quinta-feira, 23 de julho de 2015

Leitura obrigatória em momentos de crise

As escolhas dos intelectuais franceses nos anos sombrios da Ocupação
Por Luciano Trigo
"Em Junho de 1940, após uma resistência pífia, Paris – então a capital cultural e artística do mundo – e boa parte do território francês foram ocupadas pelos nazis, e somente quatro anos depois a cidade seria libertada pelas tropas aliadas. A conduta dos intelectuais e artistas locais durante a Ocupação é um tema que até hoje desperta paixões e mobiliza a opinião pública na França. Em tom de reportagem, “Paris ocupada – Os aventureiros da arte moderna: 1940-1944 (L&PM, 368 pgs. R$ 44,90), o premiado ensaísta e romancista Dan Franck faz um balanço impressionante do período: embora deixe claras as suas simpatias e antipatias pessoais, ele vai além do julgamento simplista que divide a França da época entre resistentes e colaboradores, sempre buscando contextualizar e fundamentar com um rigoroso trabalho de apuração as escolhas individuais e tomadas de posição política de cada um. E mostra que, entre os extremos do heroísmo e da traição, da arriscada resistência clandestina e da tentadora capitulação total ao inimigo, houve muitas gradações – e, com raras excepções, a maioria optou em algum grau pelo-meio termo, por alguma forma de acomodação.
“Paris ocupada” não é um livro de historiador, mas uma ágil narrativa em mosaico, uma colecção de episódios reveladores das tragédias individuais e da tragédia colectiva da França ocupada. Dessa forma, Franck consegue recriar de forma convincente a atmosfera das ruas e vielas, dos cafés e teatros parisienses que padeciam sob o jugo do invasor. “A Cidade-Luz se ensombreceu”, escreve Franck. “Os museus se esvaziaram na meticulosa operação para proteger dos nazis as principais obras de arte do país, e teve início um dos mais sombrios períodos da longa história de Paris, com intervenção política, toque de recolher, perseguição a judeus e a outras minorias, prisões arbitrárias, violência, medo e suspeita.”
Nesse contexto – e lembrando que naquele momento ninguém sabia quem ia vencer a guerra –, a necessidade de conciliar o trabalho e a subsistência, ou a fuga (quando essa alternativa se apresentava, já que em muitos casos o problema imediato era ficar vivo), com o imperativo moral de se posicionar em relação ao invasor, gerou muito dramas e tragédias pessoais. Por outro lado, entre os mais velhos muitos haviam testemunhado os horrores da Primeira Guerra se transformaram em pacifistas radicais, mesmo que o preço fosse viver de joelhos; outros eram movidos pela ideologia (numa época em que a palavra fazia algum sentido), ou pela canalhice pura – o que não exclui a genialidade artística, caso do antissemita Céline, autor de “Viagem ao fim da noite”. Mas Franck lembra sempre que esses homens e mulheres eram reais, de carne e osso, indivíduos que tinham que lidar com questões familiares e afectivas, com crises financeiras, casamentos desfeitos, traições e inimizades, pequenas humilhações, enfim, todas as angústias decorrentes das exigências mesquinhas do dia a dia: editores esmagados que não tinham papel para imprimir seus livros, cineastas e produtores em busca de bobinas de filme, escritores trabalhando com medo da censura, outros morrendo sob tortura.
Como em seus outros livros, Franck aborda as trajectórias de tantos personagens e conta tantos episódios reveladores, chocantes ou inusitados que seria impossível abarcar tudo no curto espaço de uma resenha. Mas vale citar três personagens que costumam ser associados a posições heróicas, quando na verdade não foi bem assim: Jean-Paul Sartre, que se omitiu em diversos momentos importantes e retomou tranquilamente suas actividades académicas após um curto período no front (registado nos “Diários de uma guerra estranha”), enquanto colegas eram perseguidos; André Malraux, que se alienou em sua casa de campo e só aderiu à Resistência nas vésperas do fim do conflito, em 1944; e Marguerite Duras, que trabalhava junto ao departamento responsável por censurar as obras “inadequadas” do ponto de vista dos nazis. Mas a lista de personagens famosos cuja conduta Franck esquadrinha é longa: André Breton, Louis Aragon, Antoine de Saint-Exupéry, Louis-Ferdinand Céline, Drieu de la Rochelle, Arthur Koestler, Paul Éluard, Matisse, Jean Giono, Jean Cocteau etc.
Depois de “Boémios”, que retratou a vida de artistas como Picasso, Matisse e Modigliani de 1900 a 1930 (lançado no Brasil pela editora Planeta), e “Libertad!”, que abordou o período 1930-1939, com ênfase no impacto da Guerra Civil Espanhola na comunidade artística (ainda sem tradução), “Paris ocupada” é o terceiro volume de uma ambiciosa série de Dan Franck sobre a vida intelectual na França no século 20. Leitura obrigatória em momentos de crise, de relativismo moral e de polarização política, como o que estamos atravessando."  Jornal Globo, 19.07.2015

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