sexta-feira, 27 de junho de 2014

A saudade guardou a memória

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"Quando voltou à Quinta nesse Natal não encontrou Antero. Os pais informaram-na de que partira em  busca de um futuro melhor. Com muita persistência foi tentando  descobrir para  onde teria ido ele, mas  foi esbarrando com uma concertada fronteira pejada de obstáculos intransponíveis. Os caseiros, pais de Antero, que sempre a receberam efusivamente tornaram-se discretamente evasivos , fugindo a qualquer diálogo que renitente ela tentava encetar.
A irmã logo que a avistava, desaparecia misteriosamente invalidando desse modo qualquer tentativa de aproximação.
E deixaram-na sofrer sem uma única explicação compreensível. Antero seria incapaz de a abandonar.  Ela e ele eram infrangíveis, indivisíveis e indestrutíveis. Era um princípio tácito, inalienável e comum aos dois: jamais força alguma os poderia apartar. E durante muito tempo foi esperando por Antero.
Assim, quando terminara os estudos e voltara definitivamente para a quinta, continuara a correr para o rio esperando que ele aparecesse. Aí, deitada nas ervas atapetadas  da margem, muitas vezes fechara os olhos, julgando ouvir os passos rápidos de Antero,  quando o vento fazia vibrar o restolho na mata, mas ele nunca aparecera.
E…então  a saudade guardou  para sempre a memória dum tempo feliz.
Tornou-se mulher e os deveres sociais foram progressivamente sendo introduzidos. As festas eram frequentes nas quintas vizinhas,  fomentando o convívio entre os mais jovens.
Graça Menezes , a sua companheira de colégio,  era a sua melhor amiga. Passavam muitas horas juntas, ora na quinta de uma, ora na quinta de outra. Foi assim que ficou a conhecer melhor o irmão, Mário Alberto, um economista  muito tímido e distraído, sempre agarrado aos Tratados de Economia.
Exercia já um cargo de direcção numa Companhia de Navegação. Gostava também de poesia. Transfigurava-se quando recitava poemas. E foi pela poesia que ela se deixou conquistar, acedendo ao pedido de casamento que encheu de regozijo as duas famílias.
Então foi tempo de arranjar casa na cidade, pois era lá que   Mário Alberto trabalhava.
No dia do seu casamento, a Quinta encheu-se de convidados vindos de diversos lugares. As duas famílias tinham muitos parentes e amigos espalhados  pelo país.
Os irmãos tinham crescido e como já estavam internados nos colégios, o casamento realizou-se nas férias grandes. A temperatura amena desse verão permitiu  engalanar com mesas e cadeiras os recantos magníficos do jardim, fazendo com que as portas da mansão não se fechassem.
Mário Alberto era um homem alto e de forte constituição. Tinha uma abundante cabeleira loira geralmente  desalinhada, mas nesse dia apareceu em total e perfeito alinho.  Os olhos azuis ajustavam um olhar determinado que, apesar da sua latente timidez, teimava  em fixar com insistência quem o encarasse. Esperando-a junto ao altar, Mário Alberto fixou-a demoradamente e não mais deixou de a contemplar.
Quando partiram para a cidade teve a nítida certeza que encerrava uma parte importante da sua vida. Os pais, os irmãos, os empregados despediam-se acenando. E lá foi sem a mais  acenar  porque havia  muito tempo que  se despedira da Quinta.
Mário Alberto foi uma surpresa. Nos dias que se seguiram ao casamento recebeu em casa uma série de individualidades com quem ele privava por força  do cargo que exercia na Companhia.
A lua-de-mel estendeu-se de recepção em recepção sendo quase uma apresentação das obrigações sociais a que fora vinculada pelo casamento. E a força peculiar da vida urbana envolveu-a definitivamente. 
Quando nasceu o primeiro filho já tinha preenchido o horário social. Jogava bridge nas tardes de  segunda-feira no Clube Inglês com um grupo de senhoras conhecidas, sendo algumas mulheres de colegas do marido, outras até antigas companheiras de colégio e, em semanas alternadas, conjugava com a canasta nas casas de cada uma, incluindo a dela.
Os chás literários eram a actividade social que mais a atraiu. Aliás tinha sido ela a promotora e a autora do projecto. Cansada de tanta futilidade, concluíra que não poderia entregar-se exclusivamente a obrigações sociais cujo pesado vazio  a ia consumindo. Contudo, o marido considerava essas preocupações como remanescente de um preconceito intelectual mais acentuado devido à vida quase “monástica”  que levara no campo. Na cidade, o ritmo da modernidade exigia outra postura social. Ela deveria integrar-se no grupo social a que pertenciam e libertar-se do atavismo que ainda lhe tolhia os movimentos, pois o lugar que tinha na Companhia exigia-lhe responsabilidades adicionais, já que chegaria a Presidente da Administração num futuro bastante próximo.
Assim, na senda das aspirações do marido, resolveu lançar os chás literários que acumulavam o carácter social com o interesse relevante que a literatura sempre lhe despertara. Tinham uma periodicidade quinzenal e eram regularmente realizados com intervenções de grande qualidade.
Passou a ter uma acuidade especial com todos os novos escritores tendo alguns apresentado as primeiras obras nesses chás. Era dinâmica e entregava-se com paixão, superando sempre uma sessão pela outra que  se lhe seguia. 
Com o tempo a fama dessas sessões  espalhou-se pela cidade passando a ter um lugar cativo no horizonte cultural, sendo o local de preferência para divulgação, reflexão e promoção literárias:  romances, livros de  poesia , ensaios, revistas literárias e até outras publicações no âmbito da investigação foram objecto de muitas e variadas sessões. O público foi-se alargando e passou a concentrar muitos dos intelectuais  que ao tempo  se afirmavam. Mário Alberto era um óptimo divulgador dessa actividade nos círculos da alta finança, pelo que a diversidade de opiniões  contribuíra inequivocamente  para o sucesso desta iniciativa.
Mário Alberto também aproveitava frequentemente este espaço para  declamar alguns dos poemas que ia compondo.
E a dimensão dessa iniciativa foi tão grande que se viu obrigada a constituir uma Comissão Directiva à qual presidia, já que sozinha era incapaz de responder ao afluxo constante da procura.
À medida que os filhos iam nascendo, o tempo ia sendo precioso e o espaço da casa era ocupado pelos ruídos que as brincadeiras das crianças produziam.
Então, houve necessidade de transferir para outro local a realização  daquele evento. E foi assim que nasceu o  primeiro Clube Literário, num rés –de- chão de um edifício apalaçado, no centro da cidade.
A organização do Clube foi a sua obra prima. Canalizou todas as suas energias na edificação desse projecto que antevira desde o tempo em que descobrira o prazer da leitura.
Apelando ao mecenato obteve um número infindo de livros criteriosamente seleccionados por ela e coadjuvada por alguns dos intelectuais que frequentavam os chás, montando ,numa das salas do andar, uma valiosa biblioteca que viria a ser das mais completas  da cidade. O espólio foi sendo continuadamente aumentado e actualizado  com a oferta de novas obras que eram, muitas vezes, lançadas e apresentadas no Clube.
Nas restantes salas que compunham o andar, implantou uma galeria de arte, abrindo desse modo as portas do  Clube às Belas Artes, a fim de serem realizadas exposições de artistas consagrados ou preferencialmente de novos  talentos. Fora lá colocado  um grande piano de cauda que, por vezes, transformava  a galeria numa sala de extraordinários saraus, atribuindo-se também à  Música um espaço nobre. A última sala era efectivamente a sala de chá que primava por um discreto esplendor refreado  numa decoração que, embora elegante, privilegiava o conforto necessário  e adequado aos  longos períodos  com que decorriam os encontros  literários.
O Clube Literário passou a ser uma referência que agregou um soberbo número de sócios notáveis nos diversos domínios do conhecimento e que apoiou através da utilização da biblioteca a aprendizagem de  muitos alunos liceais e universitários.
Mário Alberto viria mais tarde a ser agraciado com  uma comenda pela contribuição cultural que o Clube prestava à cidade. Nesse tempo, a mulher era ainda discriminada. Ao homem bastava  ser homem  para ser o natural  responsável pelos êxitos.
Continuou durante muito tempo a pertencer à Comissão Directiva do Clube , mas com o nascimento e o crescimento dos filhos foi obrigada a reduzir a  sua intensa participação até para contrariar a pretensão de Mário Alberto de internar os filhos em  colégios de renome para adquirirem uma sólida educação.
A maternidade revelava-lhe a sua essência primeira. Considerou que deveria prioritariamente criar um ambiente saudável para o desenvolvimento harmonioso dos filhos que iam aumentando anualmente. O marido embora fosse um pai responsável e, apesar da agitada vida profissional, fosse também um pai bastante presente era, contudo, muito parco nas manifestações de carinho, pelo  que lhe coube sempre a ela a materialização dos afectos e a prodigalização da ternura. Fê-lo abundantemente, rodeando os filhos de carinho permanente.
Mário Alberto tinha um carácter bastante temperamental, apresentando uma instabilidade emocional que se traduzia frequentemente em mudanças repentinas de humor que se foram agudizando com a idade. Aos filhos foi com muita perícia e constante atenção ocultando esses momentos, valendo-se da privacidade estratégica que o gabinete de trabalho e os aposentos do casal  detinham, ambos situados num dos extremos da casa. Apesar dessa faceta, o marido amava-a profundamente,  respeitando-a , quer como esposa, quer como mulher detentora de superior cultura, como dizia ele com ênfase e  solenidade.
Quando o seu pai  faleceu já todos os irmãos estavam casados e era um deles que superintendia a gestão da Quinta. A mãe  muito abatida pela inesperada tragédia, o pai sempre fora muito saudável e nada indiciava uma morte repentina, decidira  abandonar a Quinta e vir  viver com ela, na cidade.
A presença constante  da Avó veio permitir aos seus filhos o desenvolvimento salutar dos laços de cumplicidade familiar resultantes do apoio seguro e carinhoso que a Avó lhes prestava.
Para ela  a presença da mãe foi a pedra angular que cimentou e fortaleceu  a sua relação com a cidade. A mãe  fora sempre uma forte presença na sua vida.
A exploração da cidade na companhia da mãe revelou-se um prazer inacabado que quotidianamente ia sendo alargado. Descobriu o rio de águas imensas, cruzado por barcos e por paquetes cheios de gentes diversas, ávidas da luminosidade única do Sul. Extasiou-se com as traineiras junto ao cais do mercado que emprestavam à paisagem um soberbo colorido matizado tornando-a o alvo eleito de contínuos disparos das máquinas fotográficas.
E nos bancos dos jardins fronteiros ao rio expurgou e redimiu os hiatos que a afastaram de fruir a paz que só um rio lhe podia  oferecer.
Os passeios com os filhos à beira-rio passaram a ser realizados com a ajuda da mãe e muitas vezes com a presença do pai que, invariavelmente, acabava por teorizar sobre a importância do rio no desenvolvimento da cidade. Os filhos recebiam uma lição de História  que  remetia para a  posição estratégica da cidade face ao mundo. O passado era uma manta retalhada de marcas de sucessivas invasões feitas pelo rio, mas também o cais de partida para a descoberta do mundo que convertera a cidade num grande entreposto comercial na  era que seguiu os descobrimentos.  Quando havia  navios da  Companhia de Navegação atracados, Mário Alberto   levava  a família a bordo e, então, era um feliz  desassossego com os filhos que desejavam  apreender a  engrenagem que suportava  esse grande habitáculo. O Comandante fazia as honras e o Imediato levava os rapazes que eram sempre  os mais curiosos, à ponte de comando e à  sala das máquinas.
As raparigas ficavam a visitar os imensos salões e os espaços exteriores onde eram repetidamente seduzidas pela brilhante piscina azul  rodeada por enormes cadeiras extensíveis onde se estendiam logo que lhes era dada permissão.
O jardim zoológico e o jardim botânico foram muitos dos destinos que ajudaram a completar a educação dos filhos pela observação directa da natureza, recriando a atmosfera natural que a  Quinta lhe proporcionara.
A educação dos filhos foi durante o tempo do seu crescimento a ocupação maior  da sua vida. A mãe foi uma ajuda incomensurável que deu força a todos os seus esforços . Quando morreu já Marito era um rapazinho.
Marito, o filho que viera tarde  e  a relançara no tempo que julgara para sempre perdido, o tempo da fecundação, o tempo da redenção celebrada com Mário Alberto que, avaramente, a tinha enredado num platonismo contemplativo redundante e desenfreado. Os carinhos não ultrapassavam o plano da verbalização poética, deixando-a exangue  e impoluta perante  o natural e persistente  desejo sexual que a acometia e ele parecia ignorar. Naquela época, ainda não sabia das disfunções mentais que determinavam as sistemáticas alterações comportamentais do marido.
Entretanto, a Mãe, que vivera com eles até ao fim da vida, regozijava-se com a ternura e gentileza verbais  com que Mário sempre a tratava e que fazia daquele  lar uma estruturada referência de vida para os netos.
Ela sabia que jamais poderia partilhar os seus anseios e desalentos com a Mãe e tão só com outro alguém. Assim, o nascimento de Marito reposicionou-a novamente no lugar da mulher fecunda e fecundadora, matriz dorsal da sua identidade primária. E este filho foi mais amado do que todos os outros. Era o filho do tempo último, era o tempo do último filho." Maria José Vieira de Sousa, in " O Lugar, memórias de um romance"

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