sábado, 4 de outubro de 2014

O espaço de todos e de ninguém


O Dia Internacional do Idoso é comemorado anualmente a 1 de Outubro.
Este dia foi instituído em 1991 pela (ONU) Organização das Nações Unidas e tem como objectivo sensibilizar a sociedade para as questões do envelhecimento e da necessidade de proteger e cuidar a população mais idosa.
População idosa em Portugal
"Segundo dados do Eurostat, Portugal será um dos países da União Europeia com maior percentagem de idosos e menor percentagem de população activa em 2050.
O Instituto Nacional de Estatística prevê igualmente que no ano de 2050, um terço da população portuguesa seja idosa e quase um milhão de pessoas tenha mais de 80 anos. Estes cálculos são feitos com base na tendência de envelhecimento da população, resultante do aumento da esperança de vida e da diminuição dos níveis de fecundidade."
Papa Francisco exorta contra o abandono dos idosos.
“O Papa Francisco dedicou a homilia deste domingo ao Dia do Idoso, considerando que a chamada “cultura do descarte”, o abandono dos mais velhos, não é nada mais do que uma «eutanásia disfarçada».
Francisco defendeu os mais idosos, dizendo que aqueles que não têm família devem ser acolhidos em lares, que não devem ser «prisões» mas antes verdadeiras casas, «pulmões de humanidade.Não podem existir centros onde os anciãos vivam esquecidos e escondidos”.
“Devem ser santuários de humanidade onde quem é velho e débil é cuidado como um irmão mais velho”, acrescentou.
Para o papa Francisco, “um povo que não protege os seus avós e não os trata bem é um povo que não tem futuro. Não tem futuro porque perde a memória e separa-se das suas raízes”.
“Uma das coisas mais bonitas numa família é poder acariciar uma criança e deixar-se acariciar pelo avô ou pela avó”, disse.
“A velhice é um tempo de graça, na qual o Senhor nos renova a sua chamada e nos diz que transmitamos a fé, e rezemos e intercedamos por quem tem necessidades”, expressou.
O papa destacou que os idosos são quem tem que “transmitir a experiência da vida, a história da família, da comunidade, de um povo e partilhar sabedoria”.
“Que sorte as famílias que têm os avós perto. Os avós são pais duas vezes”, acrescentou.” Lusa

O Lugar
"Dizer-lhe que naquele  Lugar as pessoas viviam tristes. Que eram apenas mais umas no meio de muitas mais, presentes  e vindouras em constante rotação. Que Genoveva era o terno anjo da morte . Inacreditável. Um autêntico “nonsense” .
Dizer-lhe para quê? Não fora ele o mais amado entre os muito amados? O delfim que sempre a acompanhara até ser atacado pela cegueira do tempo. Dizer-lhe  o quê? Que ali se morria em cada dia. Que ali havia a imagem do aviltamento no rosto  de cada um,  marginalizado por filhos mil.
Dizer-lhe que nada era tão doloroso como a rejeição, como a insensibilidade da imposição que converte gente inteira, lúcida e enraizada em sem-abrigo de casa alheia. Era isso que via naqueles olhos. Ali, não era a casa da vida que cada um vivera. Ali, era a ausência de casa. Era apenas o tecto dos sem-abrigo, dos espoliados. Daqueles a quem fora arrancado o maior vínculo à vida – a pertença, o espaço, a individualidade . As raízes e os laços que os ligam e os situam  num espaço próprio - o de cada um.
Ali, era o espaço de todos e de ninguém. Um espaço vinculativo à condição de hóspede, mas que não vinculava a pessoa que cada um trazia em si. E isso nem Marito, nem os filhos destes pais souberam e saberiam entender.(...)
Claro, que não precisava de nada. Deixara de precisar havia muito tempo. Estava numa situação de nítida vantagem em relação aos outros hóspedes – há muito que era uma sem-abrigo.
Descobrira-o quando entregara a sua casa a este filho. E ali, no Lugar, tinha acabado a diáspora. O abandono já era um fiel  companheiro.  Nada mais havia para descobrir, pois até o esquecimento o vinha já antevendo. Mas isso não a tinha derrotado, nem nunca a derrotaria.(...)

14
E o tempo ia passando e nem sempre as descobertas que se apresentavam eram aprazíveis. As mais recentes eram terrivelmente tristes, confrangedoras. E o pior é que apareciam sem que alguém as procurasse.
Naquele dia, falecera a companheira de quarto, Susana Teles Galvão, que sofria de coração. A morte apanhara-a pela manhã, enquanto dormitava.
Desde que chegara ao Lugar, já tinham falecido quatro hóspedes e outros tantos  os haviam substituído.
Agora tinha chegado bem perto, no quarto partilhado. Mal tivera oportunidade de conhecer Susana Galvão, mas ela estivera sempre ali, respirando irregularmente, mas viva.
E era assim o processo vida/morte na nudez total. Um processo rude que ali se expunha “ nu e cru” (...)
Carlos Lacerda fora Embaixador por esse mundo fora. Viajara muito e tivera oportunidade de conhecer as estruturas sociais de diversos países. Ficara fascinado com uma organização que vira na Suécia. Uma sociedade de amigos projectara  uma residência comum para poderem partilhar logo que abandonassem a vida activa , ou seja  logo que  se reformassem. E à medida  que o tempo passava  o número de amigos residentes ia aumentando. A residência estava implantada  também numa grande propriedade e usufruía  de todos os serviços de apoio necessários  que a guindavam a um nível elevado de qualidade. Visitara - a  várias  vezes, pois alguns amigos viviam lá. Ficara surpreendido com o ambiente feliz e calmo que encontrou. E foi assim que começou a cogitar a ideia de fazer da sua propriedade uma residência partilhada, já que habitualmente também a partilhava com os amigos.
Quando aconteceu aquela tragédia com a Emília teve a certeza de que era esse o caminho a seguir. Então, faria a doação salvaguardando os amigos que já viviam no Lugar para que não fosse alterado o seu  “ modus vivendi “ . Foram,  posteriormente, feitas várias obras de adaptação, sem contudo se perder a traça da mansão.
O que não tinha sido previsto, nem sequer imaginado , era  a tristeza apática que se abatia sobre estes hóspedes que ele não conhecia. Não era possível encher a mansão só de amigos como acontecera na Suécia. E a ideia de uma família partilhada fora apenas utopia.
No entanto, jamais ocorrera a Carlos Lacerda que seria possível internar pessoas sem que elas o desejassem ou até sem que elas interviessem nessa decisão. Arrancá-las da sua própria casa e largá-las naquela instituição era uma violentação abominável. E fazê-lo em nome de melhor qualidade de vida era uma mentira hedionda. Ninguém tem qualidade de vida quando é anulado, derrotado, despojado das suas referências. E aqueles hóspedes calados, adormecidos, fantasmas de si próprios eram as vítimas trágicas daqueles que os consideraram incapacitados e que, com infindáveis razões, tentavam justificar a falta de tempo para os apoiar. Assim, tal como uma mercadoria excedentária  convinha armazená-los. Era só e tão só assim.
E isso nunca Carlos Lacerda previra. E isso ia martirizando-o. E por mais que tentasse contrariar esta situação, era impossível dar alento a quem já não o queria. E o mais grave era que a maioria destes hóspedes acabava por descobrir que além de abandonada passava  a ser esquecida para sempre. A pouco e pouco as visitas acabavam e só na hora da morte  e porque eram avisados , voltavam a lembrar-se  da mercadoria armazenada.
Fora uma terrível descoberta. E conviver com essa tristeza que enchia o olhar dos outros hóspedes era uma dor imensa para o casal. Assim, sempre que entrava um novo hóspede tentavam evitar que se demitisse de viver.
A diferença era marcada pela opção de cada um quanto ao internamento. Aqueles que tinham decidido livremente instalar-se no Lugar; aqueles que tinham sido consultados sobre a possibilidade de aí residirem; e, ainda, aqueles que tinham há muito perdido as raízes, deambulando de casa em casa: esses, aceitavam a entrada no Lugar. Esses, eram os que sorriam. Esses, eram os homens e as mulheres que resistem ao tempo, apenas envelhecem com ele. Esses dispunham-se ainda a ser  a tal família partilhada.» Maria José Vieira de Sousa, in " O Lugar, memórias de um romance". Junho de 2008

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