sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Os Livros

Maria Teresa Horta
Leitora

Confesso o vício de ler
afago
cada palavra
Bebo o feitiço das histórias
cada rosa cada asa
por onde a busca se enlaça
Revolvo-me na ruptura
ou na ternura descalça
onde a caneta sutura
Tomo o corpo da leitura
enredo-me no seu abraço
ora vestida ora nua
Ao longo deste prazer
não há nada que eu não faça
em entrega e em devassa
Indo mais longe no ler
encontro o cisne e a rola
na tocaia do prazer
Tenho a paixão da leitura
teima na escrita do perigo
e estremeço de prazer ao entreabrir um livro
Corro as mãos nas suas espáduas
desnudo frases de feltro
afloro as suas pálpebras
Entrelaço as consoantes
com as vogais e o enredo
diante das fantasias no sobressalto do medo
Descubro escusas passagens
pelas cisternas dos livros
ao desfolhar suas páginas
Na entrega e no sustido
nas lágrimas e no sorriso
entre o ardil e o tigre
Ora cumprindo
a harmonia
ora querendo a transgressão
Sou uma leitora voraz
tenho um trato com a audácia
e outro com o perdimento
Entre a leitura e a escrita
existe um espaço sedento
rebeldia e firmamento
Digo tempo e confissão
das cartas das bibliotecas
das literaturas secretas
Corro nas linhas dos livros
tropeçando
de avidez

Na cama quero as palavras
Enoveladas errantes
com elas sou viajante
No rumo da minha
vida
estão os livros e as estantes
Gosto de beber o cheiro
do interior da leitura
temperado com canela e as coisas obscuras
Deleito-me com a poesia
endoideço com o romance
esquivamento das mulheres
com a sua escrita de leite
de linho e alquimia
de aço rumorejante
Encontro a rima cismada
dobo a palavra a vapor
na teima de quem porfia
Vou em busca do fulgor
corro atrás da literatura
dos textos e da leitura
Sou dependente dos livros
sem eles posso morrer
perco-me de tão perdida se proibida de ler
Maria Teresa Horta, in "Pessoa: Revista de Ideias", Nº 4 (Setembro de 2011)



Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.
Pedro Mexia, in "Duplo Império"


Os Livros

Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais,
tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
Eugénio de Andrade, in “ Ofício de Paciência”, Hiperión

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