terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Quando tinha saudades, lembrava-se...


"Lograra substituir quase tudo excepto os filhos, pelo trabalho e pela vida de actividade normal, regular, que edificara na ilha. Estava convencido de que conseguira com essa vida algo de perdurável que o fixaria. Agora, quando se sentia solitário e tinha saudades de Paris, lembrava-se de Paris em vez de ir até lá. Fazia o mesmo com toda a Europa, grande parte da Ásia e da África.
Lembrou do que Renoir dissera ao contarem-lhe que Gauguin fora para Taiti pintar. «Porque há-de ele ir gastar tanto dinheiro para ir pintar para tão longe quando se pinta tão bem aqui em Batignolles?» Em francês soava melhor: «quand on peint si bien aux Batignoiles», e Thomas Hudson concebia a ilha como o seu quartier no qual se instalara, travando conhecimento com os vizinhos e trabalhando tão assiduamente como trabalhara em Paris quando o jovem Tom era ainda bebé.
Algumas vezes deixava a ilha para ir pescar ao largo de Cuba ou visitar as montanhas no Outono. Mas arrendara o rancho que tinha comprado em Montana por, ali, a melhor época ser o Verão e o Outono, e agora era sempre no Outono que os rapazes tinham de voltar para a escola.
Ocasionalmente, via-se obrigado a ir a Nova Iorque para se avistar com o seu agente. No entanto, era mais frequente agora ser o seu agente a visitá-lo e a levar as telas para o norte consigo.
Tinha uma reputação bem firmada como pintor, e era respeitado tanto na Europa como no seu próprio país. Contratos de exploração de petróleo em terrenos que o avô possuíra garantiam-lhe proventos regulares. Esses terrenos tinham sido terras de pastagem, e ao serem vendidos retivera os direitos ao subsolo. Cerca de metade do rendimento era absorvido pela pensão que pagava às suas ex-mulheres, e o resto dava-lhe a segurança necessária para pintar conforme lhe apetecia sem quaisquer pressões de ordem comercial. Permitia-lhe também viver onde lhe dava na fantasia e viajar quando se sentia inclinado a isso.
Tivera êxito quase a todos os respeitos excepto na sua vida de casado, embora, na realidade o êxito nunca o houvesse preocupado muito. O que lhe interessava era a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira mulher que despertara o seu amor. Amara muitas mulheres desde então e, por vezes, lá vinha uma ou outra ficar na ilha. Precisava de ver mulheres ao pé de si e acolhia-as bem durante algum tempo. Gostava de as ter ali, às vezes durante longo período. Mas, no final, ficava sempre satisfeito quando se iam embora, mesmo se gostava delas a valer. Disciplinara-se de forma a deixar-se de discussões com mulheres, e aprendera a arte de não se casar. Estas duas coisas haviam sido quase de tão difícil aprendizagem como instalar-se e pintar a um ritmo regular e bem ordenado. Mas aprendera a fazê-las, e a sua esperança era que essa aprendizagem tivesse sido permanente. Havia muito que sabia pintar, e estava convencido de que ia aprendendo sempre mais a cada ano que passava. Mas fora difícil aprender a assentar e a pintar disciplinadamente porque tinha havido na sua vida uma fase em que ele próprio não fora disciplinado. Nunca tinha sido verdadeiramente irresponsável, mas indisciplinado, egoísta e desapiedado, isso sim. Sabia-o agora, não por muitas mulheres lho terem dito, mas por o haver descoberto finalmente à sua custa. Resolvera então só ser egoísta na sua actividade de pintor, só ser desapiedado no seu trabalho, e disciplinar-se e aceitar a disciplina.”Ernest Hemingway,in "Ilhas na corrente" ,Livros do Brasil

« Ilhas na Corrente, capítulo final na cronologia artística e humana de um grande escritor é, segundo a crítica, uma das obras mais invulgares que ficamos a dever ao autor de "Por Quem os Sinos Dobram", reunindo, num mesmo programa, alguns dos ingredientes que transformaram a arte narrativa de Hemingway numa das mais expressivas do nosso tempo. Roteiro da vida de um pintor desde os anos 30, sequelas trágicas do fim da segunda guerra mundial, centrado nas Caraíbas, é, afinal, um retrato do próprio autor já que une, numa trajectória única, as experiências do artista e do homem de acção, a exigência de disciplina íntima e de comportamento de um espectador da vida e de um interventor activo no que ela tem de mais trágico e absurdo. Algumas das personagens deste livro singular e belíssimo serão recordadas para sempre na galeria de caracteres que Hemingway nos legou. 
Começando na década de 1930, "Ilhas na Corrente" narra o destino de Thomas Hudson, as suas experiências como pintor nas ilhas da corrente do golfo de Bimini e as suas actividades anti-submarinas no litoral de Cuba durante a Segunda Guerra Mundial.»

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