava para pagar os medicamentos.
Não tinha outra opção: desesperado, entrou na fortaleza financeira e, sem pedir autorização a ninguém, abriu caminho até ao gabinete do gerente. Fechada na mão, empunhava uma granada:
– Ou me devolve o meu dinheiro ou vamos todos pelos ares!
A granada era de plástico, mas realizou o milagre: o banco restituiu-lhe o seu dinheiro.
Depois, prenderam-no. O procurador sentenciou dezasseis anos de cadeia. Para o senhor Norberto, não para o banco."
Salvador Allende
Fábricas
Estávamos em 1964 e a hidra do comunismo internacional abria muito abertas as suas sete bocarras para devorar o Chile.
A opinião pública era bombardeada com imagens de igrejas em fogo, de campos de concentração, de tanques russos, de um Muro de Berlim no centro de Santiago e de guerrilheiros barbudos que raptavam as crianças.
Houve eleições.
O medo triunfou e Salvador Allende foi vencido.
Durante esses momentos dolorosos, perguntei-lhe o que mais o tinha ferido. Allende contou-me o que se passara ali ao lado, numa casa do bairro da Providência. Uma mulher que em troca de um magro salário se estafava a trabalhar como cozinheira, empregada doméstica e ama, pusera toda a sua roupa num saco de plástico e enterrara-o no jardim dos patrões, para que os inimigos da propriedade privada a não desfalcassem.
A informação global
Poucos meses após a queda das torres, Israel bombardeou Jenine.
Do campo de refugiados palestinianos ficou somente um gigantesco buraco cheio de mortos, esmagados sob os escombros.
A cratera de Jenine era tão profunda como a das torres de Nova Iorque.
No entanto, afora os sobreviventes que revolveram os escombros em busca de familiares e amigos, quem a viu?"?” Eduardo Galeano, in Les Voix du temps, Lux, Montreal, 2011.
Sobre Eduardo Galeano
" Nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1940. Foi jornalista e esteve no exílio na década de 70 e começo da década de 80. É autor de uma vasta obra traduzida em mais de vinte línguas. 
Recebeu o Prémio Casa de las Américas em 1975 e 1978 e o prémio Aloa dos editores dinamarqueses, em 1993. Recebeu também o   American Book Award (Washington University, USA),em 1989 e Prémio à Liberdade da Cultura, outorgado pela Fundação Lannan, dos Estados Unidos.   Escreveu   entre  muitos  outros  livros, a trilogia Memória do FogoAs Veias Abertas da América LatinaO Livro dos     dos AbraçosPalavras AndantesDias e Noites de Amor e de GuerraDe Pernas Pro ArFutebol ao Sol e à Sombra e Mulheres
Faleceu a 13 de Abril de 2015, aos 74 anos, em Montevidéu."

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