segunda-feira, 14 de julho de 2014

O Perfeito Diplomata e a “Realpolitik”

Charles Maurice de Talleyrand-Périgord
(1754-1838)
O Perfeito Diplomata e a “Realpolitik”
Por Eugénio Lisboa
                                                                             A palavra foi dada ao homem para
                                                                              disfarçar o seu pensamento.
                                                                                               Talleyrand
"Tem-se, de longa data, tentado definir as qualidades e qualificações essenciais a um “perfeito diplomata” ou, sendo menos exigente, a um diplomata tão perfeito quanto possível. Ottavio Maggi, por exemplo, publicou, em 1596, uma tese intitulada De Legato, na qual defende que um enviado diplomático – ou, para o caso, um ministro dos negócios estrangeiros -  deveria ter formação teológica, conhecimento dos filósofos gregos e ser especialista nas ciências matemáticas, incluindo-se, nestas, a astronomia e a física; deveria, ainda, ser competente em direito, música e poesia e ser especialmente conhecedor de ciência militar; sem esquecer proficiência em grego, latim, francês, alemão, espanhol e turco; deveria, além disso, ser aristocrata, de nascimento, ser rico e bem parecido.
Ora bem, eu não vou ao ponto de pensar que o nosso emérito Ministro dos Negócios Estrangeiros ou os nossos diplomatas de carreira acreditados por esse mundo fora tenham que satisfazer este exigentíssimo e bizantino caderno de encargos: teologia, astronomia, física, grego, turco – os deuses nos protejam: não, de modo nenhum!
Aristocrata, bem parecido – re-Não! Os aristocratas deixaram de existir, no nosso país, desde o dia 18 de Outubro de 1910: temos, pois, queiramo-lo ou não, que viver sem eles, mesmo no aparatoso Palácio das Necessidades, ali ao Largo do Rilvas! E não é bem parecido quem quer, mesmo indivíduos com uma indiscutível e irresistível vocação para a arte de Richelieu ou de Talleyrand! O saber de Maquiavel não foi inventado para ser manipulado exclusivamente por borrachos! Valham-nos os deuses todos do Olimpo!
Eu aceito, perfeitamente, que o Dr. Rui Machete não saiba turco, não toque piano nem flauta, não seja conde e não componha, nas suas horas de lazer, um soneto bem boleado ou uma ode impetuosa. Até aceito que não seja um pêssego! Não será isso que fará dele um ministro menos astuto, menos eficaz, menos competente! E também acho que o desconhecimento do segundo princípio da Termodinâmica ou das Leis de Kepler não vai afectar, de maior, a inteligência matreira com que defenda, em prélios diplomáticos aquecidos, os interesses da lusa pátria! Não, não exijo nada disso! Vou mais longe, na minha descontracção curricular: não vejo grande necessidade de o Dr. Rui Machete se pôr a queimar as pestanas, em leituras tardiamente nocturnas, de calhamaços de teologia ou em aprofundamentos desnecessários de remotas filosofias gregas. Nem sequer me parece justo exigir ao actual detentor da pasta dos Estrangeiros a leitura empolgante dos relatos que Júlio César fez das suas campanhas na Gália ou o manuseamento de pedregulhos de estratégia militar, daqueles que saboreadamente devorava o inesquecível general Patton! Quanto a mim, o Dr. Rui Machete pode perfeitamente dispensar estes exercícios fatigantes e destruidores de energia anímica, cunhando uma frase de um político célebre.
Ao que o Dr. Rui Machete já não pode ou não deve furtar-se é ao estudo de uns quantos clássicos da diplomacia “real politik”, sempre de útil maneio, em situações de entaladela difícil de gerir: Maquiavel, Richelieu, Talleyrand, Bismarch, Kissinger (Adolfo Hitler, se quiser, mas às escondidas, tendo o cuidado de não o citar!)
Muitos pensam que a “realpolitik” foi inventada por Bismark, o Chanceler de Ferro, que existiu e actuou muitas décadas antes da Dama de Ferro britânica. Mas não foi assim: o termo “realpolitik” foi cunhado pelo escritor e político alemão Ludwig von Rochau, em 1853, no seu livro de título deliciosamente comprido, à alemã: Grandsätze der Realpolitik angewendet nauf die strtlichen Zustände Deutschlands. Digo bem: o termo. Porque o conceito, em si, vem de longe e nem sequer começou com Talleyrand ou Richelieu. Eu diria que toda a diplomacia, com maior ou menor grau de subtileza, vive, alimenta-se de – é realpolitik. O termo, tal como foi inventado na Alemanha, até não quis ter um teor negativo por aí além: opõe “realismo”  (pragmatismo) a “idealismo”. Na “realpolitik”, engolem-se sapos (às vezes, elefantes), para se levar a nossa água ao nosso moinho. A ideia é fazer a outra parte engolir um sapo (ou um elefante) ainda maior. No exercício da “realpolitik”, mandam-se pela borda fora os princípios e a ética (manda-se, tenhamos fair-play, o mínimo possível deles, mas manda-se o que for necessário, para que os objectivos visados sejam atingidos). Os grandes mestres da “realpolitik”, como Richelieu ou Talleyrand disseram coisas afrontosas, porque isso fazia parte do seu “equipamento”. Talleyrand, por exemplo, não se acanhava muito para proferir coisas como esta: “No zelo, entram sempre três quartas partes de estupidez.” Isto não anda muito longe de outro aforismo dele: “Sobretudo, nada de zelo em excesso” (máxima muito útil quando se trabalha nos serviços públicos portugueses, onde o zelo é mal visto). Outro aforismo, também de Talleyrand, não menos “fresco”: “Uma mulher perdoará a um homem tentar seduzi-la, mas não ao homem que perde essa oportunidade, quando lhe é oferecida.” Ou ainda este aforismo célebre, que pus em epígrafe desta crónica: “A palavra foi dada ao homem para disfarçar o seu pensamento.”
Com tudo isto, quis apenas significar que não foi o exercício da “realpolitik” feito pelo Dr. Rui Machete, ao dar o seu assentimento à entrada da Guiné Equatorial no seio da CPLP – não foi esse exercício de “realpolitik”, em si, como exercício, que me surpreendeu ou perturbou. Como já insinuei, ou, mesmo, disse, a “realpolitik” é o próprio miolo da diplomacia. Muito embora esta também às vezes exija, como recomendou o conhecido diplomata e escritor Harold Nicholson, quatro qualidades, nem sempre dispensáveis: veracidade, precisão, calma e despretensiosidade. Mas fiquemo-nos pela “realpolitik”: não se trata de o Dr. Machete ter ou não ter usado deste instrumento diplomático. Trata-se, isso sim, da dimensão do elefante engolido! O Dr. Rui Machete e os seus antecessores, até há pouco tempo, exigiam determinadas condições, para que se permitisse o acesso daquele “reino das trevas” – a Guiné Equatorial -  ao seio da CPLP: em resumo, teria que adoptar a língua portuguesa como uma das línguas oficiais em curso, abolir a pena de morte e não violar de modo demasiado flagrante os mais elementares direitos humanos. Só, apresentando provas de estar a dar cumprimento a este caderno de encargos, se poderia começar a considerar a entrada do país de Obianga – “the heart of darkness” – na comunidade dos países de língua portuguesa. Ora o Sr. Obianga não deu cumprimento a nada disto: prometeu fazê-lo. E nem sequer acabou com a pena de morte: suspendeu-a, para poder voltar a ela, quando lhe convier. E o Dr. Rui Machete, com grande panache, afirma não ter razão para duvidar da palavra dada por Obianga, como se aquele senhor fosse um “honourable gentleman”. Mas, precisamente, isso é que ele não é: todo o seu sinistro curriculum de opressão, atropelo, genocídio e apropriação indevida das riquezas do país, nos convidam a ficarmos de sério sobreaviso contra a palavra dele. Dali, só factos, não palavras. Eis o que um verdadeiro mestre da “realpolitik” deveria ter feito: não vender princípios valiosos por um prato de lentilhas (um pífio cheque para o BANIF? Mas que interesse tem o BANIF para o povo português?)
E já que estamos no reino da “realpolitik”, sempre gostaria de deixar aqui, para benefício do actual detentor dos negócios estrangeiros, um aforismo de ouro de mestre Talleyrand. Reza assim: “ Sim e não são as palavras mais fáceis de serem pronunciadas e também as que exigem maior reflexão.” Talvez o Dr. Rui Machete devesse ter reflectido um pouco mais, antes de ter dito “sim” ao Imperador Jones* da Guiné Equatorial. Ter-nos-ia dado a todos menos vergonha de sermos portugueses.
*Emperor Jones é o título de uma das mais famosas e impressionantes peças de teatro do grande dramaturgo americano, Eugene O’Neill. Recomendo vivamente a sua leitura ao Dr. Rui Machete.” Eugénio Lisboa em Ensaio publicado no Jornal de Letras ( JL), Março de 2014

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