quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Poesia do (des)pudor de Inverno


Livro III, versos 59-66
Tende desde já na lembrança que a velhice há-de chegar;
e não deixeis, por isso, esvair-se tempo algum na ociosidade;
enquanto vos for consentido e conservardes, ainda, a idade da Primavera,
gozai; vão-se os anos, do mesmo modo que a água corrente;
nem a onda que passou voltará de novo a ser chamada,
nem a hora que passou logra tornar atrás.
Há que aproveitar a idade. Com passo rápido se escapa a idade,
e não é tão boa a que vem depois, quão boa foi a que veio antes
Ovídio, in " Arte de Amar"


SAUDADE DO TEU CORPO
Tenho saudades do teu corpo: ouviste
correr-te toda a carne e toda a alma
o meu desejo – como um anjo triste
que enlaça nuvens pela noite calma?…

Anda a saudade do teu corpo (sentes?…)
Sempre comigo: deita-se ao meu lado,
dizendo e redizendo que não mentes
quando me escreves: “vem, meu todo amado…”

É o teu corpo em sombra esta saudade…
Beijo-lhe as mãos, os pés, os seios-sombra:
a luz do seu olhar é escuridade…

Fecho os olhos ao sol p’ra estar contigo.
É de noite este corpo que me assombra…
Vês?! A saudade é um escultor antigo!
 António Patrício, in “poesia completa”, Assírio & Alvim, 1980.


O Quarto Em Desordem

Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca a síntese da flor

que não se sabe como é feita: amor,
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objecto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo! corpo, corpo,

verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto pela cama,
a passear o peito de quem ama.
Carlos Drummond de Andrade, in "Antologia Poética" , Relógio D'Água

Amor como em casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café , um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro. entro no
amor como em casa.
Manuel António Pina , in " Todas as Palavras , poesia reunida" , Assírio & Alvim,2012

Sorolla

SÓBRIO O TEU CORPO
Sóbrio o teu corpo me pede
penetração: nomes puros:
os de boca, braços, mãos
sobre a terra e sobre os muros.
Sóbrio o teu corpo me pede
nomes justos, nomes duros:
os de terra, fogo e punhos,
claros, acres, escuros.
António Ramos Rosa , in " Ocupação do Espaço", Portugália, 1963
Conheço o sal

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando da boca se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam 
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal 
da tua língua, o sal dos teus mamilos
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

Madrid, 16/Janeiro/1973
Jorge de Sena de Conheço o Sal...  in " Poesia de Jorge de Sena", Editorial Comunicação



Carícia

É a caricia da mão na minha face
e o meu olhar repousado
o sorriso que passa
rápido
de mim a ti.

É toda uma ternura que nos chama
é a desolada solidão de quem se ama
e conhece o espaço
que fica
de aqui ali.

É uma inclinação suspensa
por toda a pele que nos limita o corpo
gemido, doçura, pena
como o poema
a chamar por mim.
Salette Tavares (1922-1994), in “ Espelho cego”, 1957

Silêncio Amoroso

Deixe que eu te ame em silêncio.
Não pergunte, não se explique, deixe
Que nossas línguas se toquem, e as bocas
E a pele
Falem seus líquidos desejos.

Deixe que eu te ame sem palavras
A não ser aquelas que na lembrança ficarão
Pulsando para sempre
Como se o amor e a vida
Fossem um discurso
De impronunciáveis emoções.

Affonso Romano de Sant'Anna, in “Os dias do Amor, um poema para cada dia do ano”; recolha, selecção e organização de Inês Ramos; Prefácio de Henrique Manuel Bento Fialho; Ministério dos Livros

Sorolla


para o poema de amor

e uma flauta viscosa
de sopro quente de mosto
de enxuto e duro ( mineral)
som fosco de argila oca

numa audácia de saliva
fermento de melodia
como se pombos-correios
sem um ponto de partida

tivessem escrita a giz
em duas penas de ardósia
a notação dessa ária
para viagem sem volta

 e eu arrancando notas
da pauta de suas plumas
pousando-as sobre o teu colo
e as tuas espáduas nuas

lhes fosse aos poucos juntando
essas outras impelidas
pela cauda do poema
no vento do meio-dia

em rede forte tecida
como os pombos sem vestígio
toda toda te envolvendo 
de saber e de aventura
Vasco Graça Moura, in " modo mudando- Poesia reunida" vol.1 Quetzal Editores, Outubro 2012

Soneto 2
Os trabalhos de amor são os mais leves
de quantos algum dia pratiquei
na cama as alegrias fazem lei
e se me queixo é só de serem breves

eu vivo atado às tuas mãos suaves
num nó de que este corpo já não sai
ferve o arco do sol a tarde cai
ardem voando pelo céu as aves

mágoas outrora muitas fabriquei
e em países salobros jornadeei
ao dorso das tristezas almocreves

a vez em que te amei um outro fui
comigo fiz a paz nada mais dói
e os trabalhos de amor nunca são graves
Lisboa
12-X93, 23-XII-93
Fernando Assis Pacheco (1937-1995) ,in “Respiração Assistida”, Assírio & Alvim, 2003.

Sem comentários:

Enviar um comentário