quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Educação sentimental

 
Educação sentimental
Por António Lobo Antunes
"Ainda me lembro da imensa chapada que me aplicou por haver escrito soburdinada em lugar de subordinada
A minha educação escolar foi pavorosa. Aos seis anos entrei para a escola do Senhor André, cujo corpo docente era composto pelo próprio Senhor André, uma besta de estupidez e violência que passou a bater menos na gente a partir do momento em que o pai de um colega lhe aplicou uma sova, a Senhora, esposa do Senhor André, que tinha bexigas e nos ocupava as manhãs, tão ignorante quanto nós, a Mãe da Senhora, uma velhinha sentada no pátio, que me dava ideia que nem nos via e um rafeiro chamado Pirata, de coleira de guizo ao pescoço, que andava por ali a cheirar, numa espécie de quintal que servia de recreio. Levava-se a marmita com o almoço e, durante o almoço, o Senhor André chegava, comia na marquise, palitava-se com a mão livre à frente, e principiava a nossa educação entre bofetadas e gritos. Era careca, feio e arrancava pêlos do nariz durante as aulas, que transformava em bolinhas com o indicador e o polegar, mandava um aluno comprar-lhe um maço de cigarros Três Vintes e começava a nossa preparação para a vida com a frase
- Ora hoje como é domingo

a que nós respondíamos em coro

- Não, Senhor André, terça-feira

(ou quarta ou quinta)

acendia o cigarro e desencadeava o massacre. Não passava de um selvagem sádico que o irmão mais novo da minha mãe, que fora seu aluno, recordava com pavor. Tornei a vê-lo muito mais tarde quando, viúvo, fazia a corte a uma vizinha nossa chamada Lourdes, e pasmei: imaginava-o imenso e era baixinho, imaginava-o um hércules, e era um merdas, estendeu-me a mão e não lhe respondi. Espero que a vizinha Lourdes, gorda e catequista, não lhe tenha correspondido aos entusiasmos. Ainda me lembro da imensa chapada que me aplicou por haver escrito soburdinada em lugar de subordinada: o Senhor André era um purista, e tirava um prazer perverso em sovar crianças, aquele anão.

Do Senhor André mudei para o Liceu Camões e o reitor que nos tratava por

- Meu homem

um tirano mais polido mas, para nós, igualmente detestável. Nos intervalos não se podia correr, o que fazia a alegria dos gordos. Os professores cagavam-se de medo diante dele, que se aproximava sempre a tilintar chaves que eu imaginava servirem para fechar as masmorras onde devia trancar aqueles que tivessem o azar de possuir um bocadinho de vida. Um dos contínuos, o senhor Ribeiro, vendia lingerie às professoras, num gabinetezito perto da minha turma, e eu pasmava para as transparências sedutoras que elas lhe compravam e nunca vi a minha mãe usar. Fazia-me confusão que aquela roupa se misturasse com os rios de Moçambique e as tábuas de logaritmos, que era tudo a que eu tinha direito, em lugar de criaturas esvoaçantes cuja simples ideia me punha os calções a ferver e ansiava por ser crescido para contemplar as maravilhas sedutoras de perto, numa exaltação à beira do desmaio. Nenhuma tábua de logaritmos me provocou o mesmo efeito. Gostava dos professores de Ginástica que davam aulas de fato completo e gravata, obrigando-nos a subir espaldares e a dar voltas a correr ao ginásio. Um deles chamava-se dr. Serra e, se por acaso um de nós olhasse para trás, gritava logo

- Não olhes para trás que para trás mija a burra

que continuo sem entender bem. Vi várias burras mijarem e nenhuma mijava para trás, mijavam para baixo. Mas o dr. Serra insistia

- Não olhes para trás que para trás mija a burra

com dois ou três cabelos a atravessarem-lhe o crânio de orelha a orelha, com os meridianos da Geografia. No ginásio havia os espectáculos dos serões para trabalhadores, nesses dias enchiam tudo de cadeiras e as lições eram na sala de aulas, com discursos do professor para a turma estarrecida. Sobretudo o dr. Infante, que contava histórias extraordinárias passadas com ele e a sua moto:

- Um dia, filhos, ia eu na minha Norton setecentos e cinquenta, perigosa, por vezes temível, a cento e quarenta à hora, falham-me os travões, aparece-me um muro e eu digo para mim mesmo Alto, João, prepara o mortal. Salto

(gesto com os braços à roda um do outro)

e vou cair em perfeita flexão de pernas em cima do muro. Ó idiota lá ao fundo: estás a ouvir ou quê?

e nós parvos de respeito: perfeita flexão de pernas em cima do muro é obra. Também gostava do professor de Ciências Naturais, que pedia sempre ao contínuo

- Senhor Amândio, traga a flor do lírio

um monumento de plástico que se desmontava pétala a pétala enquanto ele se perdia em explicações incompreensíveis. E detestava o professor de Moral que me enfiava a mão nos calções e me perguntava se eu já tinha leite na pilinha. Essa deixou-me tão perplexo que interroguei o meu pai

- O pai acha que eu já tenho leite na pilinha?

O meu pai emergiu do cachimbo e do livro de boca aberta

- Que história é essa?

esclareci-o

- O professor de Moral perguntou-me se eu já tinha leite na pilinha

e a cara do meu pai transformou-se de uma maneira aterradora. Levantou-se de um salto e saiu porta fora. Pareceu-me escutá-lo a gritar qualquer coisa ao telefone, no género

- Diga-lhe que eu vou lá e lhe parto a cara

e de ter ficado a andar um bocado de um lado para o outro da sala. Não sei mais pormenores mas, à cautela, volta e meia espiava a pilinha. Continuava seca. O professor de Moral nunca mais me interrogou acerca de líquidos nutritivos. Comuniquei a alguns companheiros que me escutaram num pasmo igual ao meu. Tive, mais tarde, uma intuição da coisa, infelizmente não graças à lingerie do senhor Ribeiro mas ao subir à corda na ginástica. Aquilo roçava nos calções, sentia-se um estremeção rápido, e ficava uma humidadezita esbranquiçada. Os meus sócios e eu estudámos a humidade mas permanecemos na dúvida. E, pela reacção do meu pai, seria melhor que não fosse leite algum. Aliás não parecia: era apenas uma manchinha pegajosa, que desaparecia num instante. Claro que não contei em casa. Guardei segredo em relação à família por causa das coisas. Ainda hoje guardo. É um mistério só meu. Mas notei que, à medida que crescia, o meu pai andava mais de olho em mim. Felizmente não me levou ao médico. Mas não me importava que me levasse às clientes do contínuo, segurando-me o pescoço para eu não fugir, e lhes pedisse

- Importam-se de ver se por acaso o meu filho?

Mas não o fez. Hoje em dia ter-lhe-ia ficado grato se o tivesse feito. Mas pronto: temos de aceitar, contrariados, que até os pais têm falhas."
António Lobo Antunes, em Crónica publicada na VISÃO 1142, Sexta feira, 30 de Janeiro de 2015

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