sábado, 14 de março de 2015

Conhecer para humanizar

Conhecer para humanizar
(Le Monde Diplomatique n.º 1, Abril 1999)
"No n.º1 da edição portuguesa, o seu director, António Borges Coelho, escreve sobre o panorama mediático e geopolítico de então, quando se comemoravam os 25 anos da Revolução de Abril. Um artigo que mantém grande actualidade.
No discurso jornalístico e político, deparamos a todo o momento com o mundo unipolar, o mundo global, o mundo da informação. Na verdade, vivemos condicionados por um pólo predominante, mas não faltam outros pólos, integrados no sistema ou à revelia dele. A globalização cobre o pulsar ávido e silencioso ou o pânico das economias organizadas; submete a erosão rápida a multiplicidade das culturas, impondo-lhes o padrão dominante. Mas a informação global nem sempre engloba ou engloba mal muito do que é contraditório, do que inquieta, do que não se submete. Apesar disso, o peso da opinião-informação e dos patamares da distracção é de tal modo esmagador que, atordoado no labirinto, o pobre mortal tem dificuldade em encontrar o seu próprio caminho.
A concepção do mundo unipolar, sucessor do mundo bipolar, envolve a ideia de que os poderes se confrontam predominantemente entre blocos ou nações. Mas, cada vez mais, o poder é transnacional. Os grupos económicos atravessam sem passaporte as fronteiras e os blocos, apostados no controlo das riquezas, das instituições e das mentes, marginalizando e espezinhando os mais fracos. A batalha surda ou aberta até ao sangue pelo domínio do planeta mobiliza os poderes cultural e religioso, explode na informação produzida e consumida e nas contradições do poder político. O que chega à pequena imagem movente do televisor, à primeira página do jornal ou às ondas hertzianas teve de percorrer primeiro estreitos e vigiados corredores antes de ser imagem e luz.
O mundo bipolar desapareceu quase sem estrondo, mas os seus efeitos foram devastadores. As transformações brutais operadas puseram em jogo a segurança, as regalias conquistadas, a dignidade subjacente ao direito elementar ao trabalho. É difícil para um número crescente de mulheres e homens serem cidadãos a parte inteira.
Não há senhorio nem monopólio da verdade. Por mais objectividade, ela tende a escapar-se entre os nossos dedos. Mas estamos condenados a persegui-la, pois arriscamos nessa perseguição a própria sobrevivência. E quanto mais diferenciados forem os pontos de vista, mais nítida a visão dos problemas que se nos colocam. No entanto, hoje, à procura da verdade sobrepõe-se a atracção pelo poder da imagem. Falamos cada vez menos com as pessoas e cada vez mais com as imagens. Vivemos progressivamente no tal mundo virtual.
Com o lançamento da edição portuguesa do Le Monde diplomatique é o universo das relações internacionais que se abre mais larga e criticamente aos leitores de língua portuguesa. Nos seus 45 anos de existência, o jornal habituou-nos ao rigor, à objectividade, ao olhar para além do mundo das vedetas que se sucedem no palco mediático. Daí o seu prestígio e a sua expansão no mundo.
O lançamento em língua portuguesa do Le Monde diplomatique ocorre no ano e no mês em que se comemoram os 25 anos da Revolução de Abril. Um novo mundo, mais fraterno, parecia estar ali ao nosso alcance. As ruas encheram-se de vozes e bandeiras. O regime democrático lançou as suas bases, sucederam-se transformações estruturais profundas.
Hoje, estamos cada vez mais longe do céu, mas é preciso dizer que há pessimismo a mais na sociedade portuguesa. Ontem, como hoje, como sempre, conhecer para transformar, conhecer para humanizar."ANTÓNIO BORGES COELHO *, sábado 5 de Abril de 2014
* Director da edição portuguesa do Le Monde diplomatique.

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