terça-feira, 28 de outubro de 2014

Do Amor II

De amor nada mais me resta que um Outubro

De amor nada mais me resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto;
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia, in «Poesia Completa», D. Quixote, Lisboa, 1999

Ternura

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?


E o ventre, inconscientemente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...


É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio


Vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!


David Mourão-Ferreira, in «Obra Poética - 1948-1988», introd. de Eduardo Prado Coelho, Presença; Lisboa, 1996
Abrigo

Abrigo-me de ti
de mim não sei
há dias em que fujo
e que me evado


há horas em que a raiva
não sequei
nem a inveja rasguei
ou a desfaço


Há dias em que nego
e outros onde nasço


há dias só de fogo
e outros tão rasgados


Aqueles onde habito com tantos
dias vagos.

Maria Teresa Horta, in «MINHA SENHORA DE MIM», Editorial Futura, Lisboa 1974

o suporte da música

o suporte da música pode ser a relação
entre um homem e uma mulher , a pauta
dos seus gestos tocando-se, ou dos seus
olhares encontrando-se, ou das suas

vogais adivinhando-se abertas e recíprocas
ou dos seus obscuros sinais de entendimento,
crescendo como trepadeiras entre eles.
o suporte da música pode ser uma apetência

dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se 
ramifica entre os timbres, os perfumes,
mas é também um ritmo interior , uma parcela
do cosmos , e eles sabem-no, perpassando

por uns frágeis momentos, concentrado
num ponto minúsculo, intensamente luminoso,
que a música, desvendando-se, desdobra,
entre conhecimento e cúmplice harmonia.
Vasco Graça Moura, in " Poemas com Pessoas - Poesia reunida", vol. 2,  Ed. Quetzal


Poema

Como se o teu amor tivesse outro nome no teu nome,
chamo por ti; e o som do que digo é o amor
que ao teu corpo substitui a doçura de um pronome
- tu, a sílaba única de uma eclosão de flor.


Diz-me, então, por que vens ter comigo
no puro despertar da minha solidão?
E que mumúrio lento de uma cantiga de amigo
nos repete o amor numa insistência de refrão?


É como se nada tivesse para te dizer
quando tu és tudo o que me habita os lábios:
linguagem breve de gestos sábios
que os teus olhos me dão para beber.


Nuno Júdice, in «Poesia Reunida 1967-2000»,  com Prefácio de Teresa Almeida, Publicações D. Quixote, 1ª Ed. Outubro de 2000


Canto Grande

Não tenho mais canções de amor.
Joguei tudo pela janela.
Em companhia da linguagem
fiquei, e o mundo se elucida.

Do mar guardei a melhor onda
que é menos móvel que o amor.
E da vida, guardei a dor
de todos os que estão sofrendo.

Sou um homem que perdeu tudo
mas criou a realidade,
fogueira de imagens, depósito
de coisas que jamais explodem.

De tudo quero o essencial:
o aqueduto de uma cidade,
rodovia do litoral,
o refluxo de uma palavra.

Longe dos céus, mesmo dos próximos,
e perto dos confins da terra,
aqui estou. Minha canção
enfrenta o inverno, é de concreto.

Meu coração está batendo
sua canção de amor maior.
Bate por toda a humanidade,
em verdade não estou só.

Posso agora comunicar-me
e sei que o mundo é muito grande.
Pela mão, levam-me as palavras
a geografias absolutas.
Lêdo Ivo, in " Poesia completa, 1940-2004", Ed.Topbooks

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