quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A morte revela o negociante que há em nós



"Fui a um cinema de Londres ver uma transmissão em directo de Nova Iorque do Orfeu e Eurídice, de Glück. Fiz antecipadamente o trabalho de casa, ouvi toda a peça de libreto na mão. E pensei: isto não pode resultar. A mulher do tipo morre e o seu lamento comove de tal forma os deuses, que eles lhe concedem permissão para descer ao Inferno, encontrá-la e trazê-la de volta. Põem-lhe, no entanto, uma condição: não deve olhar-lhe o rosto antes de voltarem à terra, senão perdê-la-á para sempre. Então, enquanto ele a guia para fora do Inferno, ela convence-o a olhar para ela; então ela morre; então ele volta a lamentá-la, de forma ainda mais comovente, e puxa da espada para cometer suicídio; então o Deus do Amor, rendido ante a demonstração de amor conjugal, devolve Eurídice à vida. Ah, estão a gozar, sinceramente. Não se trata da presença ou das acções dos deuses - nessas eu podia facilmente acreditar; era o facto de que ninguém no seu juízo se voltaria e olharia para Eurídice , sabendo qual era a consequência. E como se isso não bastasse, o papel de Orfeu, originariamente um castrato ou contratenor mas hoje em dia um papel masculino, era dado nesta produção a um corpulento contralto. Mas eu subestimara  completamente Orfeu, a ópera mais imaculadamente dirigida aos atingidos pelo desgosto; e naquele cinema o miraculoso artifício da arte aconteceu de novo. É claro que Orfeu se voltaria para olhar a suplicante Eurídice - como podia não o fazer. Porque , enquanto " ninguém no seu juízo" o faria , ele encontra-se completamente privado de juízo por amor, esperança e dor. Perdemos o mundo por um olhar? Claro que sim. É para isso que o mundo existe: para se perder na altura certa. Como podia alguém manter a promessa com a voz de Eurídice atrás?

Os deuses impõem termos e condições a Orfeu quando ele desce ao Inferno; tem de aceitar o acordo. A morte revela quase sempre o negociante que há em nós. Quantas vezes lemos em livros, ou vimos em filmes, ou ouvimos na narrativa geral da vida, falar de alguém que promete a Deus - ou a quem possa lá estar Em Cima - comportar-se de tal e tal maneira, se Ele o ou a poupar, ou a pessoa que ama, ou ambos? Quando chegou a minha vez - naqueles trinta e sete dias repletos de pavor - nunca me senti tentado a negociar, pois não havia nem há no meu cosmos ninguém com quem negociar. Dava todos os meus livros pela vida dela? É fácil dizer que sim: essas questões eram retóricas, hipotéticas, operáticas. « Porquê?». pergunta a criança, «porquê?» Os pais inflexíveis respondem simplesmente : «Porque é assim.» Portanto, enquanto me aproximava daquela ponte ferroviária, repetia com insistência: «É só o universo a fazer o seu trabalho.» Dizia-o para evitar perder-me em falsas esperanças e desvios sem sentido.
Disse a um dos poucos cristãos que conheço que ela estava gravemente doente. Replicou que ia rezar por ela. Não objectei, mas daí a escandalosamente pouco tempo dei por mim a informá-lo, não sem azedume, que o deus dele parecia não ter sido muito eficaz. Ele replicou: «Já pensaste que podia ter sofrido mais?» Ah, pensei, então isso é o melhor que o teu pálido galileu e o seu papá sabem fazer.
E aquela ponte sob a qual eu passava acabou entretanto por representar mais do que uma simples ponte. Tinha sido construída para levar o Eurostar ao seu novo términus londrino, em St. Pancras. A mudança em Waterloo dava mais jeito, e muitas vezes eu imaginara-nos a apanhá-lo juntos para ir e agora nunca iríamos. Assim, aquela ponte inofensiva passou a representar parte do nosso futuro perdido, todas as passagens e fracções e divagações da vida que agora não partilharíamos; e também coisas que não foram feitas no passado - promessas não cumpridas, descuido e indelicadeza, momentos de ficar aquém. Cheguei a odiar e temer aquela ponte, mas nunca mudei de caminho." Julian Barnes, in " Os Níveis da Vida", Quetzal Editores, Novembro de 2013

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