terça-feira, 24 de junho de 2014

Uma Outra História de Regressos

Cátedra Eduardo Lourenço, Universidade de Bolonha , 5 Dezembro 2007
Uma Outra História de Regressos: Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa
Por Margarida Calafate Ribeiro

                                                               Para Eduardo Lourenço
                                                               Para Helder Macedo
                             Para mim Portugal acabou.1
                            Acabou-se Moçambique. 2
                                 Angola deixou de existir. 3      
                                                A Guiné apagou-se.Varreu-se do mapa.4 

"Sou da primeira geração de portugueses da segunda metade do século XX que cresceu em liberdade. A geração que fez o exame da antiga 4a classe entoando "Uma gaivota voava, voava", clamando a sua infantil liberdade e respeitando o tom revolucionário que então se respirava, sem mais Américo Tomás ou Marcelo Caetano nas paredes da sala de aula. Cresci e passei a minha adolescência a ouvir o som do rock português clamando que queria ver Portugal na então CEE. Europa, “sonho futuro” anunciado desde 46, por Adolfo Casais Monteiro, era agora o sonho futuro dos jovens dos anos 80, filhos daquela geração que lutou ao longo dos anos 50 e 60 contra a ditadura, a falta de liberdade, a mesmidão do país onde nada acontecia, como dizia Alexandre O’ Neill; a mesma geração que teve o azar histórico de participar na grande tragédia da nossa contemporaneidade que foi a Guerra Colonial em África. Enfim filhos de uma geração de portugueses que nunca regressou, atormentada pelos fantasmas da guerra, eternamente se questionando sobre o que fazer a “este preto que cairá para sempre, a cada segundo, de umbigo roto, no interior de mim…”5, como se evoca tragicamente na obra de António Lobo Antunes, uma das primeiras vozes literárias dessa geração educada na Mocidade Portuguesa, destruída nos “cus de Judas” africanos, que teve os filhos pela Rádio, sujou as mãos e a alma no naufrágio final do império e que, regressava para filhos que não os conheciam, para mulheres que já não os entendiam, para um país que tinha vivido sem eles e que ainda hoje os estranha, assim insistindo para que a memória da guerra só a eles pertença.
Assisti e tenho memória dos regressos desses pais que só se conheciam na fotografia e que de repente estavam em nossa casa, dormiam com a nossa mãe, falavam vagamente connosco e hesitavam em exprimir o seu carinho. Depois do 25 de Abril houve também o regresso de muita gente que eu não sabia que também tinha partido: emigrantes chegados de países europeus, exilados regressando do estrangeiro e retornados desembarcados de África. Portugal era para todos estes “regressados” um país imaginado: idílica paz para os soldados cansados da guerra ou início da “guerra seguinte”; realização de sonhos políticos para os exilados, porto seguro para exorcização de todas as humilhações passadas nas terras de emigração; metrópole imaginada e lugar de retorno obrigatório para os retornados; país de emigração para os “retornados” que nunca tinham partido. Na escola os colegas vinham de todos os sítios: de França ou da Alemanha, tinham nascido em África, porque os pais tinham estado lá na guerra ou viviam em África e de lá tinham vindo, o que os fazia vibrar com a independência de Angola ou de Moçambique e, contra a vontade dos pais, traziam a bandeira dessa terra que confusamente diziam também ser a deles, recusando assim o Portugal atrasado que nós para eles representávamos, mas comungando connosco da vida à solta que então se vivia. Na escola e em casa a revolução estava em marcha: os nossos pais adormeciam capitalistas e acordavam nacionalizados, viviam em intermináveis reuniões e à noite ainda íamos com eles a constantes sessões de esclarecimento, de onde toda a gente voltava a discutir imenso quebrando-se assim, no nosso entendimento, o propósito da ida; na escola, à semelhança dos adultos, organizávamos também a nossa revolução, com as Assembleias Gerias de escola, as nossas sessões de esclarecimento e as nossas campanhas pelo A ou pelo B, com vista à eleição dos nossos representantes. Recordo desses tempos o ambiente de debate que dominava a sala de aula, os nossos malogrados cultivos agrícolas no que tinha sido o jardim da escola, os Estudos Sociais em vez da História, Fernão Mendes Pinto em vez de Camões, os trabalhos sobre Karl Marx ou Engels, a ânsia dos professores em nos darem tudo aquilo a que não tinham tido acesso,em nos educar como cidadãos responsáveis e democratas, capazes de, como os nossos pais, apaixonadamente discutir tudo. Como mais tarde me esclareceu Eduardo Lourenço, em “O Labirinto da Saudade”, nessa época Portugal estava em discussão 6. Eu, tinha sido testemunha." Margarida Calafate Ribeiro
1 Augusto Abelaira, Sem Tecto entre Ruínas, Lisboa: Sá da Costa, 1982.
2 Lobo Antunes, António, Fado Alexandrino, Lisboa: Dom Quixote, 1989.
3 Rocha de Sousa, Angola – Crónica de uma Deriva, Lisboa: Contexto, 1999.
4 Álamo Oliveira, Até Hoje, Memória de Cão, Lisboa: Ulmeiro, 1986.
5 Lobo Antunes, António, Fado Alexandrino, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 40.
6 Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Lisboa: Dom Quixote, 1982, p. 6
Margarida Calafate Ribeiro é investigadora no Centro de Estudos Sociais e docente nos programas de doutoramento do Centro de Estudos Sociais/ Faculdade de Economia, “Pós-Colonialismos e Cidadania Global” e “Democracia no Século XXI”. Responsável pela cátedra Eduardo Lourenço, do Instituto Camões e da Universidade de Bolonha.
Os seus actuais interesses de investigação incluem estudos pós-coloniais, literatura portuguesa e de países de língua portuguesa, história do império português, em particular o império africano e as guerras coloniais; mulheres e guerra. Actualmente, coordena os projectos de investigação “Poesia da Guerra Colonial: ontologia do ‘eu’ estilhaçado” e “Os Filhos da Guerra Colonial: pós-memória e representações”, financiados pela FCT.
Das suas publicações, destacam-se os livros África no Feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial (Afrontamento, 2007); Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo (Afrontamento, 2004); Atlantico Periferico. Il Postcolonialismo portoghese e il sistema mondiale, (org. com Roberto Vecchi e Vincenzo Russo) (Reggia Emilia, Diabasis, 2008); Lendo Angola (org. com Laura Cavalcante Padilha) (Afrontamento, 2008); Moçambique: das palavras escritas (org. com Maria Paula Meneses) (Afrontamento, 2008); Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Contemporâneo (org. com Ana Paula Ferreira) (Campo das Letras, 2003).

Sem comentários:

Enviar um comentário