sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Crónicas da Infâmia

Crónicas da Infâmia
2 – Do ( Des)amor
Portugal foi sempre o meu país  e a minha pátria. Todavia, creio que país e pátria já não são coincidentes, nem tão pouco complementares. Não sei se alguém  o afirmou. Digo-o, apenas porque senti.
Um país preenche e  ilustra um mapa.  Uma pátria habita e adorna um coração.
A guerra começa quando se pretende apô-los e se descobre  que essa pátria não veste aquele país e esse país não tem corpo para aquela pátria. Ficar sem pátria é,então, ter um coração apátrida. São os laços que se quebram num coração que passa a sobreviver sem essas amarras.
Assim ficou o meu coração. Apátrida de um país que me dá a nacionalidade. Apátrida de um país que me inclui na população residente. Apátrida de um país que existe ausente de mim. E nessa ausência, tento  descobrir  o que fez deste  Portugal  um país de tantas pátrias expatriado. Confirmo, atónita,  que foi também uma outra ausência. A maior talvez, porque é uma ausência vital - a ausência do amor. Sem ele,  a infâmia vinga.
O amor, sentimento exigente, volatilizou-se adquirindo uma  forma estranha  que  enviesa os dias  e as gentes deste país. Arredou-se,  em degeneração profunda, dando lugar ao (des)amor.
(Des)amor que se implantou sem que fosse regulamentado, exigido, recomendado.
(Des)amor que se infiltrou sem pedir licença, mas entrando , invadindo, espalhando-se , qual erva daninha que brota sem ser semeada.
(Des)amor que reina, que dispõe, que exige, que quebra, que anula, que separa, que mata.
(Des)amor, a nova infâmia  deste  canhestro  e ancestral país.
As loas que, ao longo do tempo, os poetas  foram tecendo ao amor, jazem, agora, nas obras  maiores de Camões, de Shakespeare ,de Neruda ou de  tantos outros grandes poetas.
E se o  (des)amor  grassa e prospera pelo mundo, porquê invocar a infâmia?
Impossível não invocar a infâmia, quando se entra num Hospital apinhado de doentes nos corredores da urgência.
Impossível não invocar a infâmia, quando se não tem pão para matar a fome de um filho.
Impossível não invocar a infâmia,  quando se abandonam  quatrocentos mil desempregados à sorte de uma anunciada penúria extrema.
Impossível não invocar a infâmia, quando se coloca um pai, uma mãe, um avô, uma avó num Lar de idosos. Nesta situação, não se invoca apenas a  infâmia, confirma-se  a dolosa evidência do (des)amor. Basta entrar nesses Lares, áridos ou confortáveis, para verificar que são os  armazéns  dos  idosos. A dor magoa-nos sem reserva e sem defesa. Perante nós, desfia–se, em terrível surpresa, o verdadeiro estiolamento da família. São os pais , os avós,  abandonados, espoliados por filhos e por netos que foram desejados e amados na teia dos laços familiares, no  seio de uma família que todos incluía. E ei-los , empurrados para o último e mais confrangente lugar da degradação do amor: a sepultura dos vivos.
A finitude da vida apresenta-se na sua forma mais vulnerável e mais trágica . Roubar o tecto de uma vida inteira para  um chão que não se ajusta aos pés gastos por outros soalhos é invocar a morte e exercer  uma despudorada violência em nome  de uma solução sem qualquer outra alternativa.
Os lares deste país estão cheios de idosos, esquecidos, rejeitados, prostrados a um destino que não escolheram. O olhar de cada um perde-se na memória de um tempo que já não existe e de outro que se estiola. Feriu-me, logo que entrei num Lar.
No último que visitei, fui ao encontro de uma das mulheres mais notáveis do combate ao antigo regime fascista: Cândida Ventura.
Mulher corajosa, mulher histórica com um passado relevante e de referência na luta pela defesa da Liberdade. Uma das primeiras mulheres comunistas a atingir o topo da hierarquia marxista. Presa , exilada , viveu anos de clandestinidade ao longo da sua militância partidária. Ei-la , aos 95 anos, clandestina, confinada  e esquecida num Lar.
Inteligente, activa , em pleno  uso de todas as suas faculdades mentais, rejeita viver emparedada num Lar. Retirá-la , é- me impossível. Denunciar esta atrocidade é minha obrigação.
Cândida Ventura está viva, mas impossibilitada de viver a sua própria vida. Como ela , vivem milhares de idosos deste país.
País que deixou o meu coração apátrida.
Haverá infâmia maior?
                                                           Praia da Rocha,  4 de Fevereiro de 2014
Maria José Vieira de Sousa

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