quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A MÚSICA LÁ FORA

        A MÚSICA LÁ FORA
        Por Eugénio Lisboa
«Não é infrequente serem as virtudes mais profundas de um autor as principais responsáveis pelo seu (ainda que  relativo) esquecimento ou ... provisório abandono. As virtudes cardeais, observava Montherlant, isolam. E, entre nós, o autoapagamento dos discretos e dos nobres é pesadamente facturado pelos que tomam, de roldão, os palcos, as luzes da ribalta e as buzinas da autopromoção. Tem-se visto, vê-se todos os dias. E a náusea que nos assiste não é obstáculo à continuação dos que aos trinta e pouco já publicam a sua Obra  Reunida e dirigem, com autoridade e desplante, a orquestra que promove lá fora a cultura indígena: com mais ou menos falta de conhecimento, mas com muito brio e uma corte sempre prestável e afável.
Saúl Dias, pseudónimo literário de Julio Maria dos Reis Pereira, foi toda a vida um discreto, cantando, com pudor, nos interstícios do silêncio, e vivendo, com igual pudor, nas dobras do retiro. Na pintura, no desenho, na poesia, foi sempre o bardo de uma eloquência discreta e subtil, talvez, por isso mesmo, mais secretamente forte, ainda que menos ruidosamente visível. Observava André Gide que “arte mais subtil, mais forte e mais profunda é aquela que não se dá, logo às primeiras, a ser reconhecida.” No tempo da presença e no discurso dos anos que se lhe seguiram, Saúl Dias/Julio só deu, de comparável à intensidade do seu empenho, a nobre firmeza do seu nobilíssimo apagamento. Eloquente e retórico, pelo menos numa primeira fase (que não sempre), seu irmão José Maria furtava-se aos outros por via do truque duplo de um retiro físico no (então) remoto Alentejo e de um jogo de máscaras com que se esquivava mesmo quando parecia que se entregava. Julio/Saúl usava uma única máscara que o não era: o pudor, o quase silêncio, a discrição levada quase ao limite. Tudo sugerindo aos que se não deixavam facilmente iludir que se tratava de uma riqueza e não de uma ausência: “Ninguém testa a profundidade de um rio com ambos os pés”, reza um provérbio Ashanti. O que tem uma dupla leitura: nem Saúl Dias, via maneira de atingir o âmago das coisas – a profundidade dos rios – a não ser por via de uma aproximação delicada e quase silenciosa, nem nós, leitores, poderemos jamais chegar ao poeta – e ao pintor – a não ser munidos de cautela e subtileza. Por outras palavras, o protocolo com que ele sonda o real só pode ser o protocolo com que nós o sondamos a ele. Num texto publicado em 1967 e mais tarde reunido no seu livro Presença da «presença», esse grande crítico e ensaísta que foi David Mourão-Ferreira observava: “em ambos [Saúl Dias e Julio] se revelam as mesmas raras qualidades, de contenção e de sortilégio, a mesma delicadeza de linhas, o mesmo pudor descritivo, o mesmo poder de elíptica sugestão”. Gide gostava de dizer que a verdadeira arte clássica era uma “arte de pudor e de modéstia”. Assim sendo, a arte de Saúl Dias/Julio verifica o paradoxo de ser a um tempo profundamente clássica, sem deixar de ser a de, ainda nas palavras de Mourão-Ferreira, [a de]” um vulto cimeiro de modernismo português”. É que nele convergem, de modo intenso e feliz, a audácia e o seu freio, o novo e o provado, a alegria e o silêncio, a prudência e a coragem. Diz um personagem de uma comédia de Shakespeare que “o silêncio é o intérprete mais eloquente da alegria.” “Silêncio” deve aqui ser tomado por aquilo que pode ser, numa arte que é feita de palavras, as quais são feitas para o interromper. Em vez de silêncio, leia-se “contenção”, “eloquência amarrada”, aquilo a que George Steiner chamava “o retiro da palavra”. Vejamos este poema, do primeiro livro de Saúl Dias :”As madressilvas / que em Abril florescem airosas entre os brejos / parecem dizer:/ Vede como somos belas! //e os namorados que na estrada passam, abraçados aos beijos,/ erguem os braços para colhê-las...”
Seria difícil com maior economia de palavras (mas judiciosa e jubilosamente escolhidas) sugerir uma tal intensidade de florescimento de vida! As madressilvas emergem, “airosas”, da opressão dos brejos e explodem num canto de libertação: “Vede como somos belas!” E, paralelamente, os namorados deslaçam-se de beijos sensuais mas algo opressores e soltam-se, erguendo “os braços para colhê-las...”A rima discreta mas eficaz, subtil mas actuante, contribui para a explosão de vida e de libertação. Aqui, como em Shakespeare, o silêncio, isto é, o pudor e o retiro são os intérpretes mais eloquentes da alegria.
Já uma vez observei, a propósito de uma poetisa de língua portuguesa que viveu longos anos em Moçambique, frente ao esplendor de uma baía do Índico e cultivando, como Saúl Dias, uma poesia intensa mas de poucas palavras, que se teria que inventar uma retórica do silêncio que melhor nos permitisse ler este canto feito de uma escrita rara e que se nos entrega menos pelo muito que diz, que pelo imenso que sugere. “Visando obstinada e assimptoticamente um silêncio que nenhuma palavra possa violar”, dizíamos nós então, “a poesia de Glória de Sant’Anna insinua-nos, de modo obsessivo, um mundo onde o sagrado se instalou, um mundo, para voltarmos a Steiner, onde «a verdade já não tem necessidade de sofrer as impurezas e a fragmentação que o discurso necessariamente implica».” Eis o que, por outras palavras, inculcava David Mourão-Ferreira, quando notava que a obra de Saúl Dias nos “convida(va) a uma forma de «leitura» a que, geralmente, a poesia portuguesa não nos tem habituado muito: a «leitura» do silêncio, - dos silêncios existentes entre as estrofes entre os versos, no interior de cada verso...”Silêncio que não é indigência, visto que este pudor (o de Saúl Dias, o de Glória de Sant’Anna) antes sugere riqueza que se esconde e preserva. Voltamos a Gide, esse mestre da litote, que afirmava ainda no seu inesquecível Journal: “Quando nada se tem a dizer ou a esconder, não há necessidade de se ser discreto”. O discurso dos discretos é o discurso do ice-berg, que mostra, ao cimo da água, uma parte pequena da sua dimensão – o resto fica escondido nas profundidades do oceano:” Roubaste-me a alma / em troca do teu corpo./ Mas o teu corpo / tornou-se também alma./ E eu voltei a ter calma.”
Neste pequeno poema, que é uma pequena obra-prima, não cabe uma palavra mais e, por outro lado, uma palavra que se lhe retire destrói o edifício, todo construído com uma força discreta mas decisiva. Saúl Dias fala pouco para dizer muito. Num percurso que visa esse impressivo despojamento, o poeta de Sangue justifica João Gaspar Simões, ao classificar a sua arte poética de “lirismo por assim dizer monossilábico” e o seu “caso poético” de “um dos casos poéticos mais originais da geração”. É neste pudor, nesta reserva, neste retiro que Saúl Dias assume um dos vectores mais significativos do moderno: “Esta revalorização do silêncio” -, observava Steiner, “na epistemologia de Wittgenstein, na estética de Webern e Cage, na poética de Becket é um dos actos mais originais e característicos do espírito moderno. O conceito de palavra não dita, de música não ouvida e portanto mais rica, é, em Keats, um paradoxo local, um ornamento neo-platónico. Em muita poesia moderna o silêncio representa a reivindicação do ideal; falar é dizer menos.” Julio fala pouco e diz muito. Régio vai tendendo ao longo de um discurso abundante e que gradativamente se depura, para um silêncio que visa e que ocasionalmente substitui por um despiste perverso do leitor, Julio instala-se relativamente cedo, nesse quase silêncio essencial, que usa como via de expressão intensa. Régio tem outras dimensões: ficcionista de vôo largo, ensaísta, epistológrafo, memorialista: explica-se exaustivamente, explica os outros, polemiza, carteia-se com facúndia (mesmo queixando-se que o tempo lhe não chega) – assim vai imprimindo uma marca forte e nem sempre tida por simpática, num mercado literário de amadores e de preguiçosos. Júlio fica-se pelos poemas essenciais e, quando quer mudar de registo, volta-se para a pintura. A sua correspondência deve ser escassa e as espécies curtas e circunstaciais. Textos de exegese– viste-los. Canta e pinta – e já lhe chega. Neste discurso que se poupa e se reserva, a única força permitida é a da subtileza. Há nisto um perigo que o espreita, se é certo, como queria o ferino La Rochefoucauld que “a subtileza demasiado grande é uma falsa delicadeza e a verdadeira delicadeza é uma sólida subtileza”. Cremos que a de Saúl Dias/Julio é uma sólida subtileza que é como quem diz, uma verdadeira delicadeza”: “Pisas a areia, delicada,/e a tua mão prende o cabelo,/e esse gesto, quase nada,/tenho receio de perdê-lo./ Ah! Se eu pudesse emaranhá-lo/Na escassa malha de uma rima!/Mas já desisto... Foi-se o halo!/Sumiu-se a vaga tremulina!”
Vaga tremulina, escassa malha, gesto quase nada, areia delicada – eis materiais de construção quase etéreos, quase inacabados, quase demasiadamente leves, realmente delicados e sugestivos. Tudo tão reticente, tão reservado, tão resguardado, tão discreto... “A sinceridade é de vidro, a discrição é de diamante”, observava Maurois, dando à palavra sinceridade o provável sentido de entrega demasiado indiscreta e excessivamente eloquente. Diamante é, com efeito, o que nos sugere esta poesia quase sempre tão cristalina e tão avarenta dos seus meios que usa como quem os esconde.
Neste singular protocolo de discrição, creio que a província desempenha também o seu papel. “A província”, observou David Mourão-Ferreira, “desempenha efectivamente, um lugar primordial na poesia de Saúl Dias, como também na obra de alguns dos seus companheiros de grupo. Mas, enquanto não passa, na de muitos deles, da moldura de um quadro – moldura pitoresca ou asfixiante -, na de Saúl Dias ela é o próprio quadro: as formas e as cores em que se exprime, no quadro, a fundamental nostalgia do paraíso perdido.” Creio que David diagnostica bem ao detectar, nesta poesia, a presença natural, não rejeitada, da província. Mas penso, por outro lado, que ver nela a melancolia de um “paraíso perdido” é um pouco esquecer que Saúl Dias jamais saíu da província, embora mudando, dentro dela, de lugar ou de lugares. Eu seria pois mais tentado a ver nela mais um dos rostos assumidos do seu retiro, da rejeição de tudo quanto tenha que ver com uma exibição mais ostensiva e ruidosa – a que se vive nas grandes cidades, embora, até nestas, haja quem saiba organizar a sua província. A província diz bem com a discrição, com a rarefacção da palavra, é também uma metáfora adequada a esta poesia monossilábica e avara. Mas tudo isto acabou por ajudar a que o nome de Saúl Dias/Julio, embora universalmente respeitado e até amado (com bem menos reservas do que as votadas ao seu célebre e contestadíssimo irmão José), tenha vivido, durante tantos anos numa espécie de sombra, não definitivamente obliterante, mas sombra, mas injusta, mas inadequada à qualidade eminente desta poesia tão subtilmente alada e sortílega.
Num poema incluído na série dos Inéditos pela mão atenta e cuidadosa de Luís Adriano Carlos, que preparou com devoção e inteligência a Obra Completa que a Campo das Letras há pouco trouxe à luz, podemos ler: ”Há música lá fora, há danças, há fogueiras,/ há risos de mulheres e corre o vinho farto./ Porque me isolo e escondo e fecho no meu quarto,/eu que, no fundo, sonho enormes bebedeiras?”
Porque se isolaria e esconderia o poeta, havendo “música lá fora”? Talvez para ouvir outra música das profundezas, uma música menos óbvia, menos estridente mas infinitamente mais encantatória.
 O nome de Saúl Dias tem de facto andado um pouco obscurecido, como que mergulhado no fundo de algum oceano. Meditando sobre o génio do romancista americano, Herman Melville, que durante quase cem anos passou despercebido, Camus recordava uma observação feita pelo próprio autor de Moby Dick, tentando talvez consolar-se da obliteração que lhe amargurou tantos anos de vida: “Para perpetuarmos o nosso nome, devemos esculpi-lo em pedra rija e atirá-la às profundidades do mar: as profundidades duram mais do que as alturas.” E Camus concluía, revendo-se nesta citação: “As profundidades têm de facto a sua virtude dolorosa, como a teve o injusto silêncio em que Melville viveu e morreu e como teve também o intemporal oceano que ele sem cessar lavrou.” Já bem dentro do século XX, Melville foi reconhecido finalmente, na sua gigantesca dimensão. A pedra rija que guardara o seu nome no fundo escuro do oceano – prevalecera. Como prevaleceu também, o nome de Saúl Dias que agora, aqui no Porto, bem perto da sua província natal, veio ao de cima neste colóquio em boa hora congeminado: “Vamos,/de mãos dadas,/ pisando novos trilhos./Sangrando os pés,/ passando frio e fome./Tudo o tempo consome!/ 
Andando,/adormecendo,/acordando,/morrendo,/ressuscitando...” »
                                                                      Eugénio Lisboa
                                                      13/14 de Maio de 2002

Sem comentários:

Enviar um comentário