quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Um sábado em Angola

Um sábado em Angola
Acorda-se cedo. As manhãs em África são diferentes. Singulares e pontuais. Raiam quando a Europa ainda dorme. É um despertar enérgico, seguro , sem sobressalto. O dia emerge e a luz entra nos olhos , desafiando qualquer réstia de sono.
É sábado. Dia para sair da cidade e partir em busca da praia.


Luanda cresceu. Estende-se, agora, em arredores que não se distinguem da própria cidade. E assume-se africana. Nos costumes, nas labirínticas e infindas ruelas dos musseques que convivem com luxuosos condomínios na estrada paralela ao mar. Uma estrada longa que liga a cidade à barra do Kwanza . São setenta quilómetros de costa  e um sem fim de praias de areais imensos, alinhado  na vastidão do horizonte.


À saída de casa , enfrenta-se o caótico trânsito que, de retorno em retorno, entope a circulação.

Vende-se tudo em qualquer franja da estrada ou da via rápida. Basta parar. E, num ápice, aparecem os vendedores de garrafas de água gelada, de fruta variada, de jornais, de saldo para os telemóveis, de pilhas, de gravatas, de canetas Montblanc,  de mil e um objectos diferentes e comerciáveis.


Lentamente, avança-se. São as paragens sucessivas por causa dos mercados e das feiras a céu aberto. Carne, peixe, fruta, roupa , mobília. Tudo se mistura num festim promíscuo e colorido. A quitandeira que apregoa, transporta o filho nas costas, envolvido em panos multicolores. Um transporte eficaz e secular. África primeva, pincelada em quadros que maravilham pela simplicidade e pela riqueza da praxis que se perpetua de geração em geração. 



Há, contudo , a dissonância da modernidade . Introduzida aleatoriamente, empresta ao quadro  um estranho ambiente dos novos tempos. O telemóvel, o tentador utensílio, que todos se forçam a utilizar. Telefona-se por tudo e por nada. E nessa mistura,  se vive neste diferente agitar africano, nos arredores da capital. Uma Luanda agigantada que se dilui em novos braços de intensa vivacidade.



A viagem é longa. Não pelos quilómetros a percorrer, mas antes pelas constantes paragens. Os cheiros, as paisagens, as inesperadas ofertas, tudo se congrega neste percurso em deslumbramento e descoberta. África é mistério. O imprevisível que se insinua num jogo desconhecido de sedução, de espanto, de revelação.


A praia . Eis uma linha recta de areal. Escolher onde passar o dia é apenas  entrar numa das picadas que conduzem ao mar. Não têm  nome, não  foi atribuído qualquer topónimo a estas praias . São designadas pelos quilómetros de que distam da cidade de Luanda.


Feita a selecção, fica-se num abraço enorme com o mar. O calor morno das águas impede o desejo de as abandonar. Mas regressar é um imperativo inadiável. As crianças já conviveram  em amena partilha de saberes e de feitos.


Anoitecerá sem qualquer permissão, à revelia da grandeza dos desejos.  Não será mais tempo solar.
E o retorno acontece, com prémio à beira da estrada. Lagostas, conquilhas , peixe fresco e sadio em oferta irresistível. Compra-se para júbilo de todos. O dia alonga-se, repetindo-se em filas de um trânsito pesado e indisciplinado.


Um sábado.  Final de um dia quente. Final de um dia em Angola. O céu raia-se de um púrpura majestoso que fenecerá  para   ressurgir, fulgurantemente,  num outro entardecer.

4 comentários:

  1. Excelente texto sentido, nota-se a cada palavra.!!!!
    Diria que é quase como se ali estivessemos neste momento, guiados pelas palavras sábias de quem conhece o terreno e tem uma capacidade de comunicação imaculada.
    Obrigado amigo Manel....continuação de boa estadia. Vai dando notícias.!!

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  2. Notável relato, Maria José. Senti os cheiros das praias e dos mercados, e as cores dos vestuários e da luz do Sol. Tudo me fez lemrar qundo aí vivi, embora mais a sul...
    Mário César

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  3. Ainda recordo certas emoções descritas será que algum dia as verei ao vivo?

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  4. Tropeço em cada palavra como se fosse minha. Mas no início, no fascínio dos primeiros tempos. Já lá vão uns anos em que deixei de ver a beleza das coisas. O pôr-do-sol, por exemplo, sempre o achei grandioso e exuberante. Deixei de o ver e preciso de me beliscar para voltar a reparar na sua grandiosidade. O problema de a rotina e o hábito nos ofuscar a mente. Preciso de civilização e essa foi-me roubada por quem lidera e se apodera do que a Europa tem de bom: Porque o povo é brando e ignorante e se deixa levar por “casas de segredos”.
    A beleza do texto continua toda intacta e real para quem não conhece África. Os meus parabéns por isso!

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