quinta-feira, 25 de junho de 2015

Num grito de alma sumido

Assim assim
Por António Lobo Antunes
"Às vezes olho os dois palitos, quietos, inúteis, e dá-me ideia que se parecem com o meu marido e comigo, cada qual inclinado para a sua banda
Acho que o meu marido já não gosta de mim. Acho que já não gosto do meu marido. Mas depois há as crianças, logo três, e a ideia da separação custa-me por causa delas, para além da reacção dos meus pais que, há quase quarenta anos, se aturam um ao outro. Praticamente nem se falam. A frase que lhes oiço mais vezes é
- Passa-me o sal
e a passagem do sal de um para o outro é o único traço de união entre eles, aquele frasquinho pequeno de vidro facetado, com uma tampa cromada. Dantes havia também os palitos
- Passa-me os palitos
mas o dentista mandou-os substituir por fio dental e o paliteiro, de plástico, um prisma triangular com um buraco numa das pontas, levou sumiço da mesa e habita agora no aparador, entre um gato de loiça e a fotografia da minha sogra. O gato de loiça tem bigodes pintados a doirado e a ponta da cauda partida. O paliteiro dois palitos solitários dentro. Às vezes olho os dois palitos, quietos, inúteis, e dá-me ideia que se parecem com o meu marido e comigo, cada qual inclinado para a sua banda. Antes do fio dental virava-se o paliteiro de buraco para baixo, a bater com o indicador na ponta oposta até sair um lá de dentro. O meu marido usava-os com as mãos à frente, como quem toca gaita de beiços, e eu tinha sempre a impressão de ir ouvir música enquanto ele escarafunchava, de olhos no vazio. Se calhar ainda gostávamos um do outro nesse tempo. Quando acabava de os usar partia-os em dois pedaços, depois em quatro, depois em oito e formava poliedros com aquilo. Mas fartava-se depressa da geometria, apanhava tudo e deitava-os no prato no meio dos restos de comida, a olhar para mim de banda como se fosse eu que jogasse fora. E dessa maneira comecei a perceber que tínhamos deixado de gostar um do outro. Se calhar, se pudesse, fazia o mesmo comigo, de modo que, ao deitá-los fora, me sentia fazer parte das espinhas do goraz. A seguir o meu marido agarrava no prato, levava-o até à cozinha, carregava com o bico do pé no pedal do balde dos sobejos, cuja tampa se abria num salto, inclinava-o para o interior do balde e entornava lá dentro, empurrando com o garfo, as sobras do peixe
(como eu ouvia o barulho do garfo a raspar na loiça)
tirava o bico do pé do pedal, cuja tampa descia numa prontidão de vergonha, poisava o prato e o garfo no lava-loiças e sentava-se na sala, no outro sofá
(sempre no outro sofá)
a olhar para a janela, não para além da janela, a olhar para a janela, de perna cruzada e mãos dadas consigo mesmo a pensar
(percebia-se logo)
- O que é que eu faço aqui?
Julgo que nenhum de nós sabia muito bem o que fazia ali, perto do outro e tão distantes: planos de assassinato? Ideias de partir? Pensamentos do género
- Como é que eu embarquei neste casório?
planos sem solução do tipo
- de que maneira me livro disto?
enquanto as crianças, logo três, iam e vinham entre o quarto e a sala, lembrando-nos um passado que não devia ter existido, entregues a ocupações que nenhum de nós entendia e a conversas que mal escutávamos, parecidas com ele, parecidas comigo, já sonolentas, já maçadoras, uma delas, a semana passada
- O pai gosta da mãe?
e o meu marido a fingir que não ouvia, a rapariga, que nasceu entre os dois irmãos, e a precisar que eu lhe cortasse as unhas, resolvendo o problema
- Os pais gostam sempre um do outro
numa indiferença despachada, comigo, protegida por uma revista, a questionar-me
- E agora?
o meu marido sorriu-lhe
- Pois claro
o
- Pois claro
mais pálido que já existiu neste mundo, sentindo o peso da aliança no dedo como uma algema sem remédio, eu, num grito de alma sumido
- Estamos aqui não estamos?
a lembrar-me de um rapaz de dezoito ou dezanove anos que, há quinze, me esperava à saída das aulas, meio decidido, meio tímido, e me acompanhava quase até casa, a conversar comigo já nem me recordo de quê. O que se seguiu foi simples e relativamente rápido: o primeiro beijo, assim assim, mais beijos assim assim, a apresentação aos meus pais, a apresentação aos pais dele, os cursos acabados, os primeiros empregos, as contas à soma dos dois ordenados feitas num canto de papel, as contas às despesas, as intimidades assim assim em quartos de pensão baratos, uns
- Amo-te
dispersos no final, a gravidez inesperada e o casamento um pouco à pressa, com os sogros de ambos desconfiados até que, na semana passada, tudo se esclareceu finalmente: acabado o jantar calhou coincidirmos, cada qual com o seu prato, diante do balde dos sobejos, prontos a empurrá-los com o garfo lá para o fundo, um de nós a perguntar
- Qual despeja o outro primeiro
sem respondermos despejámo-nos ao mesmo tempo e, como estávamos cansados, fomos logo para a cama, afastados um do outro, enquanto as crianças continuavam por ali. Não sentiste que era como se estivéssemos de novo num quarto de pensão? Não achaste que foi assim assim, ambos de barriga para cima a olharmos o tecto às escuras? Não sei porque carga de água passada meia hora repetimos a dose e assim assim de novo. Juntos no balde até ao fim da vida. Pensando bem abrir a tampa e irmo-nos embora, cada qual numa direcção diferente, para quê?"
António Lobo Antunes, Crónica publicada na VISÃO 1154, de 16 de Abril de 2015 

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