terça-feira, 18 de novembro de 2014

Kalinine, a cidade de Kant

Alain descobre a ternura desconhecida de Estaline
" Quando ao fim de uma semana Alain reviu os seus companheiros numa tasca ( ou em casa de Charles, já não sei), interrompeu-lhes de imediato a tagarelice:
- Queria dizer-vos que para mim não é de todo inexplicável que Estaline tenha dado o nome de Kalinine à célebre  cidade de Kant. Não sei que explicações vocês terão podido encontrar, mas eu não vejo senão esta: Estaline sentia uma excepcional ternura por Kalinine.
A surpresa jovial que leu nos rostos dos amigos agradou-lhe e até o inspirou:
- Eu sei, eu sei... A palavra ternura não condiz com a reputação de Estaline, é o Lucifer do século, eu sei, a sua vida foi preenchida por conspirações, traições, guerras, prisões, assassinatos, massacres. Não o contesto; pelo contrário, quero mesmo sublinhá-lo para que se torne evidente, com a maior clareza, que , diante desse imenso peso de crueldades que ele devia suportar, cometer e viver, lhe seria impossível dispor de uma quantidade igualmente imensa de compaixão. Isso teria ultrapassado as capacidades humanas! Para poder viver a sua vida tal como era, ele não poderia senão anestesiar, e depois esquecer completamente a sua faculdade de se condoer. Mas face a Kalinine, nessas pequenas pausas distantes dos massacres, nesses doces momentos de um repouso tagarela, tudo mudava: era confrontado com uma dor totalmente diferente, uma dor pequena, concreta, individual, compreensível. Olhava o camarada sofredor e, com um doce espanto, sentia revelar-se em si um sentimento fraco, modesto, quase desconhecido, em todo o caso esquecido: o amor por um homem que sofre. Na sua vida feroz, este momento era como uma trégua. A ternura aumentava no coração de Estaline ao mesmo ritmo que a pressão da urina na bexiga de Kalinine. A redescoberta de um sentimento que há muito tempo cessara de experimentar era para ele de uma indizível beleza.
 " É aí - continuou Alain - que vejo a única explicação possível para este curioso rebaptismo de Königsberg como Kaliningrado. Isso passou-se trinta anos antes do meu nascimento, e no entanto posso imaginar a situação: terminada a guerra, os russos agregaram ao seu império uma célebre cidade alemã e foram obrigados  a russificá-la através de um nome novo. E não um nome qualquer! Era preciso que o rebaptismos se apoiasse sobre um nome famoso em todo o planeta e cujo estrondo fizesse calar os inimigos! Esses grandes nomes, os russos têm-nos amplamente! Catarina, a Grande! Pushkin! Tchaikovsky! Tolstoi! E não falo dos generais que venceram Hitler e que , nessa época, eram adulados por toda a parte! Como compreender então que Estaline tivesse escolhido o nome de alguém tão destituído? Que tivesse tomado uma decisão tão evidentemente idiota? Para isso não podem existir senão razões íntimas e secretas. E nós conhecemo-las: ele pensa com ternura no homem que sofreu por ele, diante dos seus olhos, e quer agradecer-lhe pela sua fidelidade, premiá-lo pela sua dedicação. Se não me engano - Ramon, podes corrigir-me! -, durante este breve momento da História, Estaline é o homem de Estado mais poderoso do mundo e sabe-o. Experimenta uma alegria maliciosa por ser, entre todos os presidentes e réis, o único que pode estar-se nas tintas para a seriedade dos grandes gestos políticos cinicamente calculados, o único que pode permitir-se tomar uma decisão absolutamente pessoal, caprichosa, irracional, esplendidamente bizarra, soberbamente absurda,
Sobre a mesa exibia-se uma garrafa aberta de vinho tinto. O copo de Alain estava já vazio; encheu-o e continuou:
- Ao contá-la agora diante de vós, vejo nesta história um sentido cada vez mais profundo. - Engoliu um gole, e depois continuou: - Sofrer para não sujar as cuecas... Ser o mártir da limpeza...Combater a urina que nasce, que cresce, que avança, que ameaça, que ataca, que mata...Existirá um heroísmo mais prosaico e mais humano? Estou-me  nas tintas para os supostos grandes homens cujos nomes coroam as nossas ruas. Tornaram-se célebres graças às suas ambições , à sua vaidade, às suas mentiras, à sua crueldade. Kalinine é o único cujo nome permanecerá na memória como recordação de um sofrimento que todos os seres humanos conheceram, como recordação de um combate desesperado que não causou tristeza a ninguém excepto a ele mesmo.
Acabou o seu discurso e todos ficaram comovidos. Após um silêncio. Ramon disse;
- Tens toda a razão, Alain. Depois da minha morte, quero despertar de dez em dez  anos para verificar se Kaliningrad permanece Kalinigrad. Enquanto for esse o caso, poderei experimentar um pouco de solidariedade com a humanidade e, reconciliado com ela, tornar a baixar ao meu túmulo." Milan Kundera, in " A Festa da Insignificância", Publicações Dom Quixote, Outubro de 2014
Sobre o livro: " Milan Kundera volta ao romance depois de treze anos.
Lançar luz sobre os problemas  mais sérios e, ao mesmo tempo, não proferir uma única frase séria, estar fascinado pela realidade do mundo contemporâneo e , ao mesmo tempo evitar qualquer realismo, eis A Festa da Insignificância.
A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. está connosco sempre e em toda a parte. Está presente mesmo onde ninguém a quer ver : nos horrores, nas lutas sangrentas, nas piores infidelidades. Exige-se-nos muitas vezes coragem para a reconhecer em condições tão dramáticas e para a chamar pelo seu nome.. Mas não se trata  apenas de a reconhecer, é preciso  amá-la, à insignificância, é preciso aprender a amá-la. 
  NA Festa da Insignificância, Kundera coloca em cena quatro amigos parisienses que vivem numa deriva inócua, característica de uma existência contemporânea esvaziada de sentido."

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