terça-feira, 17 de junho de 2014

As Memórias de Eugénio Lisboa


Eugénio Lisboa, um dos mais activos e notáveis escritores portugueses, propôs-se escrever as suas Memórias . Estão já publicados dois volumes respeitantes aos anos em que viveu em África. Tendo, como plano editorial, a produção de cinco volumes para cobrir uma longa vida de intensa e diversa  actividade  e de uma excepcional produção literária, está a escrever um novo tomo que sairá este ano. 
É com extraordinário prazer que transcrevemos um diferente excerto do  terceiro tomo  que engloba os anos que vão de 1955 a 1976.

 Lourenço Marques:  um meio intelectual vivo

"Lourenço Marques estava longe de ser, naquela altura, como já sugeri, um meio intelectual morto. As livrarias estavam sempre apetrechadas e, além disso, tínhamos, como já disse, o recurso às boas livrarias de Johannesburg, para livros ingleses e americanos, mas, também, espanhóis e franceses. Por outro lado, por intermédio da " Livraria Portugal", em Lisboa, encomendava à cobrança, literatura francesa ( Montherlant, Martin du Gard, Valéry, etc.), inglesa e espanhola. Havia ainda o Consulado francês, que também ajudava. Tudo isto alimentava o nosso convívio, os nossos prélios e, até, a nossa zaragata pública. Não nos sentíamos, de modo nenhum, desterrados. Em casa do Adrião, em casa do Knopfli, em minha casa, as ideias voavam, cruzavam-se, tornavam-se vida.
Muito disto ( ou alguma coisa disto) se reflectia nas revistas e jornais onde colaborávamos, o que não contribuía pouco para que fôssemos considerados, sem mais nuances, como " perigosos comunistas" ( que nem eu nem o Knopfli nem o Adrião éramos). Éramos " de esquerda", sim, éramos frontalmente contra o Estado Novo  - que considerávamos, além do mais , intelectualmente pelintra e possidónio - mas jamais fomos aliciados pelas sereias  do marxismo-leninismo, a que éramos figadalmente avessos. Mas, na pífia paróquia que era o Estado Novo e os seus representantes em Moçambique, qualquer interesse pela política, que não passasse pela União Nacional, era suspeito...O mais que toleravam era que se dissesse: " A mim, a política não interessa." O modo como os do Estado Novo viam a política " que está bem", aquela " que não faz mal seguir ", fazia-me lembrar o aforismo de Valéry: " A política é a arte  de impedir as pessoas de se porem alerta para aquilo que lhes diz respeito". A verdade é que nem eu nem o Knopfli nem o Adrião fomos nunca aquilo que são realmente  os animais  políticos, no sentido profundo do termo. Mas era impossível não nos sentirmos envolvidos cercados - amordaçados , manietados - por aquele regime pelintra, medíocre e nefasto. Não era possível ficar quieto, à espera de que outros fizessem o trabalho todo que havia a fazer. Claro que a política nos interessava,  nos dizia respeito, embora não fosse ela o nosso " canto profundo". Porque, parafraseando  De Gaulle, a política é uma coisa demasiado séria para ser deixada exclusivamente aos políticos. E que políticos nós tínhamos, do outro lado da barreira!
O que mais revoltava no Estado Novo era a total incapacidade de os seus próceres aceitarem a inteireza e o patriotismo dos que se lhe opunham. Eles eram os únicos detentores da " verdade" e os que dela divergiam eram automaticamente perversos e mal-intencionados. Na questão quente das colónias, a divergência chamava-se " traição". Poder-se-lhes-ia recordar as palavras de Adlai Stevenson, esse grande político e democrata americano : " Do not regard the critics as questionable patriots. What were Washington and Jefferson and Adams but profound critics of the colonial status quo? "
O mais doloroso disto tudo era que, para pessoas como eu , o Rui e o Adrião , tornava-se agónico reconhecer - mas reconhecíamo-lo - que a independência de Moçambique era inevitável. Não que a não considerássemos, também, eticamente boa, mas  não tínhamos dúvidas que, quando viesse, a nossa vida iria mudar dramaticamente. O nosso mundo iria desabar, para que outros tivessem direito ao que até aí lhes fora negado. Reconhecíamos o direito à mudança e lutávamos por ela, embora sabendo que de algum modo, iríamos sofrer. Entenda quem puder.
De qualquer modo, o patriotismo estreito e mal compreendido é perigoso e mesmo letal. O Estado Novo advogou sempre uma espécie  de " patriotismo" caseiro e patego, que grandes espíritos têm denunciado como nefasto. H.G. Wells, o criador do " homem invisível " e da " guerra dos mundos", um dos escritores de cultura mais vasta e abrangente do século XX, observava: " A democracia ateniense  sofria muito da estreiteza do seu patriotismo, que é a ruína de todas as nações. " Portugal tem passado , ao longo da sua História, por períodos em que a mediocridade instalada no poder promove esta espécie de patriotismo envenenado e esterilizante.
(...)
No nº 145, de 6 de Setembro (1964), a VM trazia um editorial intitulado " O jornalismo que Tentamos Fazer", da qual, transcrevo algumas passagens ( para que fique registado, com clareza e claridade, quem éramos e ao que vínhamos:

A Voz de Moçambique procura ser, no panorama jornalístico da nossa terra, a voz dissonante, a presença incómoda, o acicate mordaz, a pedrada no charco; isto é, intenta desempenhar a  função salutar de despertador de energias em hibernação e de consciências cobertas de cinza, buscando para os seu leitores uma informação tão completa quanto possível das realidades mundiais do presente, que servem de background  a uma problemática moçambicana em suas diversas implicações  , a qual nos preocupa, como é lógico , em primeiro lugar, e nos ocupa, como é evidente, acima de tudo.
Nesta missão - que todos adivinham difícil e nós dolorosamente sabemos espinhosa - temo-nos mantido com possíveis e humaníssimas quebras, acima de interesses particularistas ou de grupo e de conveniências pessoais, que às vezes escandalosamente desrespeitamos. E isso acontece não só em artigos de tese, mas até em noticiário que excepcionalmente damos, pisando terrenos que a chamada grande imprensa tem de considerar tabu por motivos conhecidos. Às consequências que ganhamos de tais atitudes, deveríamos normalmente chamar dissabores, se não acontecesse que, por benefício de uma fé que alimentamos e duma idiossincrasia que criámos cá em casa, as vamos recebendo como  condecorações.

Acrescento , apenas, a conclusão, que levava alguns recados a certos tiranetes de serviço, dotados de amplos teores de prosápia e arrogância:

Ora isto veio tudo a propósito de falarmos no jornalismo que tentamos fazer, com os limitados meios de que dispomos mas com uma seriedade de processos em que pomos muito empenho e ( de que) temos grande orgulho; esse jornalismo coloca  A Voz de Moçambique  em plano invulgarmente elevado no conjunto das manifestações culturais moçambicanas e se não dá a cada um dos seus colaboradores o direito de se considerar um cidadão de casta ou classe superior, impõe-lhe o dever de não se deixar tratar nesta sua actvidade, como  servo atento , venerador e obrigado de qualquer peralta com  penachos na alma.

A VM dedicava, de facto , um largo espaço a problemas específicos de Moçambique, cobrindo todos os sectores (agro-pecuária, saúde, educação, energia, transportes, etc.) , que eu não tenho particularmente assinalado, na redacção deste volume das minhas memórias, por não serem algumas delas, áreas em que tenha estado directamente envolvido. Mas gostaria de assinalar, como exemplo, o nº 140 de 1 de Agosto, que trazia na capa, " O Dia da Mulher Africana" sendo o editorial também dedicado à mulher africana. Nesta, sublinhava-se, com vigor, " que a luta universal pela desalienação e dignificação da Mulher, que ainda , em nenhuma continente, cessou de se justificar , assume , em África, aspectos particularmente dramáticos e complexos."
Eugénio Lisboa, in "Acta est Fabula, Memórias - III - Lourenço Marques Revisited , (1955-1976)" pags. 293 , 294, 309, 310, Editora Opera Omnia, 2013

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