sábado, 11 de outubro de 2014

Morrer de Velho - 2ª Parte

" A maior parte dos homens mudava de verdade com a aproximação da morte. Ou porque os assuntos terrenos, a que sempre se haviam dedicado com paixão, lhes pareciam fúteis  e só a indiferença deixava de ser fútil: aquilo mesmo que os altifalantes tinham  pregado. Ou, então, esses mesmos assuntos tornavam-se fúteis e só a construção religiosa deixava de ser fútil ainda que desde a infância a tivessem ignorado. Acontece que isto era tão-só o final de uma série de metamorfoses: a sua visão do mundo mudara consoante as épocas das vidas 
Mas  se havia uma verdade para os vinte anos, uma verdade para os quarenta anos, uma verdade para os sessenta anos, uma verdade para a agonia, se havia tantas verdades, a verdade não existia. Os " problemas" dissolviam-se como se dissipam as nuvens num céu que pretende ser sereno. Ele que vivera, de pequenino, sobre esta concepção: existe o verdadeiro de um lado, e o falso do outro, sem quaisquer meias-tintas entre si! Havia a vida que era móvel, confusa e incoerente, e, depois, tudo aquilo que existe para o homem antes da sua vida e depois dela, que era fixo e absoluto. O altifalante falava verdade: existia o caos, que era a vida, e a noite, que era aquilo que procedia e estava depois dela ( Caos e Noite, duas personagens da divina comédia de Hesíodo, de Hesíodo que Celestino não lera). Havia o absurdo, que era a vida, e o não-ser , que era o que havia antes e depois da vida (1). Ou, antes, não haveria apenas o não-ser e uma aparência do ser? "Nada tem existência, pois que tudo deixa de existir quando eu deixo de existir." Era isso que ele devia ter compreendido mais cedo: "Nada tem existência." Mas  compreendia-o, finalmente, e a luz que o iluminava era tão insólita e tão grandiosa que só a sua morte a podia derramar. Ela era o aviso certo da morte, se acaso pudesse ainda ter quaisquer dúvidas a seu respeito. Um quarto de hora de inteligência durante uma vida inteira, e no momento em que a abandonamos!" 
Henry de Montherland , in " O CAOS E A NOITE", 1963, Tradução de Manuel Poppe, Editora Ulisseia.
(1) Se as entidades de Caos e de Noite que Celestino moribundo imagina estão - sem que ele o saiba - em Hesíodo, as identidades que lhes confere não se encontram nem em Hesíodo nem em nenhuma das cosmogonias gregas.


Morrer de Velho (revisita)* ( 2ª Parte)
Por Eugénio Lisboa
"(...) É esta visão extremista na sua atrocidade, que Montherlant nos transmite, numa prosa cheia de energia e de lucidez maligna mas estranhamente redentora, na beleza firme e provocadora de um estilo, que nos atinge e perturba: a minuciosa descrição do percurso agónico de Celestino é feita para nos não deixar porta de saída à angústia que é nossa, depois de ter sido do anarquista espanhol e do próprio Montherlant, que a exorcisou através da escrita. Nós, leitores, exorcisá-la-emos, à nossa angústia, com recurso possível ao gozo estético que nos proporciona a prosa sumptuária do autor de La Marée du Soir.
O que há de profundamente original e forte em Montherlant, como artista-criador, é a sua impecável honestidade. A sua visão da vida – lúcida, por vezes atroz – não cede à tentação de matizações optimistas ou açucaradas. “Um cão que ladra vale mais do que um homem que mente”, nota algures o autor dos Carnets. E esclarece: “Eu não penso, ao dizer isto, no homem que mente na vida privada, o que é necessário e, muitas vezes, salutar. Mas naquele que mente ao povo: o homem político, o escritor com  mensagem, o general, etc.” Por fim, este anátema violento a toda a palhaçada optimista: “O lado infame da maior parte das filosofias é quererem elas ter uma conclusão optimista. Vê-se bem a manhazinha: trata-se de conseguir audiências e ser aprovado. Nem por se ser filósofo se deixa de ser humano.
“’Amanhã será dia’ ‘Amanhã sobre os nossos túmulos as espigas serão belas’, etc. A verdadeira infâmia do optimismo de encomenda em nós, em todos , todos nós: o filósofo, o poeta, o chefe de Estado, o chefe de partido, o chefe de guerra, desde o padre com o seu paraíso até aos ‘amanhãs que cantam’. Frequentemente já nem sequer é optimismo, é uma simples cláusula de estilo, algo de senil como todas as cláusulas de estilo.”
Assumir o fardo da expressão, nestes termos, exige necessariamente um ingrediente, além da honestidade: a coragem, componente inevitável do génio autêntico, segundo Montherlant. Só com uma impoluta coragem se conseguiriam escrever as páginas que nos entregam a odisseia do velho anarquista espanhol, na sua cavalgada para a morte, devorado de lucidez, ressentimento e vontade de espezinhar todos os valores sagrados de que a sua vida se alimentara: a Espanha, o socialismo (em Espanha) e as touradas (em Espanha).
O Caos e a Noite mostra-nos a vida de Celestino dividida em três partes distintas: a vida intensa, frutuosa, que corresponde ao tempo da luta – da guerra civil – em Espanha; o tempo de paragem, de tédio, de encontro com os sinais de morte, isto é, de recuo da natureza e da vida, que corresponde aos anos de Paris (lugar incompreensível); por fim, o tempo, de novo intenso e pavoroso, da morte, em Madrid, aonde absurdamente regressa, a pretexto de receber uma herança. Do texto que há quarenta e um anos escrevi, exorcizando os meus próprios fantasmas, colho o seguinte resumo: “Celestino Marcilla vive em Paris há 18 anos (e em França há 20), exilado, após um período de luta, como anarquista, na guerra civil de Espanha. A guerra civil – eis o fulcro de toda a sua existência. Pode dizer-se que só nela viveu – e frutificou. O nascimento da filha - Pascualita – coincide, significativamente, com a morte da mulher e o abandono de Espanha, no fim da guerra civil. É como se disséssemos: saído de Espanha, a parte viva de Celestino fora-lhe amputada: a própria Espanha e a sua mulher (e a sua capacidade de, por meio dela, dar fruto). O que resta é um exilado inactivo, estéril e cheio de manias sagradas. O melhor do seu tempo gasta-o Celestino pelos cafés, enchendo-se de jornais, de artigos, de conversas, de «discussões», mais inúteis umas do que as outras. Docemente, a excentricidade da sua vida marca-lhe os gestos e os tiques. Após 20 anos de vida em França, mal fala o francês. Não tem amigos franceses; não sai de Paris e, em Paris, do bairro que habita. Os seus amigos são espanhóis e são poucos: Ruiz, Pineda e Moragas. Nenhum deles sabe ao certo o que Celestino fez em Espanha, durante a guerra, antes de se exilar. Sabem-no, vagamente, o mesmo é dizer que ignoram tudo. (Quando morremos a imagem que de nós fica é a que de nós dão os nossos amigos. Isto é: o que de nós resta não somos já nós mas uma caricatura de nós. Quando morremos, é mesmo o fim: o que resta é outra coisa). O mesmo se passa com Pascualita. Conhece as ideias do Pai, melhor: dactilografa-lhe os «artigos» (que ele envia para os jornais e que estes não publicam), uns atrás dos outros, sem fazer um comentário. O trabalho que executa é puramente automático. No fundo, o que o pai pensa e escreve (e que é para ele toda a sua vida) não passa para ela de chinês. Nunca, em 20 anos, comentou uma linha que o pai tenha escrito (vinte anos é muito [tempo] e um silêncio de 20 anos é ainda mais). No fundo, Pascualita não leva o pai a sério [porque o Pai deixou de ser «importante»]. O mesmo fazem Ruiz e Pineda. Mais para diante, o mesmo irá passar-se com a morte de Celestino. Tudo lhe gritará que ele vai morrer – os «sinais mortíferos» surgirão uns atrás dos outros: ninguém o levará a sério. O  que vai morrer é sempre um importuno ou um maníaco ridículo. Os vivos, os que vão ficar – não «podem» levá-lo a sério. Afastam-se pela troça ou pelo cepticismo. Celestino há-de tentar «discutir» a sua morte, iniciar, com dignidade, um ritual fúnebre, «organizar», em suma, essa coisa espantosamente importante que é o seu aniquilamento – rir-se-ão dele.”
Vamos agora inventariar os principais fantasmas que vão atormentar o velho anarquista no período que vai preceder a sua morte em Madrid: o isolamento progressivo, com a deserção de amigos, familiares e objectos, cavando-se um vácuo à sua volta; o não agir, também progressivo – o não fazer nada ou fazer pouco; o silêncio que vai crescendo em torno de si, precipitando-o num gradativo recolhimento; contraditoriamente, o receio de ser desprezado e o desejo doentio de ser reconhecido (a coceira do reconhecimento, que o leva a gestos ridículos.); o cepticismo final e, por fim, a indignidade de uma morte grotesca, de que qualquer veleidade de sublime é conspurcada pela interferência intempestiva de um factor risível ou simplesmente impertinente. Serão estes os principais degraus da via sacra do antigo combatente da guerra civil, a caminho do aniquilamento final.
Na verdade, a caminhada para a morte – acompanhada dos inevitáveis sinais – tivera já início em Espanha, no final da guerra civil, quando, com a filha, tentava fugir para França. De facto, já em França, num dia em que explicava à filha alguma coisa sobre as frentes populares, notou que ela bocejava. Então, “ele lembrou-se”, nota Montherlant, “daquele tipo a quem perguntara o caminho, quando fugia de Espanha em direcção à fronteira, e que bocejava a ponto de se lhe desarticular a mandíbula, enquanto Celestino lhe falava de coisas em que jogava a sua vida.” Celestino compreendeu, então, como se fosse uma sinistra revelação, que “era como se estivesse – já - ferido de morte; depois, sem uma palavra mais, partira ao acaso pela montanha.” Indiferença dos outros em relação à nossa morte possível ou mesmo provável: “Ninguém compreende bem a sua situação”, nota Montherlant no Caos “enquanto não tiver compreendido que, fora um ou dois seres, ninguém se interessa por que se viva ou morra.” Alguém que boceja à nossa frente, quando tudo nos ameaça!, eis a revelação dolorosa de que a morte se pode fazer anunciar vestindo os formatos mais grotescos...
Vejamos, então, um por um e com brevidade, os fantasmas que atormentam Celestino na sua corrida para a morte:
            1º)  O isolamento: os amigos, cansados, entediados, incomodados, abandonam-no, isto é, atraiçoam-no. O mesmo faz Pascualita que já não consegue esconder o seu tédio e, o que é pior, a sua indiferença. As diversas criadas, contratadas, uma após outra, abandonam-no, também, ao fim de algum tempo. Por fim, em Dezembro, Pascualita consegue contratar uma nova criada; “o acordo estava ultimado;” relata Montherlant, “ela devia vir no dia seguinte às nove horas. Às nove horas menos dez don Celestino tinha já compreendido. Às nove horas e um quarto ela não tinha chegado. Não veio.” “Quando se convenceu de que, definitivamente, ela não viria,” nota Montherlant, “afundou-se numa poltrona, prostrado como um homem honesto a quem o juiz de instrução acaba de dizer que o inculpa.” Punido, em suma, pelo delito de velhice. “A velhice atrai as traições como o excremento atrai as moscas”, dissera o octogenário Cardeal de Cisneros, se bem se recordam. Traído, afunda-se na poltrona, senta-se, desiste, como séculos antes fizera Pompeu, em Farsália, grande general que era, mas cansado e, por isso, apavorado ante a malévola energia de Júlio César. Pascualita mente-lhe também, indo ao cinema e negando-o, quando ele a interroga. Cercado de deserções que são traições, o vácuo, à sua volta, alastra. Partirá para Espanha sozinho e ali morrerá sozinho. O isolamento progressivo é um dos sinais mais significativamente mortíferos, nestes percursos para a morte. Celestino, cada vez mais cercado de solidão,” é já o touro que alguns anos mais tarde ele há-de observar na última tourada que presenciará em Madrid. Sozinho [o touro], na arena, em face de um público que incompreensivelmente deseja a sua morte (ou que, pior ainda, é indiferente à sua morte) e de um matador que lha vai dar (inabilmente, o que vai exigir quatro estocadas e o ritual grotesco de uma morte lenta, canhestra e suja [...]”). “Ele [o touro],” dirá ainda Montherlant, “estava só, contra todos, na santa solidão das vítimas.” Ele, o touro, tal como o velho Celestino, queria compreender e não compreendia. O seu biógrafo, Montherlant, entrega-nos, por fim, em resumo, esta medalha atroz: “Cada vez mais desconfiado e cada vez mais enganado, cada vez mais perverso e cada vez mais achincalhado, ao mesmo tempo cada vez mais impotente e perigoso, votado à morte inescapável e capaz ainda, no entanto, de dar ele próprio a morte: tal era o touro no fim da sua vida e tal [era] o homem.”
            2º)  O não agir, o fazer pouco ou não fazer nada. Não é só o socialista Celestino que se remete à introspecção, às ideias, desprezando o agir, odiando o agir. Toda a obra de Montherlant é percorrida por um teor de personagens que se “retiram”, tornando-se quase histericamente eloquentes no que respeita o seu altivo desprezo pela acção: é o rígido e íntegro Maître de Santiago que vocifera: “Os jovens não têm a audácia de nada, nem o respeito por nada, nem a inteligência de nada. Para eles as expedições marítimas, é exactamente o que lhes convém. Mas as aventuras elevadas são interiores.” E a Rainha Joana a Louca, não é menos extremista, no seu horror ao agir:  “Hoje”, diz ela, “eu sou do mundo do nada. Nada amo, nada desejo, a nada resisto (não vedes que os gatos me devoram viva sem que eu me defenda?), nada mais, para mim, se passará na terra, e é este nada que faz de mim uma boa cristã, digam o que disserem; e que me permitirá morrer contente perante a minha alma, e em ordem perante Deus, mesmo com todo o meu peso de pecados e de dor. Cada acto que não faço é contado num livro pelos anjos.” Ou ainda, a mesma Joana, a Louca, noutra passagem não menos contundente: “Agir! Agir sempre. A doença dos actos, a macacada dos actos. Os actos deixam-se a quem não é capaz de melhor.” Ou, de novo, o Mestre de Santiago, comentando, na peça do mesmo nome, para Bernal: “Olmeda, que tem sessenta e dois anos e se ocupa a fazer de governador em vez de se ocupar a fazer uma boa morte, revela-se frívolo.”
No final da sua estadia em Paris, Celestino ocupa-se a “fazer uma boa morte”, organizando tudo até aos últimos pormenores, para assegurar um passamento respeitável e respeitado – incluindo um salto a Madrid (salto perigoso para um anarquista exilado), com o fim de receber uma hipotética herança. Vários personagens romanos, que Montherlant repesca nos seus textos ensaísticos, na sua fuga final à derrota ou ao ódio dos tiranos, batem em vão a várias portas em busca de dinheiro que lhes financie os últimos dias e compre algumas amizades. No último momento, que se quisera minimamente sublime, a todos estes personagens aparece o problema sórdido da “massa”, da “pasta”, a rebaixar a sumptuosidade do fim.
Não agir. Não ter o desejo de – signo seguro da proximidade do fim. Montherlant, sempre maldoso no agravar do processo, observa, nos seus Carnets, dois anos antes do seu próprio fim: “Sócrates, atravessando um mercado em Atenas: «Tanta coisa que não me apetece!»”
            3º)  O silêncio. Abandonados, cansados, cépticos, os personagens que se aproximam da morte tendem a praticar o corolário natural do isolamento e do não-agir: o silêncio compacto a que se remetem. No final do seu percurso, às portas do retiro definitivo, o velho Mestre de Santiago explica-se: “Tantas coisas não valem ser ditas. E tanta gente não vale que as outras coisas lhes sejam ditas. Isto representa muito silêncio.” O que levará o conde Soria a comentar, para o Mestre: “O barulho que faz o vosso silêncio...” A proximidade do fim tira sentido a muito do que antes fora todo o sentido da vida. Em Carnets de 1965, incluídos no livro Tous Feux Éteints, o autor do Caos dá-nos mais uma de muitas anotações pungentes, a este respeito: “Racine”, diz ele, “trabalha numa revisão do seu Teatro, quando o médico lhe anuncia a sua morte próxima; deita o manuscrito ao fogo. Miguel Ângelo, já muito velho, esculpe a Descida da Cruz para a catedral de Florença; quando acaba a obra, escavaca-a”. Todos estes personagens devorados por uma lucidez de fim parecem pensar: fazer uma obra é sempre comunicar, falar, entrar em diálogo. Com a morte à nossa espera, falar para quê? Régio nota algures, num dos mais belos textos que escreveu, Multiplicidade de Jesus, o silêncio em que Jesus se envolve, nos últimos tempos: “Depois”, diz ele, “começa a paixão e, em grande parte, o silêncio.” Para Celestino, no Caos, a proximidade do fim retira-lhe o gosto das «discussões», dos artigos (que eram uma forma de conversa), das ideias (sobre socialismo e sobre touradas). E Joana, a Louca, da peça O Cardeal de Espanha, esclarece com a lucidez ferina do costume: “Perguntam-me porque vivo rodeada de gatos, apesar dos incómodos que me causam. Porque os gatos não se ocupam nem de ideias nem de impérios.”
Ainda nos seus Carnets, Montherlant anota, numa das suas passagens mais patéticas – mas lembrem-se de que ele não se queixa, apenas se exprime – o silêncio para que se vêem, por outro lado, empurrados os que vão morrer,  em grande parte
motivado pelo facto de os outros não quererem ouvir falar disso, isto é, da morte iminente. A passagem, que transcrevo, diz o seguinte: “Emile Clermont escreve no seu diário durante a sua última licença militar: «Volto a partir para uma morte quase certa e quereriam que eu estivesse alegre». Quão mais me toca” comenta Montherlant, “esta queixa discreta do que quaisquer toques de clarim! Ele regressa às linhas e é morto.” E dá ainda outro exemplo de silêncio fortemente sugerido, um silêncio que mata: “Em 1916, um oficial superior, de cinquenta e cinco anos, de licença e de regresso a casa: mulher e três filhos. Confia ao irmão: «Quando falo da possibilidade da minha morte, os rostos fecham-se e desviam a conversa. Não tenho o direito de dizer que sofro e que se sofre na frente de combate: quando o digo, sinto que aborreço. Sobre tudo o que trago no coração – e, é preciso dizê-lo, sobre tudo o que trago no ventre, - devo calar-me. Minha mulher reza-me o sermão: «A tua licença é uma licença para descontracção. Portanto, descontrai-te». E se eu não puder descontrair-me? Se tudo o que eu  vi e vou rever for demasiado atroz e se eu não puder libertar-me disso? Mas eles são incapazes de refrear a sua ligeireza» Confessa que esteve à beira de encurtar a licença.
            “É uma família muito unida, cristã, etc.”
            “O oficial morre pouco depois da licença”
O silêncio de quem está proximamente prometido à morte é, assim, feito também do desinteresse dos outros, da indiferença dos outros, do conforto egoísta dos outros. Deste silêncio pavorosamente ruminador de Celestino – visto que nem Pascualita, nem Ruiz, nem Pineda, nem Moragas estão para levar a sério a morte próxima de Celestino – porque diabo se não descontrai ele? -, dá-nos Montherlant conta em algumas das mais extraordinárias páginas do romance do século XX. Falando de Dante, que põe infinitamente acima de outros grandes vultos da literatura universal, o autor de O Caos e a Noite diz o seguinte: “A construção da sua frase é de uma energia infernal: Ele possui o que possuem os grandes, a mais elevada concepção, a imaginação devastadora, e, com tudo isso, o pequeno pormenor trivial, que choca os pobres diabos. E é um mestre de desprezo para aquilo que merece desprezo.” Eis uma caracterização perfeita da escrita deste grande mestre do século XX, que se serve desta espantosa utensilagem, não para pifiamente se queixar, mas tão só para sumptuariamente se e nos  exprimir, em tudo quanto temos de grande, de menos grande ou de ridículo, no modo como assumimos a nossa inevitável agonia.
            4º)  Cepticismo. Para os agnósticos, como Celestino, a descrença final nos valores antigos – a Espanha, o socialismo, as touradas – deixa-os sem qualquer suporte, no período final da sua vida. Rejeitado o valor suspeito do além, nada têm a que se agarrar. Montherlant cita, por mais de uma vez, as Escrituras: “Terei a mesma sorte que o insensato. Porque terei então sido ajuizado?” E o filósofo romeno Cioran observa: “Kant esperou pela extrema velhice para se aperceber dos lados sombrios da existência e assinalar «o fracasso de toda e qualquer  teodiceia racional»”. E cita ainda Tocquevile que singularmente sintoniza com esta visão implacável que temos vindo a descrever: “Se me encarregassem de classificar as misérias humanas, eu fá-lo-ia pela ordem seguinte: a doença, a morte, a dúvida.” Tocqueville fica aquém de Celestino, porque se fica pela dúvida. Em Celestino não há dúvida: há o deserto, a descrença final em seja o que for a que se agarre.
            5º)  O desejo de ser reconhecido. Nem, ao menos, saber que foi reconhecido, que alguém deu por ele, que deixará uma marca, um rasto, algo que permita a alguém referi-lo – eis o que parece intolerável. Nos últimos tempos, com efeito, abandonado pelos amigos e pela filha, Celestino começa a recear que toda a gente, mesmo o porteiro do prédio em que vive o desconsidere. Mas eu prefiro citar Montherlant, nesta passagem tragicamente bela: “Os telefonemas, antigamente, por mais raros que fossem, impacientavam-no; agora aguardava-os; por vezes, quando a campainha do telefone tocava, ele precipitava-se para o aparelho, humedecendo os lábios, mas tratava-se sempre de alguém que se enganara de número (...) No barbeiro, no restaurante, dava gorjetas chorudas, charutos magníficos, para não ser desprezado. Endireitava o corpo, com energia, ao aproximar-se de casa. Ao passar diante do cubículo do porteiro, deitava um olhar ávido para ver se não teria alguma carta na sua caixa. Meteu-se-lhe na cabeça que o porteiro o desprezava porquanto dois dias de seguida não tinha tido carta.
Mandou Pascualita sondar o porteiro com tacto infinito. Depois endereçou a si próprio envelopes, contendo uma folha em branco, envelopes com o seu nome escrito por si próprio numa letra que disfarçara: «antigo Vice-Presidente da Sociedade Espanhola das Ciências Sociais» (sociedade inexistente, escusado será dizer. Ele pusera o antigo e o vice porque também não convinha exagerar). Ia deitá-las numa caixa de correio um pouco distante para que o porteiro, se reparasse no carimbo, não ficasse surpreendido por as cartas virem sempre do seu próprio bairro. Dentro em pouco, já lhe parecia que o porteiro o não desprezava.”
Quanto a este desejo patético de reconhecimento, os resultados obtidos não enganam Celestino, que conhece melhor do que ninguém as trapaças cometidas para os conseguir. No fundo, nem essa via lhe permite entrever uma réstea de dignidade que presida ao seu fim. O equivalente disto, no seu criador literário, Montherlant, encontra-se registado em mais de um ponto, assinalando, sem rasto de esperança ou optimismo, o modo como entrevê o reconhecimento que a posteridade fará à sua obra, festejada em vida pelos maiores espíritos do tempo: Malraux, Bernanos, Valéry, Gide, Romain Rolland. Numa passagem dos seus Carmets, redigida dois anos antes da sua morte, diz, com acinte: “Assim que estiver morto, dois abutres, a Calúnia e o Ódio, cobrirão o meu cadáver para que ele lhes pertença em exclusivo, e retalhá-lo-ão. Em seguida, poisarão sobre ele a pedra do esquecimento, por um período que não consigo prever. Depois, um «curioso», um dia, descobrir-me-á e escreverá sobre mim um livro em que aparecerei, metade verdadeiro, metade travestido; e falarão de mim durante três semanas. Depois, a pedra será de novo selada e será o esquecimento por toda a eternidade.”
            6º)  A morte conspurcada. Nos últimos tempos de vida, já o vimos, Celestino faz tudo, planeia, organiza-se, para facultar a si próprio um finale cheio de dignidade – é isso, aliás, que o levará, com risco de vida, a Madrid, para aí receber a herança que lhe permitirá pagar as custas das suas exéquias. Mas nem isso lhe será concedido. Acabará por morrer – vítima de quatro estocadas inexplicadas – numa cama de pensão sórdida, não ao som de uma solene marcha fúnebre, mas atravessado, conspurcado, humilhado pelo som rouco de uma miserável cançoneta americana emitida de um quarto ao lado. Este fim, inesperadamente sórdido, obcecou, desde sempre, Montherlant, que a ele alude, nos seus Carnets de 1968, por interposta pessoa do Cardeal Ximenez de Cisneros (histórico). Escreve Montherlant: “O cardeal de Espanha, moribundo, encontrando-se na agonia, vê à sua cabeceira um intruso que conseguiu introduzir-se e lhe apresenta um pedido. Responde, com rudeza, à castelhana: «Este é o momento de morrer e não de satisfazer pedidos»”. A isto, Montherlant faz só este comentário, que é, não uma facécia, mas sim o registo de uma verdadeira obsessão: “Há já anos que penso que, quando estiver na agonia, o criado baterá timidamente à porta, para dizer: «É uma senhora que pede um autógrafo»”.
                                                                       ...
Procurei tecer uma teia em que se visse, com suficiente nitidez, os essenciais fantasmas que presidem ao acontecer da velhice que precede a inevitável morte: fantasmas que atormentam o personagem da singular ficção que é O Caos e a Noite, depois de terem atormentado o seu criador Montherlant, o qual, através da escrita, ensaiou exorcizá-los. Tenho a consciência de vos ter entregue uma paisagem de quase intolerável negrume. É que, como Montherlant, não gosto de inventar infundamentados “amanhãs que cantam.”
Gostaria, no entanto, sem mentir muito, de terminar esta minha intervenção de uma maneira diferente. É que, por vezes, do fundo mais fundo da mais funda negrura, o próprio negrume emite um fulgor que deslumbra. Eu explico, ou antes, conto uma pequeníssima história (verídica) e com ela termino. A história é relatada pelo grande poeta grego George Seferis e diz respeito aos últimos dias do grande patriarca da poesia grega, Angelo Sekelianos, de quem era amigo, admirador e devedor. Diz Seferis: “Ele [Sekelianos] teve uma grande crise, em Atenas, e eu corri a vê-lo; sentia-me profundamente ansioso; ele tinha sofrido um colapso em casa de um amigo. E, de novo, a mesma esplêndida reacção. Disse-lhe: «Meu querido Angelo, sentes-te bem?» Respondeu-me: «Sinto-me bem. Mas tive uma experiência esplêndida. Vi a escuridão absoluta. Foi tão belo!»”.

     *Dou a este texto o subtítulo de “revisita” porque ele, de facto, revisita, alterando-o e aprofundando-o (tornando-o mais letal...), um texto mais antigo, com o mesmo título, publicado, incompletamente, nos números 102, de 9 de Novembro de 1963 e 103, de 16 de Novembro de 1963, no semanário A Voz de Moçambique, e completado para inclusão no livro Crónica dos Anos da Peste-I ( Lourenço Marques, 1973; 2ª. edição, Lisboa,  1996).

RESUMO
À medida que se aproxima a sua morte, o velho anarquista espanhol, Celestino Marcilla, exilado em Paris, é atormentado por todos os fantasmas que presidem ao acontecer da velhice. Este texto tenta “visitar”, com alguma minúcia, esses fantasmas que Montherlant inventaria, no seu romance Le Cahos et la Nuit, e em quase toda a sua obra, incluindo os Carnets.

Palavras chave: isolamento; inacção (não-agir); silêncio; cepticismo; denegrimento; desejo de reconhecimento; sublimidade conspurcada.
Eugénio Lisboa

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