quinta-feira, 28 de maio de 2015

Para lá do Tempo

"Nasci com um sorriso a aflorar nos lábios. A minha mãe nunca se cansava de o referir. Sorriso que passou a ser um traço identificativo  e talvez o mais sedutor da minha personalidade. Mantive-o ao longo da vida. Era um sorriso único, realçava a minha mãe. Cativei-a infindamente. Ela tinha, porém, um sorriso maior do que o meu. Era a luz que sempre se acendeu desde o meu primeiro dia. Iluminava tudo à sua volta. E que falta me faz essa luz.( As mães não deveriam partir. Deixar-nos órfãos.)
 A azáfama que causou o meu nascimento  obrigou à requisição de familiares. A minha avó espanhola, andaluza de Sevilha, deixou Lisboa e rumou ao Norte. Era a minha avó materna. Recém viúva de um gentleman alemão. Efusiva e decidida, passou a comandar, com mão forte, os empregados da casa e os netos.  Isolou  a minha mãe e com ela ,lá fui eu, também, para os aposentos mais recônditos da casa. Pretendia resguardar-nos da agitação de uma casa habitada por adultos e por crianças e dos intensos ruídos que campeavam pela rua devido à festa da cidade. Nos primeiros dias, a minha mãe aceitou as regras impostas com algum agrado e também pela conformidade que tinham com os preceitos, então, usuais e seguidos pelas  parturientes. Os partos  eram feitos em casa. No entanto, havia  uma terapia definida para uma boa convalescença que passava pelo repouso e por uma  alimentação específica. À minha mãe, apesar de ter uma mãe bem esclarecida e aberta, foi-lhe totalmente aplicado esse tratamento.  Ao fim de meia dúzia de dias, o isolamento tornou-se insuportável. Era uma fatalidade a que minha mãe não queria  entregar-se. De rebelião em rebelião, decidida e  doce, ora filha dedicada , ora mãe independente, conseguiu amaciar a relutância da  minha avó e mudar-se para o quarto que lhe pertencia.
 O calor e a confusão da casa em nada me perturbavam. Dormia feliz e cândida como compete a um recém- nascido. Estava na minha casa , no lugar que me haviam reservado. O quarto dos meus pais. Enorme, de tecto alto, mas acolhedor e confortável. Vivi nele os primeiros meses de vida  até completar um ano. Só lá voltei a dormir, quando a Escarlatina me tomou e foram obrigados a isolar-me por causa do contágio. Tinha eu cinco anos.
A minha avó era uma mulher lindíssima . De forte personalidade marcava a sua presença onde quer que estivesse. A minha mãe era a sua única filha. Regozijava-se por estar numa casa onde já existiam três crianças, ou seja, três netos  à sua guarda. Mulher de cultura , viajada por uma Europa diferente deste Portugal de então, não se coibia de adoptar os “ bons” costumes portugueses quando lhe serviam. A organização que impôs àquela casa, nesse tempo do meu nascimento , revolucionou-a  quer pela novidade , quer pela emergência de procedimentos antigos e bem portugueses. Enquanto exigia aos empregados, um rigor total no desempenho das respectivas funções, oferecia-lhes vestuário mais moderno e aumentos nas remunerações. À cozinheira alterou-lhe a programação. O menu teria de ser actualizado. Manteria o que de bom e saudável existia nele e introduziu novos pratos que fizeram dores de cabeça à pobre cozinheira. O meu pai , um genuíno nortenho, nunca aceitou estas alterações. Um bom cardápio era constituído apenas por pratos da cozinha tradicional portuguesa e predominantemente nortenha. As luzes vermelhas começaram a acender . Do   intermitente ao permanente foi um salto curto.  Até que, após uma quarentena de dias interminável , a minha avó , senhora inteligente e perspicaz, fez as malas e partiu.  A casa readquiriu  a sua  forma original. A minha mãe retomou as rédeas e tudo prosseguiu o seu curso próprio.
 Foi, nessa altura, que chegou a Fernanda. A minha mãe precisava de alguém que ajudasse nos cuidados com as crianças.
A Fernanda foi o pilar de uma infância protegida e acarinhada. Jovem, sorridente e infindamente meiga, ela conquistou-nos de imediato. A casa passou a ter mais uma residente indispensável: a nossa governanta, a imprevista preceptora, a suposta irmã mais velha a quem queríamos de olhos fechados. Nem ao meu irmão devotávamos tanto carinho. Ele era o primeiro filho desta  grande prole familiar. Excedia-nos em mais de uma década. Andava sempre lá por cima, no topo, enquanto nós , crianças ruidosas,  apenas tentávamos ser crianças longe de tudo  que nos permitisse confirmar a rejeição que evidenciava pelas nossas brincadeiras. Com ele, o temor superava qualquer terna tentativa de aproximação. Mas descobrimos a Fernanda.  E ao  ficar com a Fernanda a nossa infância teve ainda mais fulgor.
Recordo-a intensamente. Alta. Loira com uns olhos grandes , do tamanho do mundo e com  a cor do céu num dia luminoso. Os cabelos entrançados, longos e sedosos. De pele muito branca, era esbelta mas forte. Aquela solidez que têm as pessoas do campo. Não de qualquer campo. Dos campos que eram lavrados por gente simples, honrada e de coração aberto. Daqueles que compõem o norte deste país. País que se esqueceu ( agora) de que a liberdade se construiu ali também,  com ensaios seculares de preparação.
Tocá-la era uma bênção. Quando nos elevava, a  felicidade soltava-se. Ria-se ela e exultávamos nós. Um solfejo de cristalinas gargalhadas que não a cansavam, apesar da exigente e constante fila para a repetição do gesto. Que belos eram os dias com a Fernanda. A minha mãe tinha nela a outra que a completava. Descoberta a Fernanda, os dias, os meses, os anos voavam em harmoniosa sucessão.
E foi assim que cheguei aos quatro anos. Data memorável, porque pela primeira vez tive consciência de um nascimento. A minha mãe preparara-nos para a vinda de um outro irmão ou irmã. Sim. Um menino ou uma menina? Naquele tempo, ninguém sabia o sexo da criança antes do nascimento. O dia estava a aproximar-se, dizia-nos a Fernanda quando a data estava em acelerado processo decrescente. Os dedos das mãos ajudavam-nos a eliminar os dias. Sem ter muito a consciência do que era o tempo e ainda menos de todo o processo de parto, rejubilava sempre que a contagem diminuía.
Naquele dia, a Fernanda fechou-se connosco no quarto dos brinquedos. Era no tempo das cerejas. Brincáramos pela quinta durante a manhã. As cerejeiras olhavam-nos em apetitosos cumprimentos. Havia cestos  com cerejas de um vermelho tão intenso que fugir-lhes era quase criminoso. Creio que começou muito cedo esta minha paixão por aquele fruto. Os subtis tons de carmim eram um apelo para a visão e um perfume para o olfacto. Acrescia a ingénua vaidade infantil de tentar  converter um galho de cerejas em brinco. Habilidade e gozo que se estabeleceram em desafio rotineiro. As cerejas deram-me dores intensas de overdose. Ficou-me quase como uma doce compulsão que prezo em manter.
Ora, voltemos ao dia do parto. O quarto dos brinquedos era uma divisão espaçosa, de grande área, uma antiga sala, que fora convertida para nos albergar em tempo de frio e de chuva. Era aí que passávamos inúmeros  momentos de brincadeira. Os brinquedos estavam arrumados em prateleiras e o chão coberto por uma enorme carpete. Num armário, numerosos livros compunham o espólio.
O quarto de brinquedos situava-se na zona próxima da cozinha e da copa, bastante afastado dos quartos. Longe da zona onde o parto ia acontecer. Qualquer ruído era abafado pelos sons mais próximos. E alguns, quase em surdina, aportavam ali,  vindos da cozinha . O alegre cantarolar da cozinheira, os sons roucos  das panelas, o barulho concertado dos utensílios culinários,  a risada de quem por lá entrava e os apelos de um melodioso vozear  vindo do campo. Todos se congregavam num ambiente que dava à casa a sua personalidade viva. Era a minha casa. Uma casa que me amava e que , todos os dias , me surpreendia. Como era feliz nela.
Estávamos nós em grande brincadeira, com a Fernanda  a orientar e a determinar o ritmo apropriado, quando o meu pai apareceu de sorriso aberto. O meu irmão, um menino, acabara de nascer. Podíamos ir conhecê-lo. Dóceis e silenciosos, entrámos no quarto dos meus pais. A minha mãe sorria-nos. Estava sentada na cama, com um minúsculo menino ao colo. Embrulhado em mantas brancas de pura lã, mal se via o reduzido rosto. Estava a dormir e nem sequer deu por nós. Em bicos de pé, tentei esquadrinhar bem aquela pequena criatura à procura de um aceno, de um olhar que denotasse a nossa presença. Mas nada. O meu irmão viera para dormir. Não estava  interessado em conhecer-nos ou  apresentar-se.
Quando a minha irmã mais nova nasceu , eu tinha apenas um ano. Não me preparara para o seu nascimento. Recordo que, de repente, é esse o termo exacto, havia mais alguém em casa. Um ser que não largava a minha mãe e merecia dormir no berço que fora meu.  Por essa altura, a minha mãe já deixara de me amamentar e eu passara a dormir   no quarto das raparigas (das meninas), onde estava a minha irmã mais velha.  Nascer para mim, nessa idade,  era qualquer coisa estranhíssima. Nem sequer tivera ainda tempo de entender esse processo na natureza.
As minhas memórias desse tempo não existem. Creio que absorvi algumas recordações por tanto terem sido reproduzidas por outros ao longo da minha vida. Apropriamo-nos delas com se nossas fossem. “A melhor parte da nossa memória está deste modo fora de nós”, dizia Proust.
A memória de um nascimento começa para mim  aos quatro anos, com o nascimento do meu irmão. Com o tempo e no decurso pacífico dos dias, todos fomos envolvidos por este novo irmão.  Era o menino de todos nós que a mãe, com imenso desvelo,  partilhava para que todos nos sentíssemos importantes." Maria José Vieira de Sousa, in " O livro que já escrevi"

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