sábado, 13 de setembro de 2014

Arrumar o passado

“Pois tudo era memória, acontecia
     há muitos anos, e quem se lembrava
  era também memória que passava,
              um rosto que entre outros rostos se perdia"
                                               Manuel António Pina
                                                             
                                        “A memória aniquila o tempo: conduz à  unidade                                                                    aquilo que parece ter  acontecido em separado.”                                                                                     Leo Tolstoi
          
"Arrumar o passado não me parece ser  equivalente a invocá-lo. Estive em tantos lugares , ao longo da minha vida, que trazê-lo até mim é quase perder-me por lugares que já não conheço e que se transfiguram no olhar que lhes lanço. Ferreira Gullar , quando inquirido por que não escrevia as memórias, respondeu que lhe era impossível porque perdera a memória desse tempo. Entretanto, já tinha escrito as Memórias do tempo de exílio que justificava recordar  por ter sido uma época marcante da sua vida.
Todos nós, num processo de rememoração, recuperámos momentos que foram gravados para sempre e que retornam, por vezes,  activados por um ocasional estímulo. (As madalenas de Proust são o exemplo mais  notável.) Nítidos, surgem–nos na limpidez  do tempo vivido. Mas esse tempo não é o tempo real. Nunca se recupera o passado. Quando é invocado não transporta  o sujeito real que o viveu.  Esse sujeito passa a ser a memória do sujeito actual. Sujeito que converte em objecto de reconstrução um tempo que viveu e findou.
Recordo ter procurado um local onde passei algum tempo, na infância. Era uma quinta frondosa com uma casa apalaçada de grandes dimensões, no Norte do país. Por mais que a procurasse, não a localizava. Até que, juntamente com os meus pais , rumámos ao encontro da quinta de infância. Nem sequer houve desvios ou qualquer delonga na identificação. Os meus pais localizaram-na de imediato. A casa surgiu-me  muito mais pequena. Deteriorada pela erosão do tempo. Os antigos  muros altos de pedra, que protegiam dos olhares estranhos  eram, agora, grosseiros  e baixos permitindo abarcar  um campo corroído por ervas daninhas e por  vermes. Era um local que apenas existia na memória. Mudara a quinta? Talvez se tenha deteriorado. Não era, porém, essa mudança que a tornava diferente, desigual da imagem da memória. Era eu, sujeito, personagem, que se transformara.  Crescera, vivera  e o tempo invocado era um tempo visto por outro sujeito, agitado e guardado por outra personagem. Descrevê-lo com esse olhar era reinventar um lugar que nunca existira. A memória reproduz memórias que foram reais num tempo  que já não é o mesmo. Por isso, invocá-las é reconstruir um outro passado que foi diferentemente vivido.
Poder-se-á contrapor que, no tempo da infância, viveu uma criança que se fez adulto. Os olhos de uma criança registaram um mundo proporcional à sua dimensão que não corresponde àquele que como adulto reencontra. Mas se a Memória diz respeito ao tempo vivido e sentido  poder-se-á afirmar que é fidedigna ao registo que dela possui e transcreve. Porquê a necessidade de a confrontar no presente? Será que a validade e a  autenticidade desse registo se afirmarão? Ou será a fluidez das  palavras que dará ao registo a actualidade a que se reporta?
Arrumar o passado não corresponde a qualquer invocação que dele se faça. Arrumar o passado é talvez saber quem fomos e onde chegámos. Arrumar o passado talvez seja reconhecer  que o presente terá findado, quando tiver acontecido. Arrumar o passado é aceitar  que  a memória, que dele fica, será sempre parte integrante de uma vivência que foi nossa e que, talvez possa ser invocada."
Maria José Vieira de Sousa, in " O livro que já escrevi".

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