segunda-feira, 10 de março de 2014

A Cidade


 “A escrita tem as suas próprias leis de perspectiva, de luz e de sombras, como a pintura e a música. Se nasces com elas, perfeito. Se não, aprende-as. Em seguida, reorganiza as regras à tua maneira.” Truman Capote

A Cidade

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Vista da Ponte, a Cidade parece  intemporal. Fascina-me  o seu casamento com o rio e com o mar num braço aberto. Mas foi sempre e apenas  esse pormenor, essa singular união. O fascínio soçobrava às portas da Cidade. Nunca adentrou. Acabrunhava-me a sua traça virada de costas para o rio e anulada qualquer ligação com o Mar pela muralha intransponível de prédios gigantescos enfileirados para o turismo de massa  da sua Praia.
Há , porém, uma certa emoção ao contemplá-La da Ponte, principalmente à chegada, apresentando-se imponente com o  seu reflexo nas águas do Rio e deixando soltar uma paz adormecida na sombra de tanta casa anónima que vista deste ângulo não é possível identificar.
É esse anonimato que explica a minha relação  com a Cidade e vinte anos da minha vida. Não foi um caso de amor e muito menos de  paixão que me levou para a Cidade. Era mais um lugar para viver que acumulava privacidade com um elemento paisagístico natural imprescindível para mim, a ÁGUA.
Não tinha muito dinheiro, nem sequer conhecia o mercado imobiliário.  Tinha vindo para o Sul  e, como as praias estavam desertas , emprestaram-me uma casa numa Vila, à beira-mar, situada perto da Cidade. Era um empréstimo a prazo, pois no Verão teria de sair.
Aprendi alguns anos mais tarde que a privacidade e o anonimato são fantasmas de outro tempo e de outra cidade que não esta . Foi  já  muito tarde essa minha descoberta , não evitando todos estes acontecimentos que continuam  vivos na minha memória.
A Ponte atraiçoou-me . Ainda hoje a miragem é perfeita , tentando oferecer-nos uma imagem da Cidade que não é real.
Acredito que o onírico foi sempre um traço importante na construção das percepções que tenho da realidade. Vivi muito tempo concertando sonhos que se desfaziam em verdades dolorosas. E a Cidade foi uma verdade ludibriada.

A casa tinha apenas dois quartos meticulosamente preparados para férias. As mobílias rústicas , pintadas de azul, cheiravam a resquícios de um emprestado estilo alentejano que convivia muito bem com as dimensões dos quartos. A sala era para tudo , aquilo que vulgarmente se designa de “sala comum” que eu considero como polivalente ou seja multifuncional. E realmente serviu de escritório para mim, de sala de estudo para os meus filhos, de sala de jantar para todos e até de quarto, quando vinham os “Lisboetas” de visita.
A cozinha minúscula estava encafuada num compartimento aberto para a sala, sem janela e, por tal, interior. Os meus vinte anos ajudaram a encará-la quase como um legado especial e acolhedor, apagando o que de nefasto tem um cubículo transformado em cozinha, numa terra onde o calor é intenso.
Tinha acabado de fazer um estágio violentíssimo, embora tivesse sido socorrida frequentemente pela minha mãe. Fora muito difícil conjugar a vida profissional com a vida privada . O Daniel continuava longe de todos nós. Nunca entendi essa opção.
Não tinha a certeza se ao  vir novamente para longe, encontraria a solução para um outro início de vida. Mas tornar-se-ia frequente e quase uma marca no devir da minha vida, o recomeçar como consequência de um fatal retroceder. Contudo, verifico que nunca foi um começar no mesmo ponto do retrocesso. Afinal avançar e recuar é uma alternância inerente ao homem, só que nem sempre se entende isso na altura em que acontece.
O meu reencontro com o mar foi esplendoroso e tornou-se num ritual precioso e impiedosamente sôfrego. Todos os dias, a pretexto de tudo e de nada,  íamos à praia ou simplesmente vaguear junto à muralha, quando o mau tempo impedia .  O mar, a água de cambiantes infindos, exercia, então,  um poder paliativo que superava qualquer sentimento que teimasse em derrubar-me. Terá sido por ele e com ele que me fui reconstruindo.
Nessa época,  misturava as correrias de Martim , de Dinis e de Rodrigo, os meus filhos , com a preparação de trabalhos nos momentos livres, quer na areia da praia quer no Parque infantil sobranceiro à mesma. E lá estava o mar como fundo, fundeando também a minha existência.

Nos primeiros tempos foi muito difícil organizar-me nesta nova terra. Martim tinha três anos, pelo que  necessitava de um infantário que não existia. Dinis, com quatro, entrou para a pré-primária e Rodrigo já  com seis anos para a 1ª Classe . Os dois ficavam na Escola Primária às 8h30  e Dinis continuava  em casa com uma empregada doméstica que encontrei num café da Avenida Marginal. Era já uma mulher de meia-idade que me oferecia reforçada segurança necessária para me poder afastar e laborar a tempo inteiro, na tal Escola Secundária onde fui colocada.“  Maria José Vieira de Sousa, in " A Cidade", 1999

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