quinta-feira, 23 de abril de 2015

Celebrar o Livro

 
Tudo no mundo existe para algum dia  terminar num livro. 
                                                         Stéphane Mallarmé
Tenho para mim que sou essencialmente um leitor . Como sabem , eu me aventurei na escrita, mas acho  que o que li é muito mais  importante do que o que escrevi. Pois a pessoa lê o que gosta, porém não escreve o que gostaria de escrever e sim o que é capaz de escrever.
                                                        Jorge Luís Borges
"O Dia Mundial do Livro é comemorado, desde 1996 e por decisão da UNESCO, a 23 de Abril. Trata-se de uma data simbólica para a literatura, já que, segundo os vários calendários, neste dia desapareceram importantes escritores como Cervantes e Shakespeare, entre outros. A ideia da comemoração teve origem na Catalunha: a 23 de Abril, dia de São Jorge, uma rosa é oferecida a quem comprar um livro. Mais recentemente, a troca de uma rosa por um livro tornou-se uma tradição em vários países do mundo."
O livro é o fiel e inseparável  companheiro que me tem acompanhado ao longo da vida. Cresci, fiz-me gente, deixei o chão pátrio, viajei , percorri mundo e levei sempre comigo os livros celebrados e amados que me fizeram cativa. No regresso, o acervo vinha permanente e  singularmente maior. Creio que não há livraria que se preze que não tenha sido visitada, namorada e assediada por estes olhos que não cessam de  cintilar perante os escaparates e as suas  mais recônditas prateleiras. Não há enlevo maior do que aquele que nos é provocado por páginas mestras de: Aristóteles, Eugénio Lisboa, Moliére, José Régio, Tolstoi, David Mourão-Ferreira, Dostoievsky,  Camilo Castelo Branco, Gorki, Miguel Torga, Somerset Maugham, Henry James,  Pasternak,  Shakespeare, Pablo Neruda, Henry Montherlant, Stendhal, Proust, Camões, Camus, Conrad, James Joyce, Jane Austen, Racine, Fernando Pessoa, Manoel de Andrade, Tchékhov, Thomas Mann, Domingos Monteiro, Faulkner, Nabokov, Céline, Balzac,  Garcia Márquez, Jorge Luis Borges,  Octavio Paz, Jorge de Sena, Sabato, Voltaire, Machado de Assis, Dickens, Moravia, Érico Veríssimo, Dickens, Graciliano Ramos, André Gide, Ruy Belo, Dante, Rilke,  Cervantes, Torrente Ballester, Eça de Queirós, Valéry, Eugénio de Andrade, Lêdo Ivo, Eliot, B. Shaw, Hemingway, Saul Bellow, Cardoso Pires, Duras, Roth, Steinbeck, Coetzee, Kundera, Kafka, Teolinda Gersão, Woolf, Carlos Fuentes,  Vergílio Ferreira,  Le Clézio, João de Melo, G. Greene,  Rentes de Carvalho e  tantos outros. Impossível enumerar toda a plêiade de escritores que fazem de nós eternos e leais cúmplices. O mundo constrói-se melhor com pessoas que gostam de livros, que lêem e que fazem da leitura a rotina de uma vida inteira.
Onde se queimam livros, acaba-se queimando pessoas afirmou o poeta alemão Henrich Heine (1797-1856) num quase acto de grande premonição, se atentarmos no  fétido e terrível   curso que tomou  a história do seu país e de outros .
Para celebrar o livro , o país e o mundo promovem  uma série diversificada de eventos.
"Cervantes está na base de uma das iniciativas do dia: a jornada conjunta da Fundação Calouste Gulbenkian e da editora D. Quixote, em Lisboa, que assinala os 410 anos da publicação da primeira parte de "O engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha", e os 400 anos da segunda e última parte da obra, com leituras, conferências, oficinas e filmes.
"O Museu Gulbenkian dedica também "um olhar particular" a esta obra de Cervantes, com os exemplares de "D. Quixote" da sua colecção, que ficam expostos até 14 de Junho.
O museu acolhe ainda "Uma biblioteca humanista", dedicada à colecção do filólogo José de Pina Martins (1920-2010), que reuniu "uma das mais valiosas bibliotecas particulares especializadas" em obras do Humanismo, com edições de Petrarca, Camões, Sá de Miranda, Dante, Erasmo ou Thomas More, entre outras, por vezes em versões originais, que podem ser vistas até 26 de Maio."
Juntamo-nos  à celebração com a transcrição de algumas páginas escritas por  um grande estudioso e crítico literário inglês da actualidade. Os livros são-lhe objecto de trabalho e de deleite.
Render  homenagem  ao livro é sobretudo louvar e agradecer a todos os  escritores porque escrevem para todos nós , amantes da leitura.  Que se aplauda e se eternize o livro.

(...)A terra firme da ficção, através da qual serpenteia o rio azul da verdade. 
                                                          Henry James

" Nas nossas vidas de leitores, todos os dias deparamos com esse rio azul da verdade, serpenteando em algum lugar; deparamos com cenas e momentos e palavras perfeitamente colocadas em ficção e poesia, em filmes e peças de teatro, que nos parecem verdadeiras, que nos tocam  e nos nutrem, que sacodem os alicerces da rotina: o rei Lear a implorar o perdão de Cordélia; Lady Macbeth a sibilar  ao seu marido durante o banquete; Pierre a escapar-se da execução às mãos das tropas francesas em Guerra e Paz; o esfarrapado bando de sobreviventes à deriva numa cidade sem nome Ensaio sobre a Cegueira de Saramago; Dorothea Brooke, em Roma, apercebendo-se de que casou com um homem cuja alma está morta; Gregor Samsa, empurrado de volta ao seu quarto  por um pai horrorizado; Kirilov, n'Os Possessos, a escrever a sua carta suicida, com o horrendo Verkhovenski ao seu lado, a exclamar súbita e ridiculamente: « Espera! Quero desenhar um boneco no topo da página, com a língua de fora...Quero dizer-lhes o que penso deles todos!». Ou a cena perfeita em Persuasão, quando Anne Elliot , ajoelhada no chão, com vontade de se livrar da pesada criança que leva às cavalitas , é subitamente aliviada do seu fardo pelo homem por quem está secretamente apaixonada, o capitão Wentworth:
 Alguém o retirara das suas costas , embora  ele tenha inclinado a cabeça para a frente de tal forma que as suas pequenas mãos teimosas ainda ficaram agarradas ao seu pescoço, antes de ser decididamente afastado, e de ela perceber  que fora o capitão  Wentworth  a fazê-lo.
No momento da descoberta, as suas sensações deixaram-na perfeitamente emudecida. Não foi sequer capaz de lhe agradecer. Só conseguiu ficar ali, curvada sobre o pequeno Charles, com as emoções em completa desordem.
No último capítulo do romance de Willa Cather " Death Comes for Archbishop",encontram-se algumas das melhores páginas da literatura americana.* O padre  Latour regressou a Santa Fé , para morrer perto da sua catedral: " No Novo México acordava sempre jovem; só depois  de se levantar da cama e começar a fazer a barba  se apercebia  de que estava a ficar velho. A sua primeira impressão consciente era de um vento seco e ligeiro a soprar pelas janelas,  com a fragrância do sol  escaldante  e da salva  e do trevo doce; um vento que rejuvenescia  o corpo  e fazia o coração gritar " Ho-je , ho-je ", como o coração de uma criança . " Deitado na cama , o padre pensa sobre a sua vida em França, sobre a sua nova vida  no Novo Mundo, sobre o arquitecto, Molny, que  construiu  a sua catedral românica em Santa Fé , e sobre a morte com lucidez e tranquilidade:

Reparou também que as suas memórias já não tinham perspectiva. Recordava os Invernos com os seus primos no Mediterrâneo quando era criança, e os seus dias  de estudante em Roma , tão claramente como recordava a chegada de Mr. Molly e a construção da sua catedral. Estava prestes a livrar-se do tempo calendarizado, e este já não tinha qualquer importância para ele. Colocara-se no centro da sua própria  consciência; nenhum dos seus antigos  estados  mentais  fora descartado ou tornado obsoleto. estavam todos ao  alcance da mão, e todos compreensíveis.
Por vezes, quando Magdalena  ou Bernard  vinham  ter com ele e lhe faziam perguntas , precisava  de alguns  segundos  para se trazer a si  prórprio  de volta ao presente. Conseguia perceber  que eles  achavam  que a sua mente estava  a fraquejar;  mas estava apenas  extraordinariamente activa  numa outra  parte   do quadro da sua vida - uma parte  da qual nada sabiam.

O realismo, visto em traços largos como fidelidade à maneira  como as coisas  são, não pode  ser  mera  verosimilhança , não pode ser  mera veracidade, mas sim o que eu chamo de lifeness:  a vida na página , a vida reanimada  pela arte  mais elevada. E não pode  ser um género; o que  faz é com que outras formas de ficção pareçam géneros. Porque este tipo de realismo - lifeness - é a fonte. Educa todos os outros; ensina  os seus próprios gazeteiros : é o que permite  a existência  do realismo mágico, realismo histérico , fantasia, ficção científica, até dos thrillers. E não  é tão ingénuo como os grandes romances realistas do século XX reflectem sobre a sua composição, e estão repletos de artifício. Os grandes realistas , de Austen a Alice Munro, são também grandes formalistas . Mas isto será sempre imensamente difícil : porque o romancista  deve agir como se todos os métodos ficcionais disponíveis  estejam sempre  à beira de se transformar  em meras convenções , forçando-o a procurar formas  de evitar  essa inevitável obsolescência . O verdadeiro escritor , o verdadeiro servo da vida, é aquele  que age  constantemente como se a vida fosse uma categoria  muito além de qualquer coisa que o romance já tenha captado; como se a própria vida estivesse sempre à beira de se tornar convencional." James Wood, in a mecânica da ficção, 2010 Quetzal Editores, Lisboa Portugal 
* Páginas certamente influenciadas pelo conto de Tchékhov sobre a morte de um bispo, " O Bispo", e que influenciaram por sua vez o romance de Gilead de Marylinne Robinson

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