sexta-feira, 2 de maio de 2014

Marcel Proust por José Régio

Marcel Proust
Por José Régio
" Sensibilidade infinitamente delicada e receptiva; inteligência talvez mais subtil que profunda; em todo o caso subtil e profunda; imaginação transfiguradora e vasta - Marcel Proust parte à la recherche du temps perdu. Do seu tempo perdido aproveita ele o dar-nos uma das obras mais originais do nosso tempo, e simultaneamente mais representativas dele, mais ligadas ao passado e mais prolongadas para o futuro. Longo, intrincado e laborioso folhetim psicológico, as suas  memórias participam do preciosismo, do romantismo, do realismo, assim como das novas teorias de Bergson, Einstein e Freud. A sua obra é em vários sentidos uma espécie de recapitulação. Recapitulação suspensa, de que ainda se não apreende o significado, a finalidade, a directriz moral, ideológica, estética... E talvez assim mesmo a devamos considerar: Toda a obra de arte original tem na sua mesma realização o seu significado e a sua finalidade. É claro que obedecendo mais ou menos a certas características íntimas e gerais, todas as manifestações artísticas, filosóficas e científicas duma época trazem a lume preconceitos e conclusões comuns. Assim na obra de Proust se revelam poderosa e sinuosamente os preconceitos e conclusões da nossa época. Já é um valor. Mas os homens que mais superiormente representam uma época são também os que mais  lhe sobrepairam e mais a ultrapassam. Porque representando essa época mais completamente, representam-na complexamente. E essa complexidade traz à sua obra condições de eternidade. Representando, pois, o seu tempo complexamente, a obra de Proust revela uma ausência de afirmativa, uma impotência de síntese categórica, uma repugnância pela obediência a uma única directriz moral, ideológica ou estética, muito dele e também muito do nosso tempo, não obstante as nossas várias afirmativas, as nossas várias sínteses, as nossas várias directrizes. Aproxime-se agora a obra de Proust da obra, isto é, da personalidade dum André Gide. Inquieto, instável, volúvel no sentido trágico da palavra, cruel e delicadamente ansioso, solicitado por tendências, ideias, afecções e aspirações divergentes ou opostas. André Gide ou a imagem que ele de si próprio nos dá – é um personagem de Proust, só mais idealizado que os personagens de Proust. Mas sendo um místico, André Gide  tem necessidade de afirmar. E sendo um pensador , tem precisão duma doutrina. Então, Gide canta a sua Ânsia porque também é poeta; prega a superioridade do Desejo sobre a Posse; e funde, engloba todas as suas nuances, diferenças, contradições e solicitações conflituosas na ideia da aceitação consciente e voluntária delas. Eis como recusando-se a qualquer escolha eliminatória, Gide passa , no entanto, a fazer uma afirmação que também é eliminatória, porque elimina a ideia de eliminar. É dum modo semelhante que Marcel Proust vence a sua incapacidade de afirmação, a sua impotência de síntese, a sua repugnância por uma directriz moral, filosófica ou estética – na criação dos seus personagens. Minando o conceito clássico do homem uno, integral, idêntico a si próprio – Marcel Proust dá-nos  dos seus personagens retratos que variam  de época para época, de meio para meio, de momento para momento. E dissociando a sua personalidade como dissocia  as emoções, sensações e  sentimentos  que lhes atribui, acaba por negar a existência  da personalidade, ao menos  no conceito clássico. Sabe-se como só pelo sonho e pela memória  ele presta aos seus heróis qualquer coisa como uma ilusão de continuidade. Eis as afirmativas que da sua incapacidade de afirmação e síntese arranca Proust. Para chegar a elas, desunificando, desarticulando, desintegralizando os seus personagens, Proust coloca-os  nos mais variados  meios, segue-os nas mais diversas fases da sua vida , espreita-os  e foca-os nosmais antagónicos  momentos da sua história. Assim nos faz assistir a quedas , subidas e recaídas ( dum indivíduo ou dum grupo) inesperadas para um leitor  pouco familiarizado. À medida que o leitor se for familiarizando, irá constatando que nos personagens de Marcel Proust nenhuma superioridade implica a não coexistência de várias inferioridades. Ou vice-versa. E que Marcel Proust insiste  mesmo nessa coexistência de tendências e atributos divergentes ou opostos. Daí a possibilidade de todos os percalços em que ao artista convenha apresentá-los. Porque a obra de Marcel Proust não é uma imitação da vida. É antes uma habilíssima substituição. À vida arranca ele a gesticulação, a exteriorização dos seus personagens. ( E ainda assim, alguns dos seus  múltiplos retratos participam da caricatura à força de flagrantes). Mas é no mundo da sua imaginação que Marcel Proust os faz viver, por mais que o seu talento de observador o mascare. A vida tal como se apresentaria a um realista é falseada, estilizada em Marcel Proust pela sua faculdade de invenção psicológica. Para os poder revelar sob todos os aspectos, e depois esmiuçar cada um de tais aspectos, o artista embrenha os seus personagens em sucessos que narra com a naturalidade afectada, excessiva e cómica dos mentirosos: sucessos ora vulgares, quotidianos, mínimos, ora próximos do maravilhoso e do inverosímil. Não obstante, porém, a grande arte de vivificação do autor, personagens e sucessos fazem pressentir a mágica, o romanesco, a fantasmagoria... É que tanto uns como outros não passam talvez de pretextos mais ou menos queridos, mais ou menos cuidados: Pretextos para o genial folhetim de aventuras psicológicas em que o autor continuamente aparece e desaparece. Eis a classificação que me parece mais pitoresca, mais sugestiva da obra de Marcel Proust: um folhetim de aventuras psicológicas. Folhetim escrito num estilo bizarro, desigual, às vezes quase sóbrio, às vezes tortuoso e difícil , quase sempre literário e precioso. Longas digressões entrecortam o folhetim , surgindo às vezes nos momentos mais inoportunos. São , por isso, mal  recebidos a princípio... Mas inútil resistir à lucidez, ao tacto, à mestria, à flexibilidade com que Marcel Proust aí nos faz revelações sobre os motivos de que é senhor. O amor - toda a espécie de amor - e a vaidade - toda a espécie de vaidade - dão à sua obra algumas das páginas mais seguras e mais vibráteis, mais profundas e mais subtis, mais poderosas e mais delicadas, de todo o romance francês. " José Régio, in " Presença" nº 5 ( 4 de Junho de 1927).

1 - Apresenta-se um documentário, em  língua francesa,  sobre a vida ,obra e morte de Marcel Proust.


2- O mesmo documentário, legendado em Português , mas  repartido  por  quatro registos.









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