segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Um pungente adeus a Moçambique


As Memórias de Eugénio Lisboa  são uma galeria viva  de acontecimentos e de retratos de gente diversa do mundo cultural e literário que acompanha e povoa as diversas etapas da vida do escritor. A prosa deste intelectual é tão despida dos pomposos artefactos característicos de alguns académicos que nos toma de assalto pela clareza e vivacidade com que se organiza. As cenas vivenciadas, que a excepcional memória de Eugénio Lisboa reconstitui, são registadas através do  manejo virtuoso, (que lhe é peculiar), de um português graciosamente puro, correcto e belo. Somos tocados pela prodigiosa leveza e magia dessa escrita transparente. Acompanhá-lo é um imenso e infindável prazer. Um escritor de culto para mim, um excepcional homem de letras para a Literatura Universal. Cada livro que publica é uma obra de puro assombro e de aprendizagem. Num tempo em que proliferam escrevinhadores sem fôlego, autores de futilidades vastamente publicitadas neste país tão minorado, o lançamento de um novo volume das Memórias deste grande escritor, poeta, ensaísta, crítico literário , professor universitário é um acontecimento de intensa frescura a ser estrondosamente celebrado. A editora que o publica divulgou,  no respectivo site, o seguinte comunicado:

"A Opera Omnia e o Centro Nacional de Cultura promovem a apresentação do livro Acta est fabula – Memórias - IV - Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo. Londres (1976 -1995), da autoria de Eugénio Lisboa, uma edição da Opera Omnia.
A apresentação acontecerá na Galeria Fernando Pessoa, no Largo do Picadeiro, 10 - 1º, em Lisboa, no dia 30 de Outubro, às 18,30h, e estará a cargo da Prof. Otília Pires Martins."

Em Outubro de 2013, Eugénio Lisboa publicou o III volume das suas Memórias,"Acta est fabula,Memória-III-Lourenço Marques revisited (1955-1976)". Tendo previsto  um conjunto de cinco tomos, estarão três volumes editados com a apresentação deste quarto volume .
E porque recordar o que escreveu me é sempre um motivo de puro deleite e tendo em conta a publicação do novo tomo, transcrevo, com audaz orgulho, alguns excertos das últimas páginas do III volume. Páginas pungentes de um adeus forçado e muito  dolorido a uma das pátrias amadas, Moçambique, quando a recém independência da antiga colónia portuguesa vivia momentos de tenebrosa cegueira. 
A Eugénio Lisboa ficarei sempre grata pelo registo singular e valioso que nos oferta, possibilitando acompanhar a sua saga pessoal que se mistura  e destaca na história mundial do século XX. Lê-lo é descobrir o mundo que só os grandes prosadores são capazes de retratar.
"A situação , por outro lado, tornou a nossa permanência insustentável ( e este é o segundo exemplo de desgaste que eu queria dar), desde que fui obrigado a ficar só Português, pela pior e mais bárbara das maneiras.  Julgo que este foi um dos mais gigantescos erros  e uma das mais estúpidas e cruéis decisões, de quantas tomou a Frelimo, naquele período de desorientação  e  mau  aconselhamento. Falando  pejorativa e  demagogicamente, nos " comerciantes  de nacionalidades", Samora Machel produziu uma lei  das nacionalidades, pela qual, a pessoas como eu, a minha mãe, o meu irmão ou as minhas filhas , nascidos em Moçambique , não era dado nem o direito da dupla nacionalidade ( o mais razoável e humano) , nem o da simples " opção", que já era mais duro, mas ainda aceitável: ficámos , automaticamente, moçambicanos, só podendo continuar a ser portugueses rejeitando deliberadamente, a nacionalidade moçambicana. Ora isto era uma autêntica brutalidade - inútil e prejudicial, para todas as partes envolvidas.(...) A Frelimo cometeu  - admito que sem intenção de errar - muitos e graves erros, mas nenhum da dimensão descomunal desta desumana lei das nacionalidades. Poucos momentos tão dilacerantes terei vivido, como aquele em que , com as minhas filhas e mãe, tive que entregar um papel, dizendo que não queria ser moçambicano.
Além do mais, esta estúpida lei das nacionalidades, no seu fundamentalismo primário e demagógico, ignorava uma realidade: para muitos europeus nascidos em África, como eu, o nosso universo cultural ( e este engloba afectos) era mesmo duplo: éramos profundamente europeus e profundamente africanos. Mais precisamente: éramos portugueses e moçambicanos. Nenhuma destas vivências profundas podia ser erradicada por decreto. Dessem-me ou não me dessem passaporte, era português. O que eu era , em profundidade, era o que eu sentia e não o que qualquer burocrata vestido de político efémero ( e iletrado) decidisse que eu era. E ainda hoje penso e sinto assim. Quem decide a minha nacionalidade autêntica sou eu e mais ninguém. E venho de uma ilustre linha de representantes de uma cultura dupla, magnificamente exemplificada por gente como Henry James, T.S. Elliot, Joseph Conrad ou, se quiserem - e sem precisar esticar muito a corda  - Ivan Turguenev...(...)
A partir daquele momento, deixou, para mim , de haver dúvidas: ir-nos-íamos embora. Não era, nem de longe, a única razão, mas era, talvez, a principal e a mais profunda. Havia, é claro, outras: naquele universo de partido único, cheio de certezas e de slogans, onde não havia lugar para a dúvida e onde , diariamente, se troçava da ciência e da tecnologia, em favor da " sabedoria do povo", eu não augurava um futuro brilhante para o país. E não queria as minhas filhas a viverem - num país de " pensamento único" e onde começava a ser perigoso " divergir".(...)
Eu olhava para aquele mundo a esfarelar-se, física e moralmente, e sentia-me, cada vez mais, a pertencer, cada vez menos, àquilo tudo.(...)
Conto apenas um punhado de histórias representativas da epopeia de desastres e desmoronamentos que avassalava o país e atingia, com particular crueldade, a comunidade portuguesa. Houve pessoas que , subitamente desapossadas de tudo e sem qualquer viabilidade de futuro, enlouqueceram. Viam-se alguns, descalços, pelas ruas, monologando, obsessivamente, ao desbarato.
Ia-me , portanto, embora. Ia mesmo, estava decidido. Comuniquei-o, um mês antes de partir, enviando uma circular a todo o pessoal e à Direcção-geral que tutelava a energia. Para que não dissessem que me escapulia pela calada. E começou a dolorosa e demorada tarefa de empacotar as nossas coisas, sem sabermos o que nos autorizavam a levar.(...)
Um mês antes da nossa partida, fomos levar as filhas, numa viagem tormentosa, de carro, a casa dos nossos amigos Coombs ( o Peter era um colega da "Total", em Johannesburg: inteligente, tecnicamente muito competente e de uma extrema generosidade). De modo, que ficáramos sós, em Lourenço Marques, até à nossa própria partida. A vida tornara-se, cada vez mais complicada: de nada servia ter dinheiro, os géneros faltavam em todo o lado, só podendo ser adquiridos em lojas especiais, que só aceitavam o pagamento em Rands ( o escudo moçambicano não servia para nada). Tudo era, kafkianamente, complicado, incluindo a obtenção de documentação que tornasse legal a nossa partida: ao lado daquilo, Kafka não passava de um aprendiz de infernos burocráticos. As pessoas faziam filas e levavam refeições consigo, passando a noite, sendo necessário, na fila, para não perder a sua vez. Todos os bêbedos pelo poder gostam de inventar infernos com que torturar os outros, assim satisfazendo os seus instintos sádicos, uma vez por todas. Da merda que é uma burocracia  colossal e assassina, muito tem sido dito por gente eminente e esclarecida, que a viveu e sofreu. Balzac, por exemplo, afirmava que " a burocracia é um mecanismo gigantesco operado por pigmeus." Faltou-lhe dizer: pigmeus estúpidos e mesquinhos. Mas muito antes do criador da Comédie Humaine , já o lúcido Petrónio, imortalizado  por Sienkiewicz, no seu romance Quo Vadis?, observara, com rara perspicácia : " Eu iria aprender mais tarde, na vida, que temos tendência a resolver uma situação, reorganizando ...e que método maravilhoso esse pode ser, para criar a ilusão de progresso, ao mesmo tempo que se produz ineficiência e desmoralização." E note-se que consta ter sido Petrónio um governador eficaz e justo, que serviu a máquina eficiente e bem oleada do império romano. Seja como for, com tanto que fazer, nas três empresas, não podia dar-me ao luxo de ir para as inúmeras filas necessárias ao " processo" e pedi ao meu motorista que o fizesse por mim. Desempenhou impecavelmente o seu papel.(...)
Os últimos três dias, a "limpar" secretárias, a despachar coisas várias , a despedir-me de pessoas amigas e de colegas  ( na Sonap, deram-me simpático almoço de despedida) - foram um pesadelo. Quase não dormi. Entretanto, apareciam lá por casa uns oportunistas do bairro, impecavelmente fardados à Mao Tse Tung, para se darem ares, a quererem visitar a casa, por saberem que nos íamos embora... A Antonieta, indignada, corria com eles, dizendo que a chave seria entregue a quem de direito.
Quando, finalmente, fechámos a casa , na rua do Miradouro, e entramos no quarto do " Hotel Polana", para passarmos uma noite, sentia-me exausto, à beira do colapso físico e mental. Jantámos com o Adrião e a Quina que, simpaticamente, nos convidaram , regressámos ao hotel e caí na cama como uma pedra.
Moçambique , Lourenço Marques, aguarela de Vanessa Hands de Azevedo
No outro dia, partimos para a estação, na Praça Mac Mahon, depois do almoço, no carro da Maria de Lourdes e do António Pitta. A " Generala" (uma gata)* ia connosco, carregada de calmantes. Deixaram-nos à porta da Estação, para não se comoverem. Nós estávamos para além de qualquer comoção: completamente aniquilados. Na estação, ao pé do comboio, estavam os meus pais, a tia Maria, o Ilídio, o Vasco e a Leonette, o meu empregado Francisco Bomba, que me veio abraçar soluçando. Creio que estava mais gente, mas não consigo recordar-me: estava em estado de grande nebulosidade. Abracei o meu Pai, a quem estava a ver, lúcido, pela última vez, embora, nessa altura, o não soubesse. Entrámos  no comboio, ansiosos pela partida, para pôr fim àquele fim de uma grande e boa aventura. O combóio pôs-se  a andar, lentamente , e nós olhávamos  para trás , tentando ver, uma vez mais, os personagens  daquele nosso mundo, que tinha acabado ali. Estávamos a sair dele para sempre. Toda a saída é uma entrada algures, diz um personagem de Tom Stoppard. Então, se estávamos a sair, é porque íamos entrar. Em que outra aventura? Em que outro mundo?"
Eugénio Lisboa, in " Acta est Fabula, Memórias -III- Lourenço Marques Revisited (1955-1976)", Ed. Opera Omnia, Outubro de 2013
*nota introduzida pelo editor de Livres Pensantes

1 comentário:

  1. Extraordinário relato dos muito dolorosos momentos por que passou o autor, arrancado à força da sua segunda Pátria (provavelmente até a sentia como primeira). Avassalado por cruéis golpes que tantos sofreram naquelas etapas da nossa descolonização, Eugénio Lisboa consegue fotografar com a nitidez aue só ele consegue, o sofrimento por que passou. Tal é a nitidez, que consegue pôr-nos a ouvir os sons na Lourenço Marques de então, e no momento da despedida, na bela e inesquecível estação de caminhos-de-ferro Mac Mahon. Assjina Mário César

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