segunda-feira, 27 de abril de 2015

O ano de 1968 por Manoel de Andrade

Manoel de Andrade, poeta brasileiro,  foi uma das vítimas da Ditadura no Brasil. Exilado , percorreu cerca de dezassete países da América Latina, apregoando os seus ideais libertários e recitando os seus poemas. Desse tempo, saiu um registo de um longo rememorar que nos transporta à época onde a utopia iluminava os trilhos da esperança num novo Mundo. « NOS RASTROS DA UTOPIA, uma memória crítica da AMÉRICA LATINA, nos anos 70»
Em jeito de homenagem, transcrevemos algumas das páginas destas magníficas Memórias que retratam momentos de contestação e repúdio pela   falta  de  Liberdade  que causou  tanto  sofrimento  e   perseguição  àqueles  que    lutaram por um mundo melhor e justo. Manoel  de Andrade leva-nos até ao memorável    ano de 1968. 
  Um imenso agradecimento  com todo o nosso apreço ao escritor  de Curitiba.
Edson Luís Lima Souto foi assassinado por um soldado da PM,
com um tiro no peito, em 28 de Março de 1968
(Acervo da Biblioteca Nacional)
4 - O ano de 1968.        

      "Quando cheguei a Curitiba, no último dia de março, o meio estudantil estava fervendo com a revolta pela morte do estudante Edson Luiz de Lima Souto, ferido mortalmente com um tiro no coração, pela polícia do Rio de Janeiro, no restaurante universitário Calabouço. Contudo, esse não seria um fato isolado na agenda do movimento estudantil no histórico calendário daquele ano. Na verdade o ano de 1968, no Brasil e no Mundo, deixou um registro indelével em todos aqueles que aninhavam na alma o sonho de um mundo melhor. No plano internacional, o ano começara com a auspiciosa notícia, em 05 de janeiro, de amplas reformas e a volta da liberdade de expressão na Tchecoslováquia. Procurando distanciar-se do stalinismo e do autoritarismo de Moscou, o político Alexander Dubcek, acenava para seu povo com o tão sonhado socialismo humanitário. Era a chamada Primavera de Praga, cujas flores se abriram deslumbrantes para o país e para o mundo, mas seus frutos não chegariam a amadurecer. Por outro lado, ainda em janeiro uma importante notícia corre o planeta: as tropas americanas começam a ser batidas no Vietnam pela ofensiva vietcongue, chamando a atenção internacional e do próprio povo norte americano que começa a reagir contra a crescente participação militar dos EUA na guerra.
Enquanto isso, também em janeiro, no que tange ao Brasil, é gratificante relembrar que o PC do B -- antecipando-se a uma dezena de siglas revolucionárias que ao longo do ano iriam recrutar quadros para combater a Ditadura  --  já localizava seus primeiros militantes nas margens do Rio Araguaia, com o objetivo de politizar os trabalhadores da região para uma guerra revolucionária contra o Regime Militar.
      Na agenda de 1968, contudo, um fato lamentável marcou a história do Ocidente: o assassinato, em abril, de Martin Luther King Jr, marcava a interrupção do seu imenso sonho. O sonho de que brancos e negros se sentassem um dia na mesma mesa da fraternidade e que a sua pátria oprimida pela segregação se transformasse num oásis de  liberdade e de justiça. E quando agosto chegou, novamente a amargura invadiu nosso território de sonhos. Apesar do apoio do presidente Tito da Iugoslávia e Ceaucescu, da Romênia, sete mil e quinhentos tanques e duzentos mil soldados do Pacto de Varsóvia fazem murchar as flores da Primavera de Praga e suas sementes somente germinariam vinte anos depois -- quando o estrondo da queda do Muro de Berlin em 09 de novembro de 1989 ecoou uma semana depois sobre o massacrado sentimento nacional do povo tcheco -- florescendo novamente num pacífico levante popular, conhecido como Revolução de Veludo, que traria novamente Dubcek ao poder, agora já sem os sonhos de um mundo socialista, mas de um mundo que ressurgia identificado com os princípios do liberalismo, consolidando  a ganância do capitalismo através da marcha inexorável para a  globalização.À margem desses grandes registros o ano de 1968 tem outra agenda, onde a contra-cultura corre paralela com os seus paradigmas equivocados e os fatos políticos noticiam, em junho, o assassinato do senador Robert Kennedy e a eleição de De Gaulle. Em 27 de setembro, António de Oliveira Salazar, no poder há quatro décadas, é afastado do  Governo por motivos de doença, mas a Ditadura continuou a oprimir Portugal até Abril de 1974. Nos Estados Unidos da América, Richard Nixon é eleito Presidente, em 5 de  novembro.
      No Brasil, o ano de 1968 não terminaria, como bem sentenciou  Zuenir Ventura. ao titular seu livro. O mês de dezembro começa com o teatro Opinião destruído, no Rio de Janeiro, pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e no dia 12 a negação da Câmara dos Deputados para processar o deputado Marcio Moreira Alves, abre a maior crise política da República depois da Era Vargas. As Forças Armadas e a Polícia Federal entram em prontidão e, no dia seguinte, é decretado o AI-5 com o fechamento do Congresso, a súbita paralisação da vida nacional e todas as trágicas consequências que sangrariam o país por vinte e um anos.

5. Um coração de estudante num peito perfurado.

      O personagem mais importante de 1968 foi o movimento estudantil. Duramente reprimido desde o golpe militar e tendo a própria sede da UNE (União Nacional dos Estudantes) saqueada e incendiada pelo CCC em 1º de abril de 1964  --  o próprio dia do golpe --, o movimento estudantil reconquista gradativamente o seu espaço político. A partir de 1966, desafiando proibições e ameaças, passa a realizar clandestinamente seus congressos e, durante todo o ano de 1968, integrando-se a uma onda mundial de protestos, vai tomando corpo no cenário nacional e, agigantando-se como um fenômeno social, passa a ocupar, no Brasil, o principal papel no palco das grandes manifestações populares contra a ditadura militar.
      Em 1968 o Brasil tinha 278 mil estudantes universitários e uma juventude com uma depurada visão crítica dos problemas do seu tempo. Destacando-se nas melhores cenas desse palco surgem inumeráveis lideranças estudantis comandando nacionalmente um imenso corpo estudantil plenamente sintonizado com uma cultura engajada onde se destacavam o teatro de resistência e uma qualificada música popular de protesto. Surgem inteligências muito jovens empunhando as mais diversas bandeiras entre as quais sobressaem os estudantes Vladimir Palmeira e Luís Travassos, ambos com 23 anos e uma rica geração musical por onde ecoa, nos grandes festivais, as canções engajadas de Geraldo Vandré e as composições premiadas de Chico Buarque, então com 24 anos. É a época do combativo Grupo Opinião dirigido por Augusto Boal,  teatralizando a resistência política através da arte. É o ano em que se opta pela luta armada e neste contexto alistam-se as lideranças estudantis mais politizadas.  Os filmes brasileiros são reconhecidos internacionalmente através do cinema crítico de Glauber Rocha, na época com 29 anos. A teoria política, a crítica literária e a poesia engajada têm suas próprias trincheiras de luta e, entre estas, destaca-se, pela sua soberania intelectual, a Revista Civilização Brasileira, porta-voz da esquerda brasileira e internacional. De alguma maneira, pela grande integração cultural, direta ou indiretamente, todos esses afluentes da arte e da cultura deságuam, em 1968, no caudaloso rio do movimento estudantil e tudo isso mostra uma admirável paisagem de cultura política assimilada por uma juventude que seria, no fim daquele ano, brutalmente amordaçada pela ditadura e cujo luminoso fenômeno ideológico não se repetiria mais na história do país.
      A ocupação da Sorbonne, em maio, pelos estudantes franceses e os choques de rua que abalaram Paris, acenderia o rastilho da revolta estudantil em todo o mundo, cujos reflexos no Brasil levariam aos confrontos violentos da Sexta-feira sangrenta e a Passeata dos Cem Mil em junho no Rio de Janeiro. Foi nesse amplo contexto de acontecimentos nacionais e mundiais que o movimento estudantil, assumindo a vanguarda militar das mudanças, desfraldou a bandeira da luta armada no Brasil. Rememorando detalhadamente os fatos que determinaram essa opção é indispensável buscar as suas próprias causas ao longo de 1968.

      No dia 28 março daquele ano, no Rio de Janeiro, um protesto estudantil contra as péssimas condições de higiene do Restaurante Calabouço ocasionou a sua invasão pela Polícia Militar onde uma incontida violência ao som de metralhadoras culminou com a morte do estudante Edson Luis de Lima Souto. A dimensão do massacre, onde caíram mortos outras vítimas, provocou uma forte reação social na cidade e, politicamente, uma reviravolta no governo da Guanabara ante as manifestações de repúdio parlamentar em nível estadual e federal. A imprensa nacional noticiou o fato com destaque e o jornal carioca “Correio da Manhã”, corajoso paladino das denúncias contra a Ditadura Militar, no dia seguinte, relata assim o trágico episódio:

      (...) “Apesar da legitimidade do protesto estudantil, a Polícia Militar decidiu intervir. E o fez à bala. Há um estudante (18 anos) morto, um outro (20 anos) em estado gravíssimo. Um porteiro do INPS, que passava perto do Calabouço, também tombou morto. Um cidadão que, na Rua General Justo, assistia, da janela de seus escritório, ao selvagem atentado, recebeu um tiro na boca. Este o saldo da noite de ontem. Não agiu a Polícia Militar como força pública. Agiu como bando de assassinos. Diante dessa evidência cessa toda discussão sobre se os estudantes tinham ou não razão - e tinham. E cessam os debates porque fomos colocados ante uma cena de selvageria que só pela sua própria brutalidade se explica.
Atirando contra jovens desarmados, atirando a esmo, ensandecida pelo desejo de oferecer à cidade apenas mais um festival de sangue e morte, a Polícia Militar conseguiu coroar, com esse assassinato coletivo, a sua ação, inspirada na violência e só na violência. Barbárie e covardia foram a tônica bestial de sua ação, ontem. O ato de depredação do restaurante pelos policiais, após a fuzilaria e a chacina, é o atestado que a Polícia Militar passou a si própria, de que sua intervenção não obedeceu a outro propósito senão o de implantar o terror na Guanabara. Diante de tudo isto, depois de tudo isto, é possível ainda discutir alguma coisa? Não, e não.”(...).[1]  

      A morte, aos 18 anos, do estudante paraense Edson Luiz, com um tiro de pistola no coração, abre a primeira porta de uma crise institucional sem precedente na história republicada, depois do Estado Novo. O ato foi o estopim de uma imediata tomada de consciência estudantil e um fato cujo potencial de revolta deflagrou não só a luta aberta contra a política educacional do governo, mas o início mesmo da sua mobilização nacional contra o regime militar, determinando outros estratégicos desdobramentos nos anos escancarados da Ditadura, quando o desterro da democracia e a opção pela luta armada deixaram a história da pátria manchada pelo sangue de tantos estudantes e inundada por tantos rios de lágrimas. Nesse sentido é relevante dizer que naquele mesmo 28 de março a camisa ensanguentada de Edson Luiz era agitada aos quatro ventos como uma simbólica bandeira de luta.  O clima de luto, no dia seguinte, não refletia somente um sentimento de pesar, mas uma surda proposta de reação política apenas protelada pelas circunstâncias.  No Rio, as aulas foram oficialmente suspensas e os diretórios entraram em assembléia, os teatros da Guanabara fecharam suas portas por três dias, caíram cabeças no governo do Estado, o tenente assassino foi preso e o grande jurista Sobral Pinto foi constituído pelos estudantes no processo de punição aos culpados. No Congresso Nacional, vários oradores se revezaram condenando “o vandalismo e a covardia da Polícia” e o então deputado Mario Covas responsabilizou o Governador Negrão de Lima pelos acontecimentos. Envolto com as bandeiras, nacional e do Pará, o velório do jovem estudante na Assembléia Legislativa foi marcado pela presença de uma imensa movimentação popular e pelos inflamados discursos de várias lideranças estudantis e políticas contra o arbítrio e a violência policial.
      No dia 4 de abril, o desfecho da missa de sétimo dia a realizar-se na Igreja da Candelária, era aguardado com ansiedade e pressentimento por toda a classe estudantil do país. A cerimônia que começou calma terminou sob uma insuportável tensão emocional com o ronco dos aviões cruzando o local e os ruídos dos cascos da cavalaria cercando a saída da igreja. As 600 pessoas viram barrada a saída ante a ordem militar:
      --Desembainhar...
      E depois a ordem reiterada:
      --Aqui ninguém passa.  Recuem, recuem.
      O bispo auxiliar da cidade e mais quinze padres desafiando a ameaça de massacre, abrem os braços e, de mãos dadas, formam um corredor de saída.
      --Isso não é uma manifestação. Deixem estas pessoas voltar pra suas casas, diz o bispo.
      Há um impasse no ar. Uma expectativa de pânico e finalmente a contra-ordem:
      --Dispersar, dispersar.

      “Os sacerdotes, como que assistidos por uma força invisível, coordenaram a saída disciplinada e silenciosa pela calçada. Postados num cruzamento da Avenida Rio Branco, todos paramentados, ali permaneceram até que passassem,  sãos e salvos, todos os “sobreviventes” do ato religioso. Por certo, em suas orações, daquela esquina pra frente entregavam a sorte daqueles rapazes e moças, nas próprias mãos de Deus, sem imaginar que mais adiante muitos deles seriam brutalmente espancados e presos” [2]
       O fermento da revolta pela morte de Edson Luiz e a ameaça de violência com que a Polícia Militar encarou aqueles que lhe foram prestar, espiritualmente, a última homenagem, determinaram uma forte reação por parte de muitas categorias profissionais da população carioca, moralmente humilhadas ante a eminência de um massacre por parte dos soldados. Em junho daquele ano, no rastro mundial da emblemática revolta estudantil de maio, nas ruas de Paris, os estudantes cariocas, cada vez mais encurralados pela repressão e a perseguição política, transformaram o centro do Rio de Janeiro numa praça de guerra. Com início no dia 19, os protestos contra a ditadura chegaram ao auge no dia 21 de junho de 1968, data que ficou conhecida como a  Sexta-feira sangrenta. Ao final de três dias, aquela “sexta-feira” amanheceu com as ruas tomadas pelas barricadas. No começo da tarde os atos foram precipitando os fatos e delineando uma luta campal de horas ininterruptas, iniciada quando a cavalaria e os batalhões de choque entraram na Avenida Rio Branco investindo contra as barricadas dos manifestantes. Numa segunda linha de ataque, policiais e agentes do DOPS apareceram abrindo fogo contra grupos de resistência e atirando em direção às janelas dos edifícios ocasionando o pânico e correria pelas transversais da Avenida.

“As barricadas de Paris talvez não tenham causado tantos feridos quanto a “sexta-feira sangrenta” do Rio, para citar apenas um dia de uma semana que ainda teve uma quinta e uma quarta quase tão violentas. (...)  Durante quase dez horas, o povo lutou contra a polícia nas ruas, com paus e pedras, e do alto dos edifícios, jogando garrafas, cinzeiros, cadeiras, vasos de flores e até uma máquina de escrever”.[3]"
Manoel de Andrade, in « NOS RASTROS DA UTOPIA, uma memória crítica da AMÉRICA LATINA, nos anos 70», Escrituras Editora, S. Paulo, Brasil, Março de 2014



[1]    . Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 29.03.1968.
[2]    ANDRADE, Manoel de. A sexta-feira sangrenta.
      http://palavrastodaspalavras.wordpress.com/2008/04/29/1968-a-sexta-feira-sangrenta-por-manoel-de-andrade/  Acesso em: 12 jul. 2010
[3]    VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988,p.134.

2 comentários:

  1. Olá, parabéns pelo conteúdo do blog! Muito importante pela qualidade e preocupação do resgate histórico daquilo que não pode e não deve ser esquecido! Gde abraço. P.S. Como faço para enviar uma foto atual (2016), de Geraldo Vandré para o Manoel de Andrade?

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    1. Agradecemos as gentis palavras , bem como a fotografia actual de Geraldo Vandré. Para a fazermos chegar até Manoel de Andrade, solicitamos-lhe o envio para o correio electrónico deste blog: livrespensantes@gmail.com
      Gratas saudações solidárias.

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