sábado, 25 de abril de 2015

Uma tese premonitória do 25 de Abril

José Medeiros Ferreira e a tese que previu o 25 de Abril 
Este texto resulta de uma conversa do jornalista, em meados de Janeiro de 2014, com Medeiros Ferrreira, que morreu em Março do mesmo ano. A sua intervenção no Congresso de Aveiro, em 1973, que gostava de recordar, definiu, pela primeira vez, aqueles que viriam a ser os objectivos com que o Movimento das Forças Armadas fez a revolução de 25 de Abril de 1974: Democratizar, descolonizar e desenvolver, os célebres "três D".  
Por Rui Soares  
"No 3.º Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro de 1973, uma tese subscrita por um exilado na Suíça previa a queda do regime às mãos dos militares. No entanto, este estudo de José Medeiros Ferreira foi mal recebido e não foi considerado nas conclusões do conclave. “As Forças Armadas já deram ao Governo um período excepcional para a resolução política do problema colonial. E diga-se em abono da verdade que oferecer dez anos para resolver politicamente uma guerra é raríssimo nos tempos que correm”, escreveu Medeiros Ferreira no seu contributo intitulado Da necessidade de um plano para a Nação. Para chegar a esta conclusão, o historiador partia de uma reflexão: “O Exército é a instituição que mais se confunde com a Nação. E, embora o Exército seja objectivamente um instrumento da política das classes dirigentes, a instituição, enquanto tal, é interclassista e nacional. Semelhante natureza decorre da existência de um serviço militar obrigatório que torna presentes todas as classes sociais no seio da instituição.” A tese, lida em Aveiro pela mulher de José Medeiros Ferreira, que se encontrava exilado desde o Verão de 1968 e recebera no Outono daquele ano o estatuto de refugiado político das autoridades helvéticas, não esquecia as consequências da guerra colonial na relação das Forças Armadas com a sociedade. A especialização ditada pelas três frentes de guerra – Guiné, Angola e Moçambique – e a criação de corpos especializados de elite (comandos, pára-quedistas e fuzileiros) favoreceu o enquadramento dos militares pelo regime. 
Contudo, teve um efeito perverso e contraditório com os objectivos da ditadura. “A própria guerra, porém, se bem que obrigando as Forças Armadas a tarefas medíocres e incompatíveis com a sua função nacional, deu-lhe dimensões sem precedentes na história pátria”, escreveu Medeiros Ferreira. Já então estudioso do futuro das relações externas de Portugal no âmbito da Europa, o autor antevia problemas: “As Forças Armadas isolam-se assim do todo nacional e são impedidas por tais funções de se orientarem para o aperfeiçoamento do sistema defensivo, tendo em vista ataques ou meras pressões do exterior.” Foi a partir da leitura do livro de António de Spínola Por uma Guiné melhor, editado em 1970 pela Agência Nacional do Ultramar, que José Medeiros Ferreira trabalhou. “Era de 80% a percentagem dedutiva-intelectual, a que juntava a experiência empírica da minha passagem pela tropa em 1967/68”, reconheceu ao PÚBLICO em Janeiro de 2014.

No entanto, o livro de Spínola teve consequências. Costa Gomes, enquanto comandante da região militar de Angola, disse que a tropa estava naquele território para fazer respeitar as suas fronteiras. “Ele não disse que a presença militar era para defender a integridade dos territórios ultramarinos, não repetiu o slogan do regime, mas defendeu a missão política possível”, comentou. “O pensamento estratégico da instituição militar estava a mudar no sentido de obrigar o Governo de Marcello Caetano a defender objectivos ao alcance dos meios militares portugueses”, referiu Medeiros Ferreira: “As Forças Armadas não se iam oferecer muito mais tempo ao regime.” Esta tese percursora, redigida no Natal de 1972, não foi acolhida pela oposição ao regime. “Quando regressou a Genebra a minha mulher contou-me que a tese não tinha sido bem recebida. Aliás, não faz parte das conclusões que, entre outros, foram feitas por Gomes Canotilho”, recordou José Medeiros Ferreira: “A minha tese afrontava as teses do PCP.” O historiador José Pacheco Pereira estava presente em Aveiro aquando da apresentação da tese. “A maioria das pessoas não prestou atenção. Mas houve protestos, recordo uma mulher jovem que afirmava ser da Amadora dizer conhecer . os militares e que a tese era mentira”, lembra. “A maioria das pessoas ali presente tinha relações com o PCP e viam na tese de Medeiros Ferreira a reminiscência do putschismo do republicanismo histórico”, conta Pacheco Pereira. Em clara contradição, “com a tese do levantamento nacional armado de Álvaro Cunhal descrita no Rumo à Vitória”. Pacheco Pereira contextualiza, por fim, o Congresso de Aveiro: “O ambiente era de um comício contra o regime, era tudo a preto e branco, contra o regime e os esquerdistas contra o PCP”. Assim, a tese de um outsider exilado, como era José Medeiros Ferreira, careceu de apoio e atenção. Por isso, sob a férula do PCP, os sectores mais tradicionais da oposição, os socialistas e os comunistas, estavam unidos, isolando a direita socialista e social-democrática e parte dos velhos republicanos que eram anticomunistas e defensores das colónias portuguesas. Esta “unidade”, que correspondia às posições teóricas do PCP sobre a estratégia da oposição, facilitou uma enorme hegemonia dos comunistas sobre todo o congresso, das teses, muitas vezes com origem nos núcleos regionais e profissionais onde tinham mais influência, à própria condução dos trabalhos, constituição das mesas e controlo sobre a ortodoxia das conclusões. No entanto, o sector que realmente ficava de fora eram os esquerdistas, que, desde os chamados “sectores não reformistas da CDE”, católicos radicalizados, o proto-MES de Jorge Sampaio, Wengorovius, e outros, e os grupos ligados às comissões de base socialistas e às brigadas revolucionárias, aos diferentes grupos maoístas, não só estavam fora do congresso, como o atacavam com veemência. Ora, bastava esta marginalização do esquerdismo para em 1973 isso significar que o congresso estava longe de representar toda a oposição e mesmo os sectores mais dinâmicos dessa oposição, em particular no movimento estudantil e, em embrião, no movimento sindical renovado que iria dar origem à Intersindical, onde os comunistas partilhavam o poder com sectores operários e dos serviços, que mais tarde vão aparecer ligados ao MES.

Na época, estas diferenças de opinião não eram meigas, nem amigáveis, mas bastante duras. Os “sectores não reformistas da CDE” escreviam o nome do congresso com “democrático” entre aspas e os maoístas contestavam o congresso às claras e organizaram-se durante o seu decurso para, em certas secções, fazer aprovar moções que os comunistas recusavam. Havia projectos de teses que tinham ficado pelo caminho, como uma oriunda do PCP (ML) assinada pelos nomes fictícios de “M. Ribeiro” e “J. Gregório”, na verdade Militão Ribeiro e José Gregório, nomes de dois dirigentes comunistas já falecidos, considerados militantes destacados de um PCP que não era “revisionista”. Era uma clara provocação e foi censurada num processo de selecção que ninguém controlava. Este conflito centrou-se durante o congresso na secção que incluía a “educação”, onde seria suposto discutir-se o movimento estudantil e que acabou à pancada. Compreende-se porquê: a maioria da sala era de estudantes esquerdistas, que se tinham reunido numa dupla clandestinidade em acampamentos e nos pinhais à volta de Aveiro, para levar o congresso a tomar posições anticoloniais, sobre a queda do regime e sobre a participação nas eleições, claramente contra a orientação do PCP. Esses estudantes chegaram a uma sala no andar superior do cinema onde este decorria e encontraram uma mesa constituída por militantes do PCP e da UEC que ninguém tinha escolhido e que fez tudo para evitar votar um documento hostil, acabando a reunião manu militari. Já contei esse incidente, que me opôs a Lino de Carvalho, e Rui Bebiano, actual director do Centro de Documentação do

25 de Abril, contou que nesse dia “fugira” duas vezes, uma do “serviço de ordem do congresso”, outra dos polícias de choque. O outro pólo de conflito no congresso traduziu a mesma vontade de controlo político do PCP e ocorreu com a tese de Medeiros Ferreira sobre o papel das forças armadas, apontando quer os riscos de um golpe de direita, quer as possibilidades de um derrube do regime pelos militares, assente na trilogia do “descolonizar, democratizar e desenvolver”. Num certo sentido, essa foi a tese mais premonitória do congresso, violentamente atacada pelos sectores do PCP. Assisti a essa sessão e recordo-me de ver uma jovem mulher, claramente comunista, a vociferar contra os militares que ela, que vivia na Amadora, dizia conhecer muito bem na sua violência pró-regime. À data em que enviou a tese para o congresso, Medeiros Ferreira vivia exilado na Suíça e tinha integrado o Grupo Revolução Socialista e a revista Polémica, em que ele era o único que não era excomunista, como António Barreto ou Eurico Figueiredo. A sua reflexão, como a de Manuel Lucena, também colaborador da Polémica, estava mais próxima de um socialismo radical do que do esquerdismo predominantemente maoísta, e acompanhava uma mudança de temas e análises que veio a permitir uma renovação do pensamento da oposição. O PCP contrariava como podia estas “inovações” esquerdistas, usando alguns dos seus intelectuais nesse combate, como Vital Moreira escrevendo sobre Marcuse, ou Sottomayor Cardia discutindo o “pensamento de Ulianov”, ou seja, Lenine para efeitos de censura.  Foi neste contexto que se realizou o Congresso da Oposição Democrática e, se abstrairmos destas mitologias heróicas, podemos dar-lhe a sua verdadeira dimensão como acto de resistência e coragem, face a um regime que ninguém pensava que iria acabar um ano depois. " (Nuno Ribeiro) Centro de Documentação do 25 de Abril,da UC

Diário de Lisboa, pág. 1, 8 de Abril de 1973

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