quarta-feira, 23 de abril de 2014

Ler no dia Mundial do Livro

O livro
No dia internacional do livro, todos os amantes da leitura se deviam juntar. Tecer loas ao livro talvez fosse um dos mais vigorosos actos de o promover. 
Os livros têm caminhos que nos unem e nos fazem divergir. São, no entanto, o motor que impulsiona e alimenta ao longo de muitas vidas. Ler é um acto que se renova e se reproduz incessantemente. Quem o pratica sabe quão grande é a cumplicidade que se estabelece entre autor e leitor. Ler não é um acto solitário é antes um acto de grande intimidade. Um acto que se procura enquanto vivificador, em que , por vezes, a alquimia da escolha nos surpreende e transforma. Como Steiner afirmou " as nossas relações de intimidade com um livro são, portanto , efectivamente dialécticas e recíprocas: lemos o livro , mas mais profundamente talvez, é o livro que nos lê." 
Procurar um livro leva-nos a percorrer distâncias impensáveis noutras situações. Acabei de fazer vinte horas de  viagem, num voo intercontinental, para assistir ao lançamento de um livro. Livro que vi nascer e se materializou para que fosse objecto real  de prazer e de permanente reencontro.
Há autores que nos cativaram. Fazem parte da lista intocável e imperecível dos eleitos. Tenho vários que me acompanham quase desde o final da infância. Estou agora, numa idade em que a descoberta de novos valores é  menos arrojada e muito mais pensada e limitada. Reler e desenvolver a leitura dos eleitos transformou-se numa necessidade aprazível. Trata-se do tal " intercâmbio vital feito de confiança recíproca" a que alude Steiner.
Eugénio Lisboa pertence  a essa lista. Escritor insigne que, tal como outros escritores, cresceu com o sabor dos livros. A descoberta do mundo e o conhecimento do universo literário advieram de muita leitura. Tem também uma lista de eleitos onde se insere José Régio, o autor da obra que mais analisou, Henri de Montherlant e outros que  nomeia ao longo das suas inúmeras obras publicadas. A Eugénio Lisboa devo o prazer que me dá a sua escrita e a maravilhosa e singular abordagem de tantas obras que redimensionou  a leitura que delas tinha feito.
Para que se verifique  o poder da leitura , transcrevem-se textos de Eugénio Lisboa, de Luis Fernando Veríssimo,escritor e cronista brasileiro e de uma biógrafa de Clarice Lispector. Estes dois escritores revelam-se sobre a força da escrita e da autora Clarice Lispector, escritora brasileira (1920-1977).  
Há sempre livros e escritores que nos marcam e marcarão para sempre.
" O 6º ano foi um ano bom: voguei nele , à bolina, aprendendo muito e gostando muito de aprender. Foi nesse ano que descobri escritores que muito me marcaram então. Alguns ficaram para sempre Huxley, Panait Istrati, Oscar Wilde, Martin du Gard , Thornton Wilder , Charles Morgan, Voltaire... Outros, como Jorge Amado, foram uma paixão de adolescência, que o decorrer dos anos e o afinar da vida não confirmariam.  Jorge Amado é um narrador fluente, mas primário e, intelectualmente, bastante boçal.
Marcaram-me muito escritores como Ferenc Kormendi, autor de um romance de grande repercussão internacional - A Aventura em Budapeste - e a nórdica Sally Salminen, cuja ficção A Vida Inteira ( em saborosa tradução  de Tomás Ribeiro Colaço)  me encheu o coração e a fantasia. A minha vida tem sido sujeita  a viagens e trambolhões de monta, mas o livro  de Sally Salminen tem , fisicamente, sobrevivido a tudo: ainda conservo o exemplar comprado em Lourenço Marques. Começava assim:  " Katrina , filha de um campónio de Osterbotten , era a mais velha de três irmãs - e a mais bonita , a mais forte, a mais alegre de todas três. O trabalho parecia-lhe brinquedo, quer se tratasse de cortar árvores, mondar, sachar ou fiar e tecer à mão."
Dos livros que o Sr. Abel Menano deixava em casa do  meu pai, quando  ia  de " licença graciosa", à metrópole, pude ainda ler , com paixão, alguns do Erico Veríssimo: Olhai os Lírios do Campo, Clarissa, Um Lugar ao Sol, Caminhos Cruzados, Música ao Longe... 
Impressionou-me , sobretudo, Caminhos Cruzados, entre os da sua primeira fase, mas fiquei um amigo fiel de Clarissa! Veríssimo é, quanto a mim, bem melhor ficcionista do que Jorge Amado, mais culto, mais arguto, melhor psicólogo, mais sofisticado, melhor arquitecto de fábulas. Na sua última fase , produziu obras de grande gabarito." Eugénio Lisboa , in " Acta est Fabula, Memórias - I - Lourenço Marques (1930-1947), Editora OPERA OMNIA


Luis Fernando Veríssimo é um grande  escritor e  cronista da actualidade  literária brasileira.  Para facilitar a descodificação do texto que se segue,  acrescentamos que é filho de Erico Veríssimo.

Clarice
"Em 1953 meu pai foi dirigir o Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, ligada à Organização dos Estados Americanos.
Fomos morar em Washington, uma aborrecida cidade burocrática, no começo da era Eisenhower. O diplomata Maury Gurgel Valente e sua mulher, Clarice, estavam lá com os dois filhos, Pedro e Paulo, e foram dos primeiros brasileiros a dar as boas-vindas aos recém-chegados. Eles seriam os melhores amigos dos meus pais nos quatro anos em que ficamos em Washington. Clarice e minha mãe, que não poderiam ter personalidades mais diferentes, tornaram-se amigas de infância. E sem que houvesse qualquer cerimónia, meus pais foram designados padrinhos extra-oficiais do filho mais moço dos Valente, o Paulo. (Uma vez fui levar a Clarice e os dois meninos em casa de carro e na chegada o Paulinho perguntou: ‘Não quer entrar pra tomar um cafezinho?’ Grande surpresa. Ele recém-começara a falar, era provavelmente a primeira frase inteira que dizia.) Várias fotografias da Clarice, inclusive algumas que têm saído na imprensa, foram tiradas pelo meu pai durante o convívio dos dois casais naqueles anos americanos. 
Também houve uma designação do meu pai como fotógrafo exclusivo extra-oficial da Clarice.
Eu tinha 16 anos quando chegamos a Washington, e a minha primeira impressão da Clarice foi a de todo mundo: fascinação. Com a sua beleza eslava, os olhos meio asiáticos, o erre carregado que dava um mistério especial à sua fala, e ao mesmo tempo com seu humor, e seu jeito de garotona ainda desacostumada com o tamanho do próprio corpo. O fato de que aquela Clarice era a Clarice Lispector não me dizia muito. Eu sabia que era uma escritora meio complicada, nunca tinha lido nada dela. Só quando voltamos ao Brasil li ‘O lustre’, ‘Perto do coração selvagem’ e depois os contos, extraordinários. ‘A legião estrangeira’, ‘Amor’, ‘Uma galinha’, ‘Macacos’, ‘Laços de família’, ‘Festa de aniversário’ e tantos outros, e o melhor conto que conheço em língua portuguesa, ‘A menor mulher do mundo’. Em 1962 fui morar com a minha tia, no Rio. A Clarice, que então já estava separada do Mauri, era sua vizinha no Leme e pude conviver, e me fascinar, um pouco mais com ela.
Agora, folheando alguns livros da Clarice antes de escrever isto, dei com uma dedicatória dela em ‘A maçã no escuro’ para ‘meus queridos Érico e Mafalda’. Uma dedicatória brincalhona, datada em Julho de 1961, em que ela destaca que o preço do livro nas livrarias é de 980 cruzeiros e que portanto está lhes dando um presente valiosíssimo, e recomenda que ele seja protegido com uma capa colante, do tipo que gruda na mão e ‘prende’ o leitor. No fim há um adendo que eu ainda não tinha visto: ‘Luis Fernando, considere este livro seu também, por favor. Divida 980 por três e você terá preciosa parte. Sua Clarice.’
A lembrança da Clarice vale bem mais do que 980 cruzeiros, mesmo com todas as correcções monetárias acumuladas em 44 anos."
 Ler Clarice é...
"Ler Clarice é viver em permanente estado de paixão. 
Ler Clarice exige uma mudança de postura do leitor no modo pelo qual ele se aproxima do texto. É que o texto de Clarice pede uma escuta atenta, uma entrega de quem o lê. Clarice fala de coisas presentes no nosso dia-a-dia, o modo pelo qual reagimos aos acontecimentos mais banais, como andar na rua, olhar-se ao espelho ou conversar com um amigo. Ela nos mostra, também, outras coisas vivenciadas interiormente, aqueles momentos sem palavras dos quais só o nosso coração testemunha. Clarice escreve textos como quem vai desvelando a realidade, sondando os gestos, os olhares; tudo tão subtilmente que quando o leitor se dá conta vê-se diante de um instante mágico, especial, ao reconhecer a sua vida, a si mesmo, através daquelas palavras.
Ler Clarice é uma oportunidade de mudar o seu olhar diante do universo. É estar disponível para se aventurar no seu interior de forma irracional, sem censuras. Deixar-se levar pela imaginação, pela intuição e usá-las como forma de conhecimento.
Ao publicar A paixão segundo G.H., Clarice escreveu uma pequena nota introdutória onde pedia que este livro só fosse lido por pessoas de alma já formada. Isso mostra até que ponto pode-se absorver o que o seu texto diz. Ao ler Clarice deve-se estar disposto a aceitar o não entendimento de determinados processos da vida. Clarice dizia: “Suponho que entender não seja uma questão de inteligência, mas uma questão de sentir, de entrar em contacto.” Isso faz parte do caminho aberto pelo seu texto. Cada leitor contém a sua bagagem particular de experiências, sensações, accionadas no momento da leitura; Clarice sabe disso e valoriza estas particularidades. Seu texto é um convite permanente ao "viver ultrapassa todo o entendimento" (palavras de Clarice).
Clarice escreveu crónicas, contos, romances, livros infantis, reportagens, páginas femininas, uma peça teatral, enfim, exercitou-se em diferentes registros de textos, mas imprimiu sua marca em todos eles: o texto interroga, faz o natural parecer sobrenatural, imprime um sentido ainda desconhecido por nós.
Viver essa experiência de ser leitor de Clarice é uma aventura no que ela tem de imprevisível, surpreendente, perigoso, ao mesmo tempo é um presente porque quando se está lendo Clarice você se sente especial dentro deste universo criado por ela. Especial porque você consegue se reconhecer como um ser humano cheio de limitações, sujeito às adversidades da vida, ao fracasso, às crises, mas também capaz de trilhar um caminho repleto de descobertas, de sustos, de grandes alegrias, de momentos de êxtase, vertigens, delírios.
Ler Clarice é a possibilidade de viver intensamente o que se é."

2 comentários:

  1. DIA INTERNACIONAL DO LIVRO - OS QUE ME ENSINARAM A AMAR A ESCRITA, ALGUNS, OS MEUS COMETIMENTOS:

    1 – Os americanos: E. Hemingway, W.Faulkner, J. Steinbeck, Dashiel Hammett (policial). Jack Kerouac, Jack London;
    2 – Os ingleses: D. H. Lawrence, J. Conrad, G. Orwell, S. Beckett, J. Le Carré,;
    3 – Os franceses: A. Dumas, Apollinaire. A. Camus, J.P. Sartre, M. Proust, M.Duras, Saint-John Perse;
    4 – Os brasileiros: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, A. Callado, O. Lins, E.Veríssimo, D. Trevisan;
    5 – Argentinos: J. Hernández, J.L. Borges, A. Bioy Casares, L. Lugones, J.Cortázar, E. Sábato, R.Arlt, R. Piglia, J.J. Saer, H. Tizón;
    6 – Latinoamericanos: N. Guillén, Lezama Lima, García Márquez, V. Llosa, J.C. Onetti, Benedetti, P. Neruda, C. Fuentes, A., Skármeta;
    7 – Os portugueses: Camões, P. Antonio Vieira, A.Herculano, A. Garrett, Eça, F. Pessoa, Ferreira de Castro, J. Gomes Ferreira, S. Mello Brayner, J. Cardoso Pires, J. Saramago, A. Lobo Antunes;
    8 – Os alemães e em língua alemã: os poetas Goethe, Schiller, G. Büchner, F. Hölderlin e Novalis, depois os romancistas A. Döblin, F.Kafka, H.Hesse, Th. Mann, H.Fallada, R. Musil, H. Böll, G. Grass – B. Brecht como dramaturgo;
    8– Os russos: Tolstoy, Pushkin, Dostoyevski – tenho que ler Solshenytzin;
    10 - Os africanos: J. Luandino Vieira, A.Neto, A.C.M. Perpetela, Coetze;
    11 – Os espanhóis: Cervantes, G.Lorca, Miguel Hernández, Machado, a galega Rosalía de Castro, J.Semprún, E. Vila-Matas (lista pobre, uma vergonha! Faltam Góngora, L. de Vega e tantos outros!);

    Muitos mais, a perder de vista.

    Perdi duas bibliotecas, devem somar uns 1500 livros – literalmente, minha “biblioteca submergida”. Estou tentando constituir a terceira, com operação de resgate dos clássicos e demais extraviados. Talvez deva contratar um “seguro literário” - existe isso?

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  2. Se há seguro literário, não podemos informar. Muito útil seria na vida errante que levamos tão frequentemente. Os meus livros já viajaram muito. Perderam-se alguns que somaram uma quantidade elevada para quem gosta tanto de livros.
    Muitos dos escritores que nomeia , nessa lista universal, acarinharam-me desde que lembro a leitura. Continuam comigo e com outros tantos que fazem parte de uma grande família que adoptei para sempre.
    Um imenso agradecimento pela partilha da sua família literária.

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