terça-feira, 15 de setembro de 2015

Sobre a Morte

"Duas fontes se podem marcar às preocupações de um grande espírito: por um lado, o que aflige ou alegra o comum dos homens, por outro lado, a força de contemplação divina que o lança  no giro dos maiores problemas. Os pés tocam ainda a terra  que constitui para os outros a única base de ser, a fonte  já mergulha na luz alta e plena de que desejariam banhar e nutrir toda a sua vida da alma. Facilmente, por orgulho e descuido ou porque  em segredo nos não queremos colocar num plano inferior, tomamos como característica da profundidade que atingiu um pensamento o ter sentido, só com maior ressonância , maior vivacidade, as inquietações de que nós mesmos nos sabemos possuídos. Não era matéria mais nobre do que o barro das bilhas o barro da estátua vista em sonhos; a imensidade não conseguiu transmuda-la no oiro e na prata que tornavam o colosso precioso. Nem o que se mede pela nossa medida é notável aos olhos do eterno.
Conviria , pois, averiguar-se por qual  dos caminhos chegou ao círculo do génio o problema da morte e se é fundada a opinião  dos que vêem  na maior ou menor intensidade que ele toma  no espírito a escala  porque se deve aferir  o valor de um pensamento. É possível que estejamos  reduzindo em lugar de elevar e que ainda aqui lancemos mão dos artifícios  sem real valor para fortificar e alargar  a ponte que nos liga a um outro mundo distante. A angústia ante a morte , o desepero à ideia  de sulcar um mar  desconhecido e porventura  tenebroso não me parecem compatíveis  com a linha  opolínea  sem a qual não existe o verdadeiro génio; são  ainda uma herança das forças obscuras e revolta s  de que saiu o homem, uma acção de gravidade, não da asa celeste que o aproxima dos deuses. Grande é aquele que revolveu o problema, o tomou serenamente como um dos momentos do pensar e logo, com uma alma imortal, partiu a abraçar mais ricos  e mais amplos conjuntos.
É talvez sinal de prisão ao mundo dos fenómenos o terror e a dor ante a chegada da morte ou a serena mas entristecida resignação com que a fizeram os gregos uma doce irmã do sono; para o espírito liberto ela deve ser, como o som e a cor, falsa, exterior e passageira; não morre, para si próprio nem para nós, o que viveu para a ideia e pela ideia, não é mais existente, para o que se soube desprender da ilusão, o que lhe fere os ouvidos e os olhos do que o puro entender que apenas se lhe apresenta em pensamento; e tanto mais alto subiremos quando menos considerarmos a morte como um enigma ou um fantasma, quanto mais a olharmos como uma forma entre as formas.”
Agostinho da Silva, in “ Diário de Alcestes”,(p.49-50),Ulmeiro,Lisboa, Abril de 1990

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