quinta-feira, 14 de maio de 2015

Manoel de Andrade, poeta libertário

Manoel de Andrade, poeta brasileiro,  foi uma das vítimas da Ditadura no Brasil. Exilado , percorreu cerca de dezassete países da América Latina, apregoando os seu ideais libertários e recitando os seus poemas. Desse tempo, saiu um registo de um longo rememorar que nos transporta à época onde a utopia iluminava os trilhos da esperança num novo Mundo. « NOS RASTROS DA UTOPIA, uma memória crítica da AMÉRICA LATINA, nos anos 70»
Para Manoel de Andrade ,este livro de Memórias é, acima de tudo, a longa crónica de um poeta que sonhou com o impossível, e cruzou tantas fronteiras, acreditando que   pudesse mudar o mundo com seus versos. É também  um   convite  a  viajar  por caminhos   e por  um  tempo fascinantes, em que o    sonho e a       esperança comandavam os rumos da História. Um tempo em que se repartia a vocação   solidária de um mundo melhor. Eis   porque este livro é o quinhão da utopia      que me    resta
Ler estas Memórias é um um convite ao não esquecimento da tirania e da opressão que vitimou muitos povos. É recordar  muitos daqueles que  lutaram para que o mundo fosse mais justo e mais livre. Manoel de Andrade foi um deles. Rendemos-lhe homenagem , transcrevendo algumas das belas páginas que compõem « NOS RASTROS DA UTOPIA, uma memória crítica da AMÉRICA LATINA, nos anos 70»

A visita de famoso crítico
Por Manoel de Andrade
     "Hernán Rodríguez Castelo[1] ainda não era o famoso crítico de arte e literatura quando apareceu na casa do poeta onde morei, com o objetivo de entrevistar-me. Havia ouvido falar de mim e desejava escrever uma matéria sobre o poeta cuja imagem peregrina se comentava na cidade. Sentamo-nos sobre os degraus da porta de entrada e ali conversamos longamente. O texto foi publicado em 22 de agosto de 1970 na coluna Mini-ensaio que ele assinava semanalmente no jornal  El Tiempo. Depois disso nunca mais encontrei Hernán em Quito. Em meados de 2008, trinta e oito anos depois, revendo o longo acervo de recortes de jornais, revistas, publicações e entrevistas que marcaram meus anos pelo continente, encontrei a matéria publicada por Hernán com o título: Acerca de un  poeta comprometido y sus poemas.  Resolvi procurá-lo na Internet e através de um comentário que fiz a um artigo seu publicado pelo Instituto Cervantes, consegui seu e-mail e lhe enviei uma mensagem que nunca chegou. Agora, em Novembro de 2011, escrevendo estas memórias sobre minha primeira passagem pelo Equador, tentei novamente contactá-lo para saber o nome do poeta que me hospedou e em cuja casa ele me entrevistou. Enviei-lhe o texto da entrevista que me fez em 1970 e uma semana depois, em 27 de Novembro, recebi dele, por e-mail, a seguinte resposta:
Manoel  de Andrade:
          Ha sido gratísimo tener noticias tuyas, y me ha dado pena saber que un correo electrónico tuyo de hace tres años  no tuvo respuesta. Es que nunca me llegó.
Te agradezco que por estas mismas vías -- para las que no hay distancias -- me hayas hecho llegar transcripción del  "Microensayo"· que te dediqué en "El Tiempo", cuando tu visita a Quito, en 1970. Yo no he tenido holgura para recoger todos esos pequeños ensayos que a Benjamín Carrión le gustaban tanto. El me dijo un día que a él le habría gustado escribir "microensayos", pero que como yo ya lo hací.
Como esto va a salir en mi página web (www.hernanrodriguezcastelo.com) voy a incluir ese "Microensayo" titulado "Acerca de un poeta comprometido y sus poemas", que vio la luz el 22 de agosto de 1970, para que quien esto lea sepa quién era, ya en 1970, ese gran poeta
Me dices: "Te pregunto si te acuerdas el nombre del poeta en cuya casa me entrevistaste. Escribo mis memorias de los años en que viajé por 16 países de América Latina y me gustaría tener esa información".
En la Página Cultural del diario "El Tiempo", que yo por esos años mantenía, hallo, el jueves 19 de agosto de ese año 70, la noticia de que, llegado a Quito expulsado del Perú, leerías esa noche, para unas pocas gentes de cultura y poetas, tus "Poemas para la libertad", en el departamento de la poetisa Sheila Bravo. Debe haber sido allí nuestra entrevista. (Sheila Bravo murió este mismo año 2011).
En otra comunicación me cuentas que has publicado un libro recientemente. Quedo a la espera de mayores noticias y, de ser posible, el mismo libro. Un fuerte abrazo a la distancia, 
Hernán.[2]
Entrevista:
EL TIEMPO , QUITO, 22/08/70 – MINI-ENSAYO
Hernán Rodríguez Castelo

        “Já não se pode falar de amor
         sem pensar no tempo imenso da semeadura
         nas sementes grávidas de esperanças
         parindo flores novas sobre o continente
         e depois
         redescobrir a vida nas espigas maduras
         e saber que há uma colheita de trigo
         a  espera de ser pão”.

         Isto era o fundamental: que Manoel de Andrade sim é um poeta. Havia aberto seus “Poemas para a Liberdade” quase ao acaso e havia sentido este vento novo agitar o tempo e as espigas.
Antes  que Manoel chegasse a Quito  viera através dos teletipos a notícia com sabor de alerta: “Lima, 1º (AP). – Manoel de Andrade Rita, brasileiro, foi expulso do Peru por realizar atividades “que constituem um manifesto perigo para a tranquilidade pública e segurança do Estado.
As aspas mostravam que a A.P. colocava aquilo a cargo do governo peruano. E o comunicado terminava: “Não se revelaram  as acusações contra Andrade Rita”.
Pois bem, as acusações contra Manoel de Andrade se resumem em uma: faz versos.
POETA MAIOR
         Em 1968 Manoel de Andrade era já poeta. Havia triunfado no I Concurso de Poesia Moderna em seu estado do Paraná. Incluído em “Poesia viva”, importantes editoras se interessavam por sua obra. A imprensa falava de “poeta maior” e antologias recolhiam seus versos (como a Revista Civilização Brasileira). Tinha vinte e oito anos e, deixando atrás seus abscuros anos em Rio Negrinho, Estado de Santa Catarina, triunfava quer financeiramente, quer nos cenários literários.
         Rapidamente se fartou  de tudo  aquilo, tudo aquilo lhe pareceu vazio.
          “Cantar o que acontece  é a melhor maneira de identificar-se com o tempo em que se vive”, pensou, e  deixando vagar o olhar em torno viu a miséria dos grupos marginalizados, o protesto da juventude, os sequestros para procurar a liberdade revolucionária, a morte de Guevara na Bolívia, as ânsias de um parto em toda a América, a insurgência de um clero novo que se proclamava como Igreja dos pobres.
          Todo homem que não  seja cego nem duro já viu um dia tudo isso e já tomou  sua resolução. Manoel de Andrade resolveu cantar a hora  e  as ânsias da América. Eis por que me era dado conversar com ele aquela noite na casa de outro poeta, que o recebera como a um irmão.

NÂO CARTEL.  SIM CARTAZES.

          Conheço muitos fazedores de poemas que encalharam, alguns definitivamente, no cartel. Daí que este seja meu primeiro cuidado. Leio para Manoel de Andrade um poema cartelista  e ponho à prova seu critério artístico.

“Isso é uma coisa discursiva”, me diz, franzindo a ampla testa até os bigodes que lhe caem dos dois lados da boca. “Isso não tem dimensão poética”.
E explica o que para ele seja aquela  “dimensão poética”: “O poeta não pode deixar de colocar o coração e a  beleza”. “Deve haver violência e também ternura. Seu ódio  é um gesto de amor para o povo”.
Parece chegada a hora de propor-lhe o assunto decisivo:
“Qual lhe parece que é a diferença entre a prosa e a palavra poética?
 “O poder de síntese” --- responde após franzir-se um instante, e segundo seu costume, me explica: “Poder de síntese... fazer de cada verso um universo. E ter  o cuidado de acabar. Em todo poema meu há um epílogo. O epílogo é muito importante”.
EU SOU UM JOGRAL”
           Conversamos ainda sobre outros assuntos. Repassamos suas peripécias. Apenas “convertido” à  poesia  de protesto teve que abandonar o Brasil porque se sentia perseguido. Foi para a Bolívia. Deu ali recitais de sua poesia em praças públicas, em minas. Viveu em sobressalto. Chegava, entregava seus cantos e partia. Intermediava os caminhos entre sua fugitiva visita e guardiões da ordem que iam buscá-lo. Sua “Saudação a Che Guevara” era fixada como cartaz em número de três mil. Acabou fugindo para o Peru. Ao Peru levava sua primeira publicação: “Poemas para la Libertad”, editada na gráfica da Universidad Mayor de San Andrés, de La Paz. No Peru umas semanas de ocultamento. Cantava em um café. Certo dia os universitários peruanos  pediram-lhe seus grandes cantos revolucionários. E quando o levaram ante o Intendente, sobre a mesa havia milhares de exemplares desses cantos mimeografados. Foi posto em nossa fronteira. Por um azar caprichoso uma maleta de poemas escapou de todas as vigilâncias e todas as aduanas, e hoje podemos ler seus “Poemas para a Liberdade” em Quito.
          “O poeta”, diz Andrade como resumindo sua trajetória de poeta comprometido, deve ir ao mundo, captar sua essência e dá-la em canto”.
            “O poeta deve ser concebido como um tipo altivo, valente”.
            “Eu sou um jogral”.
            “Não busco a fama. Quero identificar-me com a dor do homem latino-americano”.
            “Se alguém se diz  poeta revolucionário deve ser consequente com o que faz”.
            “Deve fazer uma arte que caminhe. Que cante o continente por onde passa”.

             E ali estão seus versos, de claro corte whitmaniano:
            
              “canto a  multidão que entra e sai pelos portões das fábricas
              aos que vêem nascer o dia no asfalto das rodovias
              aos lavadores de carros e aos que vendem loterias
              canto aos coletores de lixo e aos guardiões noturnos
              as longas filas de pessoas que esperam os ônibus nas praças...”
   
         Dou as boas-vindas a Manoel de Andrade no Equador. Em nosso país que eu saiba, até onde  me alcança a memória, a ninguém se perseguiu por fazer poesia autêntica. Uma única ocasião, recordo, alguém ameaçou a um pintor   --- a Benedetti, concretamente ---   com fazê-lo “colocar na fronteira”. Mas quem o ameaçou assim foi outro pintor. Um pintor comunista. E o  crime que se  reprochava  a Benedetti era haver falado  mal  de  nossa   lamentável   Casa  da  Cultura.   Eu  disse  a  Benedetti  que  não  fizesse caso de fanfarronadas semelhantes. Que neste país da Escola Quitenha o artista recebia carta de naturalização. Que Manoel de Andrade faça poesia em nossa cidade e que nos dê a conhecer. E nos dê o testemunho de poeta honestamente comprometido com as angústias da América. Fazer uma reflexão sobre o sentido da arte nesta hora difícil do mundo, sempre resultará altamente proveitoso.  

Canção de amor a América
          Em meados de agosto escrevi em Quito o mais belo poema da minha fase latino-americana. É uma longa descrição de tudo o que já havia passado pelos caminhos da América. Cito-o também aqui como um lírico e comovente testemunho de uma experiência marcada pelo sentimento de indignação e da amargura em tantas paisagens humanas descoloridas pela miséria e pela injustica, pela verdade histórica que transformei em versos e pela imensa esperança que contagiava a tantos sonhadores como eu que perseveravam em acreditar numa utopia social que trouxesse a redenção dos oprimidos:
Canção de amor à América

Ai, América,
que longo caminhar!

Eu venho com o trigo do meu canto
minha ternura aberta 
e o meu espanto;
e do fundo de mim e do meu assombro
e pelos meus lábios de vinho e gaivotas,
te trago o meu cantar de caminhante.

Para ti, amada minha,
para teu corpo de cansaço
e por tua fome
eu trago esse meu verso frutecido.

Eu venho com o rocio do amanhecer
sou o cantor da aurora
o que desperta
o que anuncia a vida e a esperança.
Eu sou o mensageiro destes anos
o cantor deste tempo e destas terras
eu sou daqui,
desde a Patagônia até o Rio Bravo
e daqui alço meu canto para o mundo.

Ai América,
que longo caminhar!

Eu sou como uma ave que passa
apenas um cantor errante,
mas se na minha voz há uma sinfonia delirante,
é para golpear-te, América,
para  entoar teu grito emudecido.

Agora venho cantar-te
e meu canto é como o dia e como a água
para que me entenda sobretudo o homem humilde.
Agora venho cantar-te 
mas em teu nome, América,
eu só posso cantar com a voz que denuncia.
Eu não venho cantar o esplendor de Machu  Picchu,
a Grande Cordilheira e a neve eterna;
não venho cantar esta América de vulcões e arquipélagos
esta América altiplânica da lhama esbelta e da vicunha;
venho em nome de uma América parda, branca e negra,
e desde Arauco a Yucatán,
venho em nome desta América indígena agonizante.
Eu venho sobretudo em nome de uma América proletária,
em nome do cobre e do estanho ensanguentado.

Eu hoje não venho cantar um continente de paisagens,
não venho cantar o mar que amo,
os lagos escondidos na montanha,
nem os rios que correm ao fundo dos vales florescidos.
Não, eu não venho cantar este trigo que se nega a quem semeia;
eu venho por uma história mais sincera,
venho falar do homem que vi e ouvi pelos caminhos.

Ai América, 
que longo caminhar!

Eu venho falar do camponês
de seu poncho roto e o seu colchão de  terra,
de sua resignação e o seu misterioso silêncio,
de seu gesto incontido que em alguma parte se levanta,
de sua fome saciada com o sangue dos massacres.

Eu venho falar do mineiro e sua morte prematura,
de uma vida vivida na penumbra tumular dos socavões,
da silicose escavando dia a dia os pulmões dos operários jovens.
Venho contar das mulheres de Yanuni, Catavi e Siglo Veinte
das palhiris bolivianas com quem falei um dia,
dessas desamparadas viúvas do mineiro massacrado ou soterrado,
que buscam no lixo do estanho
o pão diário dos seus filhos.
                                                             
Eu não venho cantar o encanto colonial destas cidades,
os altares espanhóis recobertos com o ouro dos Incas,
as grandes praças onde se erguem as estátuas dos libertadores.
Venho cantar as favelas, barriadas e tugúrios,
as povoações calhampas e as vilas-misérias,
Venho denunciar a tuberculose e o frio,
venho em nome dos meninos sem pão e chocolates,
em nome das mães e de suas lágrimas.
Eu venho falar por toda voz que se levanta,
por uma geração reprimida com fuzis,
venho falar das universidades fechadas
e com a marca das tiranias encravada nas paredes.

Eu venho denunciar falsas revoluções
e o oportuno pacifismo,
venho denunciar um tempo de desterros e de torturas,
eu venho alertar sobre um terror que cresce uniformizado
e sobre estes anos em que cada promessa de paz é uma mentira.

Ai América,
eu venho em nome do homem e sua agonia,
em nome de uma infância sem doçura.
E por isso eu venho falar de outra colheita
e de um vale semeado na montanha.
Eu venho anunciar o mel e a espiga
e a terra fértil e doce e repartida.

Ai América,
em nome de uma América americana,
eu venho convocar-te para a luta.
Eu canto para isso, amada minha,
para pronunciar um tempo já chegado entre nós todos,
para dizer-te destes punhos que amadurecem em cada gesto,
e destes rifles que disparam em cada peito.

Ai América,
que longo caminhar!

Rumo ao norte 
ao sul
a leste ou a oeste,
eu avanço atravessando essas nações.

Oh caminhar, caminhar...
e saber sentir-se um caminhante!
Pois é tão triste morrer a cada dia,
morrer com os punhos abertos e o coração vazio.
Morrer distante do homem e sua esperança
morrer indiferente ao mundo que morre
morrer sempre,
morrer pequenamente
quando a vida é um gesto de amor desesperado.

Oh caminhar, caminhar...
mas caminhar como caminha o rio e a semente,
conhecendo a completa plenitude em seu destino.
Oh caminhar!
Caminhar
e saber-se um dia fruto.
Caminhar 
e sentir-se um dia mar.

Ai América,
que não exista a dúvida em meu caminho,
que somente esta paixão de justo me enamore.
Fui prisioneiro,
mas outra vez sou pássaro,
outra vez um caminhante,
e volto a abrir a alma com meu canto.

Hoje me detenho aqui...
levanto minha voz, minha acusação, meu juízo.
Declamo minha bandeira de sonhos,
proclamo minha fé,
recolho meu testemunho e me vou.

Eu sou o jogral maldito
e bem amado.
Meu canto é um grito de combate
e eu não canto por cantar.
Eu parto deixando sempre uma inquietude,
deixando numa senha a certeza de uma aurora.

Eu sou o cantor clandestino e fugitivo,
aquele que ama a solidão imensa dos caminhos.
Passo despercebido de cidade em cidade,
em algum lugar público eu vou dizer meus versos
e ali conheço amigos e inimigos.
Mas sempre pude encontrar o grande companheiro,
o homem novo,
aquele que traz a face da esperança,
aquele que se aproxima em silêncio
e com um gesto inconfundível me saúda.

Ai América, 
que longo caminhar!

Eu venho amada América,
para iluminar com meu canto este caminho.
Trago-te meu sonho imenso, latino e americano
e meu coração descalço e peregrino.
Mas quando sinto meu sangue escorrendo-se nos anos
e a vida se me acabe antes de ver-te amanhecida;
Quando penso que é tão pouco, amada minha,
o que eu posso dar-te em um poema;
Ai, quando penso nessas flores de sangue que murcharam,
nestes iluminados corpos que tombaram,
e que ainda não pude fazer por ti quanto quisera;
Ai, se com o tempo eu descobrir
que este lírico fuzil que empunho não dispara,
ai América...
quem dirá que a intenção que tive foi sincera.

          Os poemas que concebi pelos caminhos, que integraram e posteriormente se acrescentaram às edições que sucederam à edição boliviana, foram todos escritos em castelhano.[4] Não é uma tarefa fácil escrever em outro idioma porque a poesia somente pode beber seu legítimo encanto no seio da língua materna. Como também não foi fácil traduzir aqueles poemas para o português e verter os escritos no Brasil para o castelhano. Creio mesmo que a poesia, pela sua imprescindível síntese, seu ritmo, sua métrica e rimas, sua mágica sintaxe e pelo mistério das palavras, é intraduzível.  Dante Alighieri, com sua imaculada aura de poeta já dizia: "Nada que seja harmonizado pelo vínculo das Musas pode ser transferido do que lhe é próprio para outra língua sem perder a sua doçura." Apesar desta e de tantas célebres opiniões negando a possibilidade da tradução e da versão da poesia, por um lado e, por outro, o contágio de quatro anos na vivência diária do castelhano dificultaram o pleno regresso à minha lírica cidadania   e à pátria dos meus versos. Mas digo isso apenas como poeta e não como revolucionário onde minha bandeira tem todas as cores humanas. Na verdade, prefiro confessar que minha inabilidade para traduzir meus próprios poemas do castelhano para o português me “foi cobrada” pelo crítico literário Wilson Martins quando a longa Canção de amor a América foi publicada pela primeira vez no Brasil. No artigo Poesia cerebral, em 2 de agosto de 1980, no Caderno B, do Jornal do Brasil, o exigente crítico paranaense comenta:

    (...) A inspiração épica que falta ao poema de Carlos Nejar (ou que não se pode realizar por inadequação da forma adotada) encontra-se no de Manoel de Andrade, aqui evocado como contraste à poesia cerebral e hermética, ou supostamente hermética, e como demonstração quase didática das noções acima referidas (“Canção de amor à América”, na revista Encontros com a Civilização Brasileira, 19 de janeiro de 1980). Embora maculado aqui e ali por insidiosos castelhanismos (“desde o fundo de mim”; “desde aqui alço meu canto”; “não venho cantar a esta América” etc.), é, com certeza, um dos belos poemas do nosso tempo, integrado nos seus conflitos e perplexidades, e no qual o lirismo e epopéia se combinam (no sentido químico da palavra) para formar uma terceira enteléquia (a enteléquia poética, alimentada pelo mundo exterior); a contaminação linguística, que se explica por circunstâncias de ordem biográfica, talvez concorra para induzir o sentimento de uma identificação latino-americana que não existe nos fatos, mas pode existir na poesia (ou que existe apenas em poesia)."
Manoel de Andrade, in « NOS RASTROS DA UTOPIA, uma memória crítica da AMÉRICA LATINA, nos anos 70»,Ed. Escrituras, S.Paulo, Brasil, 2014


[1] Hernán Rodriguez Castelo, (Quito 1933) é atualmente considerado um dos  mais lúcidos intelectuais equatorianos. Crítico e historiador de arte, literatura e cinema, jornalista, ensaísta e dramaturgo, recebeu vários prêmios nacionais e internacionais e publicou até hoje 107 livros. Seu perfil de grande humanista surge quando organizou e escreveu o prólogo de uma das maiores obras culturais realizadas no século XX no Equador: a Biblioteca de Autores Equatorianos de Clássicos Ariel, em 100 volumes.
[2] Manoel de Andrade:
     Foi gratificante ter noticias tuas e lamentei saber que um email teu de três anos atrás não teve resposta. É que nunca me chegou.
     Te agradeço que por estas mesmas vias - para as quais não há distância - me hajas feito chegar a transcrição do  "Microensaio" que te dediquei em “El Tiempo” quando de tua visita a Quito, em 1970. Não tive folga para recolher todos esses pequenas ensaios que Benjamin Carrión tanto gostava. Ele me disse um dia que teria gostado de escrever "microensaios", mas que como eu já o fazia ...
     Como  isto vai sair no meu site (www.hernanrodriguezcastelo.com)    vou incluir este "Microensaio" intitulado "Sobre um poeta comprometido e seus poemas," que viu a luz em 22 de agosto de 1970, para que quem este leia, sabia quem era, já em 1970, esse grande poeta.
     Me dizes: "Te pergunto se lembras o nome do poeta em cuja casa me entrevistaste. Escrevo minhas memórias dos anos em que viajei por 16 países da América Latina e gostaria de ter essa informação."
     Na Página Cultural do diário "El Tiempo", que eu por aqueles anos mantinha, acho, na quinta-feira 19 de agosto desse ano 70, a notícia de que chegado a Quito expulso do Peru,  lerias naquela noite para umas poucas pessoas cultas e poetas, teus "Poemas para a Liberdade" no apartamento da poetisa Sheila  Bravo. Deve ter sido ali nossa entrevista. (Sheila Bravo morreu este mesmo ano de 2011).
     Em outra comunicação  me contas que publicaste um livro recentemente. Fico na espera de mais notícias e, se possível, o livro.
Um forte abraço a distância, Hernán

[3] Reproduzimos aquí a entrevista em nossa tradução para o português. A mesma pode ser lida, em castellano, no site citado, acessando o link:
[4] Alguns leitores talvez estranhem que uso sempre o termo castelhano e não o espanhol para me referir à língua que se fala nos países hispano-americanos. É que na verdade não existe o idioma espanhol. Na Espanha falam-se quatro línguas: catalão, basco, gallego e o castelhano como língua predominante entre os peninsulares e na América.

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