sábado, 11 de abril de 2015

Manoel de Oliveira e o Amor de Perdição

Eugénio Lisboa foi Conselheiro Cultural  da Embaixada de Portugal, em Londres, durante dezassete anos. No IV volume das suas Memórias, "Acta est fabula. IV. Peregrinação: Joanesburgo . Paris . Estocolmo . Londres – 1976-1995", narra  uma parte do vasto e riquíssimo labor que desenvolveu,  nessa época, em prol da Cultura Portuguesa. 
A propósito  do filme "Amor de perdição",  Eugénio Lisboa oferece-nos páginas de intenso interesse onde se descobre a personalidade forte e delicada de Manoel de Oliveira, recentemente falecido.
Amor de Perdição
"Em Março, o Amor de Perdição, romance de Camilo, que já li vezes sem conta e é uma jóia tão perfeita, que não cabe em qualquer classificação de género, período ou escola, entrou na minha vida, de modo enviesado. Eu conto, que tenho muito que contar. No dia 6 de Março (1980), enviei para Lisboa uma Informação de Serviço, a coberto de um ofício assinado pelo embaixador, sobre o filme de Manoel Oliveira, baseado naquele romance de Camilo. Rezava assim:
O director artístico do “National Film Theatre”, Sr. Wlaschin, fez-nos saber que terá o maior interesse em que o filme de Manoel Oliveira, Amor de Perdição, seja apresentado no próximo “Festival Internacional de Cinema”, em Londres, a ter lugar em Novembro próximo. O Sr. Wlaschin teve recentemente contactos com colegas seus que estiveram no “Festival de Cinema”, em Berlim, onde o filme foi excepcionalmente bem recebido, os quais lhe afirmaram a excelente qualidade dele, razão por que manifestou a sua estranheza perante a nossa indiferença relativa à apresentação da obra no Reino Unido. Queremos informar de que, já em 1979, e a pedido insistente do “National Film Theatre”, tentámos por todos os meios obter uma cópia do filme, preferivelmente legendada em inglês. Não foi possível ao IPC arranjar essa cópia e a única existente em França (cremos que legendada em francês) não nos foi facultada em termos viáveis pelo agente comercial em Paris, porquanto nos eram dados dez dias para a viagem de ida e volta e mais o tempo necessário à exibição no “Festival”. A escassez de recursos do IPC aliada à manifesta falta de vontade do agente em França, mau grado as amáveis e prontas diligências do Sr. Dr. Liberto Cruz, Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal, em Paris, causaram o malogro da apresentação de um filme português que já vários países conhecem, mas que ainda não foi possível mostrar aos britânicos. Em vista do exposto acima, gostaríamos que fossem, desta vez, feitas diligências no sentido de, este ano, se ter uma cópia do filme Amor de Perdição, com legendas em inglês, disponível para ser apresentada, em Novembro, em Londres, no “Festival Internacional de Cinema”.
A reacção do IPC a esta minha Informação de Serviço foi característica: era como se eu estivesse a apropriar-me de território que era deles. Remeteram ao director do “Gabinete de Relações Culturais Internacionais” da Secretaria de Estado da Cultura um ofício, que me acabaria por chegar às mãos, via Ministério dos Negócios Estrangeiros. Dizia assim, em estilo educado, comedido, mas reivindicativo de território que fora, alegadamente, trespassado:
Em referência ao ofício 988/GCACE/80, temos o prazer de informar estar o Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal, em Londres, ao corrente da participação de Amor de Perdição no “Festival Internacional de Cinema”, de Londres”. Agradecendo e reconhecendo o “Instituto Português de Cinema” a preocupação pela confirmação desta presença, não pode o mesmo deixar de assinalar que tem, como é sua obrigação, contactos directos com direcções de festivais e organismos congéneres, e bem assim, desde há quatro anos, com o Sr. Ken Wlaschin, estranhando por isso a avaliação do empenho referido pelo Sr. Conselheiro Cultural, a quem tem o “Instituto Português de Cinema” dado sempre o maior apoio. houve, aliás, durante o último “Festival de Cannes”, encontros entre o “Instituto Português de Cinema” e o director do “Festival de Londres”, não restando quaisquer dúvidas de ambas as partes quanto à presença de Amor de Perdição no referido “Festival”.
A este civilizado “remoque” respondi, nestes termos, por Informação de Serviço minha, apensada ao ofício do embaixador, com data de 2.09.1980:
Com referência ao ofício CLT/3473, Proc. 84,4 de 19.08.80, cobrindo o envio de fotocópia de um ofício d’A Comissão Administrativa do “Instituto Português de Cinema”, gostaria de responder a uma observação contida no segundo parágrafo deste último ofício. O “Instituto Português de Cinema” simultaneamente “agradece”, “reconhece” e “estranha” a nossa preocupação com o envio do filme de Manoel Oliveira ao “Festival de Londres”, o que parece um conjunto de atitudes difíceis de se reconciliarem umas com as outras. Passando de alto o agradecimento e o reconhecimento (que, de resto, agradecemos), estranhamos, ainda assim, a estranheza. A nossa preocupação é apenas natural, por mais contactos directos que o IPC possa ter – e é bom que tenha – com organizações internacionais. Estes não impedem que as ditas organizações, sabendo da existência, em Londres, de um Conselheiro Cultural e de uma Embaixada lhes façam saber do seu empenho em que se “siga” de perto o assunto, tudo se fazendo para que o mesmo tenha o resultado desejado. Acontece, neste particular, que, em 1979, apesar dos repetidos pedidos feitos pelo Sr. Ken Wlaschin, no sentido de o filme “Amor de Perdição” se fazer apresentar no “Festival Internacional de Londres” e apesar dos esforços por nós desenvolvidos e da boa vontade manifestada pelo funcionário do IPC, com quem repetidamente falámos, a presença do filme no dito “Festival” não pôde ter lugar. Portanto, quando, na minha Informação de Serviço, de 13 de Maio deste ano, apensa ao ofício n.º 360 da mesma data, afirmava que se o filme de Manoel Oliveira estiver este ano presente no “Festival”, “isso se ficará a dever mais ao empenho que nisso estão a pôr os britânicos do que a nós próprios”, prestava, por um lado, homenagem à contínua e lisonjeira insistência que o Sr. Wlaschin tem posto no caso, por outro, incluía-me a mim próprio na incapacidade de se corresponder, de facto, àquele empenho (os esforços, do nosso lado, não corresponderam a resultados palpáveis, e desse fracasso nem sequer nos excluímos). Ao redigirmos a Informação de Serviço que acima referimos, procurámos apenas corresponder ao pedido que implicitamente se continha no facto de o Sr. Wlaschin nos ter enviado cópia da carta por ele remetida ao IPC. De facto, o envio de tal cópia só podia significar um pedido de empenho nosso para que a vinda do filme se não gorasse de novo. O que tudo é muito natural e não parece ofensivo de maior e para ninguém. “No mesmo ofício do IPC, afirma-se que esta organização sempre nos tem dado o seu apoio, o que é verdade e muito apreciamos e agradecemos. A esta instituição só devemos serviços e até amabilidades. O que não põe nem tira a que mostremos o mais vivo empenho, como é nosso dever, em fazer o que esteja ao nosso alcance para que o “Amor de Perdição” esteja presente no “Festival” de 1980. Como o IPC afirma que isso acontecerá, mesmo sem a nossa intervenção, por uma vez nos damos por felizes por sermos inúteis, sem prejuízo dos resultados. Mas seria interessante que se pensasse que os pelouros culturais não são propriedade privada de ninguém e que, por isso mesmo, o cinema português não é propriedade do IPC, razão por que até um Conselheiro Cultural pode ter interferência construtiva na divulgação de uma obra representativa desse cinema.
Bem está o que bem acaba, diz o provérbio e diz o Bardo. E o filme de Manoel Oliveira, seguindo meticulosamente o texto camiliano, foi apresentado ao público – críticos, distribuidores, realizadores, gente interessada, em geral – no “London Film Festival”, em 16 de Novembro de 1980. Dada a extensão da obra, a sessão começou às 13,30 horas. Mas eu prefiro transcrever a Informação de Serviço, que, com data de 20.11.80, enviei para Lisboa:
No passado domingo, dia 16 de Novembro, teve lugar no “National Film Theatre”, com começo às 13,30 horas, a exibição do filme Amor de Perdição, de Manoel Oliveira, no contexto do “London Film Festival” de 1980. Este ano o “Festival” tinha como participantes vários grandes nomes da realização cinematográfica: Kurosawa, A. Wajda, James Ivory, Delvaux, Franju, Scorsese, Ken Loach e, last but not least, a que se julga ser a versão final e integral do famoso Napoleão, de Abel Gance. Como se sabe, este “Festival de Londres” não tem carácter competitivo, não havendo pois a distribuição de prémios, por categorias. Trata-se de um acontecimento que tem apenas por fim mostrar uma série de filmes pré-seleccionados, com vista a interessar eventuais distribuidores dos circuitos de distribuição do Reino Unido. O filme de Manoel Oliveira fora escolhido pelo crítico John Gillet [...] que se mostrou, em conversa connosco, um grande admirador do cineasta português [...]. John Gillet, que irá, em Fevereiro, assistir, em Berlim, a uma retrospectiva dos filmes de Manoel Oliveira, prometeu organizar, de acordo com o Sr. Ken Wlaschin, director do “Festival”, uma idêntica retrospectiva em Londres, em 1981, a pretexto de uma eventual exibição do filme Francisca, que Manoel Oliveira espera ter pronto em Julho [...]
Amor de Perdição seria depois – a seguir ao “Festival” – exibido aos alunos de português e brasileiro do “King’s College”, em Londres. John Gillet, em conversa, disse-me que os organizadores do “Festival  tinham por Oliveira uma elevada consideração devido à sua seriedade e ao seu profissionalismo. Com efeito, o autor de Douro, Faina Fluvial não aproveitava, como quase todos os outros realizadores, o pretexto de vir aos festivais, para andar a fazer turismo: estava sempre presente e disponível, onde quer que fosse necessária a sua presença. Em suma, suava, honestamente, a sua camisola. Quando o Amor de Perdição foi apresentado, Gillet e os outros elementos da organização do “Festival” estavam apreensivos, devido à invulgar duração do filme. Temiam, ao fim de duas horas, uma debandada em massa. Mas o crítico inglês teve uma boa inspiração, que acabou por resolver o problema. Pouco antes de as cortinas abrirem, subiu ao palco e disse mais ou menos isto: “Meus amigos, o filme que vai ser projectado é belíssimo, mas muito longo. Por isso, sugiro que se instalem confortavelmente nas cadeiras, relaxem os músculos e deixem-se penetrar lentamente pela história que o filme vai contar. Prometo que vão gostar.” O público presente assim fez e julgo que não houve uma única deserção…No final, descobri o “espectador privilegiado”: um rapaz polaco, que me apareceu, olheirento, devastado, como se tivesse, ele próprio, acabado de sair do filme de Oliveira. O filme atingira-o até às profundezas abissais do seu coração ardente de polaco: chorava como uma Madalena, com a tragédia de Teresa, Mariana e Simão. Colou-se a nós, portugueses, como se fôssemos um resto ou prolongamento daquele mundo que Camilo congeminara. Queria conhecer o Oliveira, falar com o Oliveira, tocar na carne do Oliveira, possuir o Oliveira. Eu disse-lhe que ia ter o Oliveira em nossa casa, para jantar e conversa com alguns amigos. Ele perguntou logo, sofregamente, se podia ir também. Ir, como?, perguntei eu. Morava longe e já tinha o carro cheio. Ele resolveu logo: iria de motocicleta e seguiria o meu carro, como nos filmes (sempre estávamos num festival de cinema…) E assim se fez, mas teve pouca sorte. O Oliveira acabara de saber que a sua secretária fizera borrada com a marcação do regresso. Em vez de ser no dia seguinte, era ao fim dessa mesma tarde… Saiu do “Festival” a correr para o aeroporto, mas nós fizemos o jantar à mesma, menos o Oliveira e mais o polaco. Porque ele insistiu em vir. À falta de Oliveira, nós éramos o que havia de mais parecido: sempre éramos lusos, sempre vivíamos amores de perdição e bordoada, e talvez, ao jantar, falássemos do Amor de Perdição. Durante o jantar, muito intenso, devorava tudo quanto dizíamos, não fosse perder uma migalhinha de amor de perdição… Camilo entrara finalmente na Polónia, e pela porta grande: com sangue, suor e lágrimas! Já no final do jantar, o telefone tocou: era o Oliveira, já aterrado no Porto e já em sua casa. Fez logo as perguntas meticulosas que gostava de fazer: se estava tudo bem, se o jantar tinha corrido a contento, se já tinha acabado e se tínhamos cálices de vinho do Porto à mão de semear. Disse-lhe que sim a tudo, incluindo os cálices. Então, disse ele, como se estivesse a preparar uma cena para filmagem, eu que enchesse um cálice, para mim, e pedisse à Antonieta que enchesse um, para ela, e que se aproximasse do telefone, para fazermos os três um brinde telefónico. Erguemos os cálices e desejámo-nos mutuamente muita saúde (deu resultado, pelo menos no que diz respeito ao Oliveira, que tem andado de saúde, desde então, e já passou folgadamente dos cem… Ficam os meus leitores finalmente a saber como é que isso se conseguiu). Era (é) assim o Manoel Oliveira: atento aos pormenores e às pessoas, cavalheiro dos pés à cabeça. De uma das vezes que veio a Londres e lhe demos o apoio do costume, ele, uma manhã, foi à Embaixada, sem eu saber, e pediu ao embaixador que lhe dispensasse, por umas horas, uma secretária que conhecesse bem a Antonieta. Levou-a com ele e passou a manhã a fazer-lhe toda a espécie de perguntas: que vestidos vestia a Antonieta, que cores preferia, se gostava de música e que música, se lia livros e que livros, se gostava de filmes e que filmes… Enfim, torturou a pobre rapariga (a Fernanda Borralho) com perguntas de todos os formatos, para ver se, das respostas, deduzia, com alguma probabilidade de acerto, o ramo de flores de que a Antonieta talvez gostasse. O ramo, contou a Fernanda, foi meticulosa e lentamente construído, flor a flor, e levou quase tanto tempo a ficar concluído como a Muralha da China. No fim, lá encontrou o conjunto que era, pensava ele, o corolário provável de todo aquele interrogatório. E foi oferecê-lo, ufano, à Maria Antonieta, que ainda hoje jura nunca ter recebido um ramo de flores de que tanto gostasse! Só mais tarde viemos a saber como tinha sido concebido: milímetro a milímetro como as cenas dos seus filmes… Repito, era – é – assim o Manoel Oliveira: sempre atento ao pormenor… E é que não largava a presa, enquanto não levava a água ao seu moinho. Gostava – gosta! – de agradecer, em grande! A mim, ofereceu-me, entre outras coisas, belamente encadernado, o dáctilo-escrito do guião do Amor de Perdição. O ferro que isto faria ao polaco, se ele o soubesse! Espero que nunca leia estas memórias: seria capaz de assassinar para ter este memento do Oliveira…" 
Eugénio Lisboa, in "Acta est fabula IV. Peregrinação: Joanesburgo . Paris . Estocolmo. Londres – 1976-1995", pags.270-276, Editora Opera Omnia, Outubro de 2014

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