sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O milagre do perdão

Mandela: o milagre do perdão
Por Anselmo Borges
"Ainda se pode dizer algo que não tenha já sido dito sobre Nelson Mandela, perante quem o mundo todo se inclinou, em sinal de respeito e veneração, aquando da sua morte a 5 de Dezembro passado, aos 95 anos? Já antes também.
Estive várias vezes na África do Sul, ainda no tempo do apartheid. Ainda vi, por exemplo, em bancos de jardim ou indicação de praia, a ordem: "Whites only" (só para brancos). Se pude visitar o Soweto, foi porque o afável bispo católico de Joanesburgo, que não era racista, pediu ao pároco negro que me acompanhasse. E foi com muita simpatia que me receberam.
Muitas vezes me perguntei como é que aquela ignomínia iria acabar. Seria possível sem um banho de sangue? Foi possível. Pacificamente, abriu-se o caminho para a democracia no quadro da coexistência racial. Isso deveu-se certamente também à inteligência política do presidente De Klerk, no novo contexto criado pela queda do muro de Berlim. Mas, para evitar a tragédia, o espírito e a acção de Mandela foram determinantes. Afinal, tudo está naquele gesto de apertar a mão aos carcereiros e convidá-los para o banquete de inauguração da nova presidência da "nação arco-íris". É necessário caminhar com a utopia, que nos diz, por um lado, o que não pode ser, porque intolerável, e, por outro, nos indica o caminho do para onde se deve ir.
Mandela percebera que os seus carcereiros eram seres humanos habitados pelo medo. Ora, o medo é do pior que há. O medo tolhe a razão e a capacidade de pensar. É preciso ter medo de quem tem medo, de tal modo que a primeira libertação tem de ser a libertação do medo. Também e sobretudo no universo da religião. Aterrados pelo medo de Deus, homens e mulheres que se julgam religiosos caminham fatalmente para desgraças tenebrosas. Por isso, a Bíblia é atravessada pela compreensão histórica lenta, que culmina em Jesus, através da sua experiência, palavras e acções, de que a única tentativa de "definir" Deus é (está em São João): Ho theós agapê estín (Deus é amor incondicional, Deus é Força infinita de criar e só sabe amar).
Mandela era cristão. Por isso, sabia que se deve perdoar aos inimigos. Pelo Evangelho, também sabia que os romanos enquanto potência de ocupação podiam obrigar um judeu a transportar a bagagem na distância de uma milha, sendo neste contexto que se percebe o que Jesus diz: "Faz uma segunda milha de livre vontade." Talvez o romano começasse a conversar, e quem sabe se não acabariam por beber um copo juntos? A reconciliação, a solução pacífica dos conflitos é preferível à violência e à guerra. E Jesus, do alto da cruz, rezou: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem."
De qualquer modo, o perdão é um milagre, também em política. Jürgen Habermas, agnóstico, talvez o maior filósofo vivo, que quereria uma filosofia que herdasse, num processo de secularização mediante a razão comunicativa, os conteúdos semânticos da religião e a sua força, reconheceu que há um resto na religião não herdável pela simples razão. Disse-o num discurso famoso, por ocasião da recepção do prémio da paz dos livreiros alemães e já depois dos acontecimentos trágicos do 11 de Setembro de 2001. Esse resto tem que ver nomeadamente com o drama do perdão.
O perdão, em última análise, já não pertence à ordem do jurídico nem do político. No perdão do imperdoável, é a razão humana enquanto capacidade do cálculo que é superada, pois nem o algoz tem direito ao perdão nem a vítima é obrigada a perdoar. Como escreveu o filósofo Jacques Derrida, perdoar o imperdoável aponta para algo que está para lá da imanência, "qualquer coisa de trans-humano": "na ideia do perdão, há a da transcendência", pois realiza-se um gesto que já não está ao nível da imanência humana. Aí, começa o domínio da religião. "A partir desta ideia do impossível, deste "desejo" ou deste "pensamento" do perdão, deste pensamento do desconhecido e do transfenomenal, pode muito bem tentar-se uma génese do religioso." Anselmo Borges , em artigo de opinião publicado no DN, em 1.02.2014

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Morreu Paco de Lucia

Paco de Lucía. A rebelião do flamenco fez-se com estas seis cordas
O mestre da guitarra sofria em palco e encontrava tranquilidade na jardinagem. Morreu ontem, com 66 anos
"Sentado, de olhos fechados e perna cruzada, dançava ao som das próprias notas, sempre de expressão contida e serena. Francisco Sánchez Gómez ficou conhecido mundialmente por Paco de Lucía - o último nome emprestado da mãe, uma portuguesa de Castro Marim, Lúcia. Agitou os pilares da música dos anos 60 e daí em diante fez a sua revolução. Celebrizou o flamenco e ousou misturá-lo com outras sonoridades: ele e uma guitarra. Morreu ontem, aos 66 anos, numa praia em Cancún, no México, de ataque cardíaco.
Nascido e criado no bairro de La Bajadilla, em Algeciras, predominantemente cigano, cedo que se familiarizou com a música, a guitarra em particular. O pai era vendedor ambulante durante o dia e músico de baile em baile quando o Sol se punha. Assim, não é de estranhar que Paco tenha encontrado na guitarra uma parceira, pelos seis anos. Numa família humilde, foi trabalhar cedo para ajudar em casa e tudo o que aprendeu na música foi por instinto, "era como falar, para mim", revela no documentário "Paco de Lucía", de 2002. Maria e Antonio, irmãos, também cantavam e tocavam, respectivamente. Mas foram outros dois irmãos que também acabariam por enveredar pela música, Ramón e Pepe. Com o último lançou em 1963, com apenas 16 anos, o seu primeiro disco, "Los Chiquitos de Algeciras". Tinham-se feito ouvir pelo grande público pouco antes, através da emissora local, a Rádio Algeciras. Paco encontrou num amigo de família um dos seus mentores, Niño Ricardo, conhecido como o mestre da guitarra espanhola. Um dia disse que Paco ia ser grande.
"Entre dos aguas", lançado em 1975, confirmou o sucesso de Paco, que foi convidado a actuar numa das salas mais prestigiadas do país, o Teatro Real de Madrid, que por hábito só acolhia espectáculos de música clássica. Os anos 70 criaram também aquela que se revelaria uma das mais fortes parcerias no mundo do flamenco: Paco aliou-se ao cantor Camarón de la Isla e juntos tocaram, durante anos, a forçar os limites do flamenco. Nesta década seriam editados sucessos como "El duende flamenco" (1972), "Fuente y cuadal" (1973) ou "Almoraima" (1976).
Com a morte de Camarón e com os problemas de direitos das canções (que eram partilhadas), Paco entrou numa fase difícil, agravada pela morte dos pais. Afastou-se dos palcos mas acabaria por regressar à actividade, sempre sem limites estilísticos, com registos tão distintos como "Siroco" (1987), "Zyryab" (1990) ou "Concierto de Aranjuez" (1991). O último disco que gravou foi "Cositas buenas", de 2004, que, aliás, apresentou em solo português. Nesse mesmo ano recebeu um dos maiores reconhecimentos do país, o Prémio Príncipe das Astúrias, e poucos meses depois um galardão de projecção internacional, o Grammy latino para melhor álbum de flamenco, com esse último trabalho.
Conta várias colaborações com outros artistas, também fez parte de grupos distintos. Nos anos 80 aliou a outro nome conhecido de fora do mundo flamenco, John McLaughlin, britânico que ganhou fama pelo jazz de fusão influenciado pelo rock. Numa parceria mais inverosímil, também tocou para Bryan Adams a melodia de "Have you really loved a woman". Também com McLaughlin e com Al Di Meola criou um dos mais famosos trios de guitarra de sempre.
Conseguiu encaixar a salsa, os ritmos árabes, o rock, os blues, o jazz e a bossa nova no flamenco, provocando alguns puristas mas surpreendendo pela positiva a maior parte do público. Também entrou na grande tela através das bandas-sonoras de filmes tão populares como o "Vicky, Cristina, Barcelona", de Woody Allen, ou da série "Kill Bill", de Tarantino.
Casou pela primeira vez nos anos 70, contra a vontade dos pais, e desse casamento teve dois filhos. Voltaria a casar e teria outros dois. Tinha uma vida terra a terra, fazia jardinagem, mergulho e pesca, actividades que aproveitava numa vida tranquila no México. "Com a guitarra já sofri muito, mas depois de passar bons momentos esse sofrimento pareceu-me valer a pena." Tinha uma relação particular com a sua arte: gostava de "sentir essa coisa masoquista da criação", mas nem por isso lhe agradava a fama e tudo o que ela implicava. Arranca a sua história no documentário: "Reivindico para mim o Francisco Sánchez que gosta da paz, da tranquilidade, da serenidade. Tudo isso é incompatível com viver com Paco de Lucía." Maria Espírito Santo, in Jornal i

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O histórico encontro de Fidel de Castro com Velasco Ibarra

 A visita de Fidel Castro ao Equador
Por Manoel de Andrade
          "(…) Naqueles dias toda a esquerda equatoriana estava agitada com a chegada de Fidel Castro, em 4 de Novembro de 1971 à Guayaquil, para onde parte da classe estudantil, intelectuais e líderes sindicais se programavam para viajar a fim de ouvi-lo.
          Embora não tenha podido ir a Quayaquil para o histórico encontro de Fidel com o presidente José María Velasco Ibarra, li quase tudo o que a respeito era publicado em Quito. No dia da chegada alguns jornais traziam mensagens do Partido Comunista, de organizações de esquerda e sindicais saudando o visitante e sugerindo que se abrissem os caminhos para reatar as relações diplomáticas entre os dois países. No dia seguinte, um domingo, jornais, rádios e canais de televisão noticiavam a recepção de milhares de equatorianos ao ilustre comandante. A conferência de imprensa, dada por Fidel no aeroporto, marcou o primeiro grande momento de sua visita. Nessa interlocução Fidel chegou a ser aplaudido pelos jornalistas, quando colocou e justificou o processo revolucionário cubano. Respondeu com objectividade e conteúdo, enquadrou as perguntas capciosas feitas por alguns jornalistas, encarou com segurança e tranquilidade as provocações e  afirmou, com todas as letras, que a OEA era uma cloaca. Sobre a leitura que fiz  do longo discurso de Velasco e, do mais longo ainda, de Fidel, guardo ainda comigo um recorte de 5 de Novembro de 1971 do jornal “El Comércio” de Quito onde hoje releio as corajosas colocações de Velasco e onde “vejo” o dedo que tantas vezes Fidel colocou nas feridas abertas da América Latina, questionando como seria o nosso amanhã. Contudo, suas palavras mais comoventes estão na resposta que deu ao presidente equatoriano sobre a delicada questão dos fuzilamentos havidos em Havana logo depois da vitória da Revolução. Daquele longo discurso, como soem ser os pronunciamentos de Fidel, deixo aos leitores interessados, numa nota, apenas essa parte de sua fala, para que tomem conhecimento, como eu tomei, da outra versão dos fatos, bem diferente daquela que nos passaram as fontes capciosas do imperialismo. (4)
          Sobre esses fatos, que ocorreram há quarenta anos, informo que a rápida passagem de Fidel pelo Equador e pelo Peru surgiu no caminho da visita oficial de três semanas que fez ao Chile, num explícito gesto de solidariedade ao governo socialista de Salvador Allende. Quanto a “escala técnica em Lima e Guayaquil”, era um fato inusitado e que claramente incomodava o Pentágono, e a seus submissos aliados no continente.   Neste contexto geopolítico era animador ver a posição dos dois Velascos. Embora o reatamento das relações do Peru com Cuba somente fossem celebradas em Julho de 1972, era previsível e até natural uma visita circunstancial ao Peru. Na verdade, o namoro ideológico entre Lima e Havana já começara  em 1968 quando o general Juan Velasco Alvarado tomou o poder em 1968, nacionalizou as petroleiras norte-americanas La Brea e Pariñas, colocando-se em franca rota de colisão com os Estados Unidos. O que não era previsível, dentro do “quintal” dos Estados Unidos, era uma visita ao Equador. Eis porque foi tão aplaudida a coragem de Velasco Ibarra, ao convidar Fidel Castro, diante da pressão da embaixada norte-americana em Quito, que tentou impedir o encontro, e da oposição de setores militares e da oligarquia equatoriana. Foi também admirável a coragem com que dignificou seu discurso. Por um lado, pela imagem de soberania e  independência em que colocava o país, no contexto de submissão ao imperialismo em que vivia o continente naqueles anos, e, por outro, por expressar oficialmente sua admiração pela Revolução Cubana e condenar publicamente a injustificável exclusão de Cuba pela OEA, posições tão raras entre os estadistas da América Latina, na época e ainda hoje.
          A visita de Fidel teve também seus momentos de humor e de risadas. Lembro-me até hoje de uma passagem anedótica que foi muito comentada nos dias seguintes entre os habitantes e rodas de amigos. Contava-se que depois da seriedade dos discursos,  durante o jantar de confraternização das comitivas, em que o rigor do protocolo foi quebrado,  Fidel, descontraído, perguntou ao anfitrião: Com uma comida tão boa, por que você é tão magro, Dr. Velasco?
          Hoje, quarenta anos depois, é difícil fazer uma reflexão sobre a grande importância que o acontecimento teve na época, já que naqueles anos vivíamos bi-polarizados pelo contexto da “Guerra Fria” numa década em que, na América Latina, os governos seguiam a cartilha do Departamento de Estado norte-americano e a classe estudantil, a intelectualidade de esquerda e algumas lideranças populares estavam identificadas com os movimentos revolucionários que actuavam no continente e com a vigorosa aura ideológica da Revolução Cubana. Digo que é difícil essa reflexão porque nesses dias de 2012, quando se fala em Cuba, qualquer interpretação crítica honesta deve levar em conta a questão dos direitos humanos, mas sem discriminação. Nesse sentido qual país da América Latina ou da Europa está isento de pecado para atirar a primeira pedra no regime cubano? Ante essa visão maquiada sobre Cuba, -- que há décadas nos foi imposta pelo governo que mais violou os direitos humanos na história -- os chocantes relatórios da Amnistia Internacional falam mais alto e mostram, com dados e a memória dos fatos, que Cuba está muito longe de ser o lobo mau dessa história.  Quero deixar claro que sou visceralmente contra qualquer violação dos direitos humanos e, a despeito da minha ideologia, nesse tribunal não absolvo nem romanos, nem cartagineses. Contudo, ante essa reaccionária retórica das violações, é imprescindível sempre relembrar o que significou o ultraje aos direitos humanos aqui na América do Sul, onde somos os campeões do mundo, e onde a justiça de transição tem denunciado o que foram as ditaduras do Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai, a da Bolívia, de Hugo Banzer e a do Peru, de Alan García.
A passagem de Fidel pelo Peru e pelo Equador certamente se cumpria no contexto da nova estratégia cubana para o continente, já que nos anos 70, Fidel Castro abandonou a via armada e passou a considerar a via política  -- que levara o partido socialista ao governo do Chile  -- como uma nova estratégia para combater o imperialismo, presentes nas revoluções nacionalistas de Velasco Alvarado no Peru e de  Omar Torrijos no Panamá.
O encontro histórico com Fidel foi sem dúvida um arriscado gesto de coragem de Velasco, do qual  deduzia-se, por um lado, a aproximação com Cuba para um próximo reatamento diplomático e, por outro, uma demonstração de força política ante os sectores reaccionários das forças armadas. Não foi preciso esperar muito tempo para se recolocar a ordem no “quintal” do imperialismo. Três meses depois de receber o comandante cubano, Velasco Ibarra foi deposto pelos militares. O grande caudilho estava no seu quinto mandato presidencial. Perdeu o poder, mas ganhou na história. Esse foi o preço de sua coragem. " Manoel de Andrade, in  " NOS RASTROS DA UTOPIA, Uma memória crítica da América Latina nos anos 70", Ed. Escrituras

(4) -  (...) El Presidente ha abordado algunos temas que nosotros nos consideramos en el deber de abordar también, y abordarlos con la franqueza que nos ha caracterizado siempre. Se abordó aquí la cuestión relacionada con los fusilamientos. Todo esto tiene una explicación. La historia de nuestros países la escriben en otros países. La historia de la Revolución Cubana ha sido escrita por agencias internacionales al servicio de los monopolios.
     No tenemos ni la más remota intención de negar que en nuestro país los Tribunales Revolucionarios han fusilado. No tenemos la menor intención siquiera de expresar el menor arrepentimiento, ni rehuir el menor átomo de responsabilidad por lo que nuestro pueblo, en defensa de su soberanía y de su vida, se vio en la necesidad de hacer.
     Se contó la historia de los hombres que fueron pasados por las armas. Pero no eran humildes obreros, no eran campesinos sin tierras, no eran limosneros, no eran santos, no eran sacerdotes, no eran hombres honrados. Eran sencillamente asesinos, y asesinos además de la peor especie,. que en determinado momento de lucha, durante siete años de combate contra la tiranía batistiana, cometieron las más incalificables fechorías; asesinatos en ocasiones masivos, de 60 y 70 personas; asesinatos de hombres, de mujeres, de niños, de madres; que quemaron decenas y decenas de miles de casas y, en ocasiones, las quemaron con sus moradores dentro de ellas.
     Y no sólo eso, no sólo fue necesario ajustar cuentas que demandaba el pueblo, porque nosotros dijimos siempre al pueblo: no queremos venganza, no queremos hombres arrastrados por las calles, no queremos desórdenes, porque los culpables de los desórdenes, los culpables de las vindictas populares son los que preconizan el asesinato y el crimen. Y nosotros le decíamos al pueblo: habrá justicia, por eso no queremos venganza. Y le pedimos al pueblo: cuando la Revolución triunfe, no queremos una casa saqueada, no queremos un hombre ajusticiado por la mano popular, sin juicio, sin pruebas. Y desde la guerra, ya se establecieron las leyes revolucionarias en virtud de las cuales serían sancionados los asesinos.
     Pero se fusiló no sólo a los esbirros de aquella guerra. Nuestro país siguió en guerra durante muchos años.
Nuestro país todavía está virtualmente en guerra. Cuando triunfa la Revolución, comenzó entonces otra forma de guerra —experiencias que ha vivido Cuba—: cientos de infiltraciones de armas y de agentes y espías organizados, entrenados y armados por la CIA; cientos de lanzamientos de armas en paracaídas; organización de bandas armadascontrarrevolucionarias en todas las provincias del país; organización, entrenamiento y planeamiento de ataques exteriores desde bases en Centroamérica, Guatemala, Nicaragua; ataque a nuestra patria con aviones disfrazados com las insignias cubanas, B-26 cargados de bombas que llevaban la bandera cubana pintada en sus alas y en su cola.
     Nosotros presenciamos en un momento determinado cómo esos aviones lanzaron el ataque sobre una de nuestras bases aéreas. Y no podremos olvidar jamás las circunstancias de Girón, cuando un batallón avanzaba por una carretera y algunos de aquellos aviones pasaron por encima de las filas de nuestros combatientes, incluso movieron las alas y los saludaron y recibieron el saludo de nuestros soldados, y dieron una vuelta, y en medio de la carretera, sin ningún lugar de protección, los ametrallaron a mansalva y las bombardearon, costando decenas de vidas.
     No podremos olvidar los casos de tiendas incendiadas, de mujeres que se quemaron vivas en esas tiendas; de la explosión del vapor “La Coubre” con armas que venían de Bélgica. Porque nosotros al principio de la Revolución intentábamos comprar algunas armas en los países occidentales, precisamente para que no se tomara de precia, texto ningún tipo de relación con países del campo socialista para justificar las agresiones contra nosotros. ¡ Explotar un barco!
     No se nos podrá olvidar aquella tarde que estando nosotros.en las oficinas del Instituto Nacional de la Reforma Agraria, escuchamos un estremecedor estampido que hizo temblar el edificio, situado a kilómetros de distancia, y vimos la columna de humo que se levantó desde el puerto donde se estaba descargando un barco con miles de toneladas de explosivos, que barrió literalmente a decenas de obreros y soldados de los muelles. No podremos olvidar la segunda explosión que barrió también con los que fueron a prestarles los primeros auxilios.
     No podremos olvidar las decenas de campesinos asesinados por las bandas mercenarias; estudiantes alfabetizadores torturados y asesinados, de maestros que estaban enseñando en los campos. No podremos olvidar la cantidad de crímenes y de fechorías que cometieron.
     Recordábamos recientemente, en una exposición del Ministerio del Interior sobre las distintas tareas realizadas por los hombres de ese ministerio, una exposición, por ejemplo, del armamento con que en una ocasión se preparaba un atentado contra nosotros, una colección de armas automáticas, bazucas, cañones sin retroceso, granadas de mano, uno de los tantos planes de atentados organizados por la CIA. ¿ De dónde habían salido esas armas? De la Base de Guantánamo, suficientes no para matar un  hombre: ¡ para matar un elefante, a una docena de elefantes, a un centenar de elefantes.
      Esas cosas naturalmente no las publican los cables: de una base que está ubicada en un pedazo de nuestra tierra, que por la fuerza se nos la impuso, después de que disminuyeron la independencia de nuestro país, después de que le impusieron una Enmienda Platt con derecho a intervenir.
     Y nuestro país no ha estado luchando contra un enemigo pequeño: ha estado luchando contra un enemigo poderoso, el más poderoso país imperialista del mundo, que con toda su técnica, todo su dinero, todos sus recursos, hizo lo indecible por aplastar nuestra Revolución, y no por nacionalizar el cobre o el petróleo: sencillamente por hacer una reforma agraria y porque aquellas tierras eran de empresas norteamericanas.
      Ese tipo de lucha ha tenido que seguir nuestro país. Y nosotros teníamos que defender a nuestro pueblo, a nuestros obreros, a nuestros estudiantes, a nuestros trabajadores, a nuestra patria, contra aquel tipo de traidores, que desde el exterior, mandados por el exterior, organizados desde el exterior, realizaban todo este tipo de fechorías contra nuestro pueblo.
     Era el más elemental deber ajustar cuentas con tales criminales, y no hacerlo habría sido una cobardía, no hacerlo habría sido una responsabilidad muy grande. Por eso, no eran obreros masacrados, campesinos masacrados, como lo hemos visto tantas veces en los pueblos. Los que contaron tales historias de los fusilamientos, no dicen uma sola palabra de las fechorías que cometen por el mundo, de los cientos, de los cientos de miles de toneladas de bombas lanzadas contra un pequeño pueblo como Vietnam, de la matanza de My Lai. ¿ Qué se sabe de los cientos de miles, millones de mujeres y niños asesinados en la guerra contra un pueblo pequeño, por el país mas industrializado del mundo, que ha lanzado sobre esa pequeña nación dos veces más bombas que las que se lanzaron en la Segunda Guerra Mundial? ¡Ah!, de eso no habla la reacción, de eso no hablan los fascistas, de eso no hablan los aliados del imperialismo. Y pretenden erigir en mártires prácticamente a los canallas que contra nuestro pueblo cometieron tales fechorías.
     Y por eso digo hoy que nuestro deber se cumple y se cumplirá. Nuestro pueblo se ha defendido con valor, con dignidad. Ha pasado peligros muy grandes, muy grandes; no sólo invasiones mercenarias, sino que en determinado momento nuestro país estuvo amenazado por decenas de cohetes nucleares. Y yo pregunto ¿ qué país pequeño como el nuestro se ha visto en situación tan difícil, como la que se vio en la Crisis de Octubre? Y nuestro país, puedo decirlo aquí, no estaba dispuesto a ceder un ápice, no cedió un ápice. Puedo decir más: el 26 de octubre nuestras baterías-antiaéreas abrieron fuego contra los aviones yanquis que en vuelo rasante estaban volando sobre nuestro territorio, en plena Crisis. Y puedo decirles algo más, para que se tenga una idea de la dignidad de nuestro pueblo: que no hubo un solo cubano que vacilara, no hubo un solo cubano que temblara, porque las motivaciones de nuestropueblo han sido muy profundas, la defensa de su causa ha sido algo muy sentida. Y ese pueblo tiene tal sentido de la dignidad y de la justicia que habría estado dispuesto a morir, a desaparecer de la faz de la tierra. Y los pueblos solo llegan a tales determinaciones cuando defienden realmente una causa justa, cuando defienden realmente la patria, cuando tienen motivaciones profundas. Ese pueblo, y con ese pueblo, nosotros, los dirigentes, nos responsabilizamos por las medidas de justicia revolucionaria que se han tomado, y de lo que pudiéramos lamentarnos realmente es de que hayan quedado en el mundo tantos criminales y tantos asesinos sin recibir la sanción ejemplar que se merecían.
      Esa es nuestra posición y seguirá siendo nuestra posición. Pero muy lejos de albergar en el sentimiento de ese pueblo actitudes crueles. Es preciso que se sepa que en nuestro país, enfrentándose a tales organizaciones de la CIA, nunca se ha torturado a un hombre, ¡ nunca! Pero por eso mismo se han desarrollado la inteligencia, la capacidad y la moral de los hombres que combaten al enemigo. Nosotros nos apoyamos en las masas. Tenemos el pueblo unido, las masas organizadas, y en nuestro país no se puede mover ni una hormiga contrarrevolucionaria; y lo que hagan lo sabemos. Y por eso siempre tenemos las pruebas en la mano, los argumentos, las razones. Pero jamás en nuestro país se ha torturado a un hombre. En nuestro país se aplican las leyes acordadas por el Gobierno Revolucionario y mediante el Tribunal Revolucionario, no se asesina a nadie y además no se tortura a nadie, no se pone jamás la mano sobre un hombre. Porque una de las cosas que aprendimos en la lucha revolucionaria a detestar, a repudiar, fueron las torturas, las cobardías. El recuerdo de miles y miles de revolucionarios torturados de las maneras más atroces, creó en nuestro pueblo una conciencia tremenda contra tales actos inhumanos, contra tales actos cobardes. (...)
 5- Como o Brasil, por exemplo, onde o governo sanguinário de Emílio Garrastazu Médici ia deixando, friamente, o rastro indelével da tortura, morte e desaparecimentos de presos políticos, cujas denúncias internacionais abalaram a imagem do país em todo o mundo, o que não impediu que o ditador fosse recebido, em dezembro daquele ano, pelo poderoso chefão do império, Richard Nixon.
Manoel de Andrade, poeta brasileiro,  escreveu as memórias da sua diáspora libertária ao longo de 16 países da América Latina, na década de 70. Nessa época, tempo  de terríveis ditaduras,  Manoel de Andrade  foi obrigado ao exílio. Esta obra memorialista que tem como título " NOS RASTROS DA UTOPIA, Uma memória crítica da América Latina nos anos 70" será apresentada  em Curitiba, Brasil, no próximo dia 19 de Março. A edição tem a chancela da Editora Escrituras de S. Paulo.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

O dia maior da nossa vida


O dia em que nasceste
Não foi o dia sublime que qualquer mãe deseja , mas  foi  o dia maior da nossa vida. Estava exangue, num pavor  que acomete sem que remédio o acalme. A  guerra imperava , desordenada , desvairada sem frentes delineadas. Estávamos nesse fogo cruzado. E tu anunciaste a tua vinda . O medo de não te proteger acordou avassalador . A alegria de te receber vinha embrulhada de perigos insondáveis  e iminentes. Urgia ter-te e aninhar-te nos meus braços. Talvez o único gesto que me  era possível nesse tempo. Defender-te no dia em que me saudavas.  Dar-te os primeiros melhores momentos do dia inaugural da tua vida.
Vencemos. Chegaste e foste o meu sorriso, a minha esperança , a glória que vence  a dor num dia medonho de batalhas infames.
A guerra foi-se . Eis-nos , hoje , apaziguados celebrando esse dia que nos fez amar-nos para sempre.
Parabéns , meu filho.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Patagónia, começo e fim de mundo

(fotos: divulgação)
Crónica de viagem
Por Frederico Füllgraf
"A Patagónia é um mito, foi e será território alimentador de mitos. Para mim, até o dia da minha primeira incursão, foi sempre território imaginário, tão distante, misterioso e intangivel como o Grande Deserto da Austrália ou a Ferrovia Transsiberiana, com alguma aura mal afamada de Velho Oeste, isto é: natureza em estado bruto, terra de ninguém, terra sem lei, arrancada aos povos autóctones ao custo de desmedida truculência. E com uma história escrita pelos vencedores. Há muito tempo eu sentia uma espécie de "chamamento", e à medida que fui  me internando no território que o espelha, o das narrativas, entendi que esse "chamamento" impulsionou todos os que baixaram a estas terras inóspitas. Como diz Guillermo Saccomano, ensaista argentino (Narrar al sur) exploradores espanhóis e holandeses, naturalistas ingleseses e franceses, religiosos italianos, colonos galeses, estrategas argentinos e milionários norte-americanos parecem ter coincidido, ao longo de quase cinco séculos, de que ali está o que buscavam: um lugar estratégico, a chave para desvendar uma charada científica, um recurso natural e uma beleza extasiante que vão se extinguindo no resto do planeta, uma Cidade Encantada, na qual abunda o ouro, e também certa ideia da vida eterna, que já não espanta mais ninguém. 

Embora os 700 mil km2 da Patagónia oriental (argentina) actualmente não abriguem mais de 1,0 milhão de moradores, seu território-país já é citado por Antonio Pigafetta, escrivão-de-bordo de Fernão de Magalhães, durante a circunavegação do estreito homónimo, menos de trinta anos após a “descoberta” do Brasil. E o apressado Pigafetta é o (ir)responsável por grande parte da mistificação etnográfica e paisagística que definirá a historiografia deste mundo finis terre, já que o nome Patagónia remonta à etimologia “patagones” (= pés grandes), que o cronista italiano concedeu aos primeiros índios avistados. Melhor: imaginados pelos espanhóis, porque das grandes pegadas, marcadas na areia de algumas praias, os navegadores teceram logo associações com o tamanho dos pés, e outros membros de seus titulares. 
Quando, porém, o primeiro índio Tehuelche subiu a bordo de uma das caravelas, desatando os nós do grande pedaço de couro de camelídeo que usava para proteger-se do frio, o estrago já estava feito, digo, Caliban já estava incorrigivelmente descaracterizado e baptizado. Daí, à crença de que neste fim de mundo as árvores nasciam com as raízes para o céu, e os rios corriam cordilheira acima, foi um passo no imaginário quinhentista - motivo pelo qual nos mapas medievais o mundo ao sul do Equador figurava de ponta-cabeça, e o Papa relutava em aceitar a humanidade de seus habitantes bárbaros; vai ver, tinham as vergonhas fora do lugar! 
E começa a viagem

Naturalmente, de qualquer parte do planeta pode-se alcançar distintos pontos da Patagónia de avião, mas neste caso ela se se esconde. não se revela. Eu fiz a viagem de carro, a partir de Buenos Aires, descendo a costa atlântica, e retornando pela Cordilheira dos Andes. Geógrafos e geólogos brigaram durante um século inteiro, até definirem o mapa da actual Patagónia, compartilhada pela Argentina e pelo Chile. Do ponto de vista físico, ela compreende, na Argentina, o imenso território (800 mil km2) ao sul dos Rios Limay e Colorado, estabelecendo uma fronteira ecossistêmica com a pampa ao norte, e em sentido oposto derramando-se até a Terra do Fogo e o Canal de Beagle, no sul. Em sentido leste-oeste, a Patagónia Argentina, ou Oriental esparrama-se desde o Oceano Atlântico (com 1.770 km de costa) até a Cordilheira dos Andes (com 1.920 km de cadeias montanhosas), sobre o território das províncias de Neuquén, Rio Negro, Chubut, Santa Cruz e Terra do Fogo & Antárctida. Em território chileno, a Patagónia estende-se desde o Lago El Laja, ao norte, até o Estreito de Magalhães, no extremo sul. Politicamente, dois terços encontram-se em território argentino e aprox. um terço em território chileno.
Nas pistas de Darwin, Tschifelly e Chatwin
Aimé Tschiffelly
Meu primeiro olhar sobre a Patagónia foi guiado por um estrangeiro, o escocês Bruce Chatwin. Depois de ler sua crónica In Patagónia – espécie de narrativa “cubista”, como pretendia seu autor, mas aceita com muitas reservas na Argentina - a viagem para o subcontinente fantástico era apenas uma questão de tempo. Apesar da abordagem "novelesca" e deformadora do observado por Chatwin, emocionou-me seu despojamento, determinado a percorrer inóspito a bordo de desconfortáveis trens, ónibus, ou como carona de caminhoneiros, em meados da década dos 70. 
Nesta primeira incursão, me fez companhia uma namorada, e Iniciamos nosso roteiro a bordo de um atrevido fordinho Fiesta (o jeep 4x4 que havíamos encomendado por fax, já havia sido alugado), baixando a costa atlântica pela Ruta Nacional (RN3), que desde Buenos Aires cruza 700 km do pampa até Bahia Blanca. E aqui, sem sabê-lo ainda, nos internamos no território de um viajante mais antigo: a rota costeira descrita em "Sur" (www.amazon.com/This-Way-Southward-Patagonia-Equestrian/dp/1590480147), do suíço Aimée Félix Tschiffely. Professor de matemática em escolas britânicas na Argentina da década dos anos 20, e viajante obsessivo, Tschiffely quebrara o recorde mundial com uma cavalgada com duração de três anos, de Buenos Aires até o centro de Manhattan, em Nova York. De volta daquela odisseia, já em 1936 decidiu embrenhar-se em sentido oposto, rumo à Patagónia. 
Contudo, a "monotonia estranhamente maravilhosa" do pampa de Tschiffely estava fora de lugar. Os românticos boliches (botequins) foram substituídos pelos Cafés ou lojas de conveniência 24 horas, arranjados e decorados segundo o figurino globalizado, mas permanecera o hábito dos nativos de comer uma parillada, o churrasco argentino, que à beira da RN3 é servido ao lado de quase todos os postos de gasolina, como em Azul. Aqui, debruçado sobre o mapa rodoviário, cujo labirinto tentávamos entender, fomos invadidos pela doce indiscrição de um nativo e sua família que, preocupados em apontar-nos o caminho correto, enterrariam para sempre o preconceito brasileiro do "argentino descortês". 
O aprendizado das cores

Até a Sierra de la Ventana, tudo parece encaixar ou perder-se harmonicamente no imenso tapete verde, até que numa curva inopinada surge do nada um grande "remendo" amarelo de girassóis translúcidos, dando as costas ao poente - Van Gogh que nos perdoe, mas os girassóis do pampa são mais luminosos que os da Holanda! Principalmente quando projectados contra a abóbada celeste, de matiz azul diáfano, com suas bizarras formações de nuvens comprimidas ou rasgadas pelo vento, que já sopra forte. Gaviões e falcões são frequentes companheiros de estrada, voando em círculos elegantes até - pasme-se! - serem caçados por bandos de valentes andorinhas. Bahia Blanca, ruidoso centro provinciano de 500 mil habitantes, no extremo sudoeste da província de Buenos Aires, mantém abertas as feridas de uma Argentina outrora pujante. Seu mais alto índice de desemprego do país, e a miséria em sua periferia escondem gloriosos tempos que não voltam mais. No decadente, mas charmoso salão do Hotel Muñiz, ainda é possível respirar lufadas imaginárias das glamurosas décadas de 30 e 40, quando este era o ponto de animadas tertúlias de ricos estancieiros e exportadores de lã e frutas; as “manzanas de Rio Negro” de nossas infâncias.
De Bahia Blanca a Viedma são outros 300 km, com a travessia da província de Buenos Aires para a de Rio Negro, e o cruzamento da desembocadura do Rio Colorado; a fronteira molhada do norte da Patagónia. Aqui o viajante tem duas opções: seguir pela RN 3, cortando caminho até San Antonio Oeste, no Golfo de San Matias, ou tomar a Ruta Provincial (RP) 1, acompanhando o Rio Negro até sua desembocadura no Atlântico, em El Pesadero. Foi o que fizemos. Distante 65 km de Viedma, alcança-se a lobería (reserva de leões ou lobos marinhos) Punta Bermeja, onde termina o asfalto da RP 1, devendo-se percorrer aprox. 180 km de estrada de rípio (cascalho e muito pó) para chegar-se ao trevo rodoviário de San Antonio Oeste, com o reingresso na RN 3.
E no meio do caminho, lá estava a deslumbrante Bahia Creek, paisagem escarpada com praias desertas de areia negra, vulcânica. Refúgio que incita ao recolhimento contemplativo, Bahia Creek é a iniciação do viajante no aprendizado das cores da Patagónia, cujos espectro e matizes não existem sob o céu tropical. A magia do pôr-do-sol insistia em deixar marcas para o resto da vida. Ela, a namorada, tirou a roupa, desnudando-se; sua pele beijada pela maresia gelada, e pintada com as cores de um arco-íris austral.

Percorridos à noite e sem a devida atenção ao nível do combustível, os 180 km restantes da RP 1, podem transformar-se em presságio, pois até San Antonio Oeste não há postos de gasolina, nem mesmo viv'alma que possa prestar auxílio. 
A única atracção desta pacata cidadezinha de 11 mil habitantes é a Praia de Las Grutas, que por sua localização no saco do Golfo San Matias, tem as águas oceânicas mais quentes e transparentes da Argentina, próprias para o mergulho. A curiosidade histórica é que em seu apogeu San Antonio Oeste foi o entroncamento da Rede Ferroviária Federal Argentina (Km Zero: Plaza Constitución, Buenos Aires) com a Ferrovia da Patagónia, iniciada aqui em 1908, e concluída em San Carlos de Bariloche em 1934, tornando-se o principal porto de exportação da cobiçada lã dos rebanhos ovinos da Argentina.
El Desierto
O ingresso na Estepe Arbustiva Patagonica, popularmente conhecida por el desierto, é um vislumbre de eternidade. Contudo, quando a viu em 1832, Charles Darwin disse: “terra maldita!”. Muito depois admitiu seu arrebatamento. Já Guillermo H. Hudson, argentino de origem também inglesa, visita a Patagônia em 1860. Em seu livro, Días de ocio en la Patagonia, tenta fazer Darwin entender "que viajantes do deserto descobrem em si mesmos uma calma primordial (familiar ao mais simples dos selvagens), que talvez seja o mesmo que a Paz de Deus..."

Partindo de San Antonio Oeste rumo a Puerto Madryn, 250Km ao sul, é esta a paisagem majestosa, misteriosa e sobretudo digna, que acompanha o contorno do Golfo San Matias. É o fim da tonalidade verde. Em seu lugar, desdobra-se um infindável tapete incendiado de manchas, nas tonalidades amarela, mostarda, salmão, ocre, bordô e sépia, refletidas por plantas de nomes exóticos como molinum spinosum, xerófilos, poa , festuca e stipa. São as únicas espécies vegetais capazes de oferecer resistência às brutais intempéries da estepe; o sol inclemente, as nevascas do longo inverno, as rajadas do vento incessante. 
A "península grávida"
A 20 Km de Puerto Madryn está o acesso à Península Valdés, santuário da fauna marinha, único no mundo. Valdés é uma experiência inesquecível, que rompeu as fronteiras da Argentina e ganhou continentes. As baleais Franca Austral (12-16m), os elefantes marinhos (machos: até 4.0 t de peso), os leões marinhos de um e dois pêlos, e os pinguins magalhânicos adoptaram-na como refúgio de reprodução, acasalando, parindo, alimentando suas crias, e transformando Valdés na "península sempre grávida". O ponto de concentração dos elefantes marinhos é a praia alcantilada de Caleta Valdés Sur. Antes das alterações climáticas em curso, manadas de elefantes marinhos dirigiam-se para Valdés em Outubro, agora já se pode vê-los em Setembro, ou até mesmo em Agosto. Seu comportamento no mar é frequentemente monitorado por uma fundação argentina conveniada com a ONU. Exímios nadadores e mergulhadores (submergem até 800m de profundidade e têm fôlego para 40 minutos), os elefantes marinhos de Valdés constituem a única colónia da espécie no mundo, cuja população está aumentando. 
Visitei a península pela primeira vez em Outubro de 1996, em missão de pré-produção de um filme documentário para a TV Suíça. Seu tema era a observação científica do comportamento destes textuais paquidermes, que além dos leões marinhos constituem um dos pratos predilectos das baleais Orca. Espectáculo raro, porque de duração alucinantemente rápida, e já transformado em atracção turística de forte apelo voyeurista, pode-se testemunhar aqui o ataque das Orcas aos filhotes dos elefantes. Mas comparado à matança, a pauladas, de 250 mil a 300 mil lobos marinhos pelos caçadores ingleses no sul da Argentina, entre 1910 e 1960, o ataque de uma Orca pode ser definido como exemplo cruelmente ecológico de desenvolvimento auto-sustentado das espécies. Em Puerto Pirámide, na entrada da península, floresce um segmento turístico comercial para a observação de baleias. Vendida ao visitante como "turismo ecológico", a observação ou "avistagem" ameaça reverter-se no seu oposto anti-ecológico, por constituir-se em assédio estressante para os animais. 
Biombos na praia
A chegada a Puerto Madryn (45 mil hab.) mexe com os emoções. A tintura aveludada do seu mar azul e dos alcantilados de pátina beje-amarelada não têm registo em nossa memória espectral, e nos deixa psicologicamente desarmados; experiência que se repetirá no contacto com os grandes lagos da Cordilheira dos Andes. Madryn foi onde começou a colonização galesa, em 1865, graças à qual a Argentina ganhou territórios na Cordilheira dos Andes, até então virtualmente dominada pelo Chile. 
Localizada no Golfo Novo, ao sul da Península Valdés, a pequenina cidade costeira é formada por enseadas com formosas praias de areia negra (mas águas de temperaturas polares!), e tem excelente estrutura hoteleira. Uma curiosidade que incita às gargalhadas, mas capaz de rapidamente adaptar brasileiros aos costumes nativos, são os biombos armados na praia pelos veranistas argentinos, para proteger-se do vento, que sopra sem parar, levando de roldão guarda-sóis, cadeiras de praia, chapéus e o próprio veranista... Em 1997, a secretária de turismo de Madryn comprara uma briga feia com o governo federal, ao denunciar publicamente o polémico plano do presidente contraventor, Carlos Menem, de instalar um depósito internacional de lixo nuclear, fortemente radiativo, em Gastre, no interior da província. Celebrizado por suas “relações carnais” com os EUA, Menem pretendia granjear a simpatia do primeiro mundo, ao receber dele, o que suas populações rejeitavam. Mas a população da Patagónia solenemente rejeitou o lixo dos outros, e resistiu com sucesso contra o conluio. 
A despedida de Madryn, de sua gente, seu mar e suas cores, é um aperto no coração, que na Patagónia não tem tempo de preparar-se para emoções em cascata. A próxima chamar-se-á Gaiman, distante 110km de Madryn. Por indicação dos índios Tehuelches, o lugar (4.000 hab.) foi fundado em 1865 pelos primeiros colonos galeses, no vale do Rio Chubut, por constituir-se no único manancial de água; recurso hoje cada vez mais escasso na região. Relaxar no final de uma tarde, acompanhado do chá galês, guarnecido de uma infinidade de pães e tortas caseiros, como a mundialmente famosa e imperdível Torta Galesa, numa casa de chá como "Plads & Coeds", é combustível apropriado para uma emocionante viagem à ré no tempo, e comprometer o tempo e a continuidade da própria viagem, rumo ao sul; principalmente se a dona da casa, como dueña Marta, for descendente das linhagens fundadoras dos Lewis, Edwards ou Jones. 
Os galeses de Friedrich Engels
Algum mestre taoista disse certa vez, que o sentido de qualquer viagem é o próprio caminho, e na expectativa da experiência romântica, frequentemente nesta trilha o caminhante se depara com uma matéria-prima da História: a tragédia. É o caso de Gaiman e das outras colónias galesas na Patagônia. Coube a Guillermo Saccomano lembrar-se de um clássico da Economia Política, que no séc. 19 descrevia o trabalho semi-escravo na minas inglesas de carvão, ferro, chumbo e estanho, que consumiram as v idas de milhares de homens, mulheres e crianças. Aos sete anos de idade, os meninos já penetravam nos túneis, e entre os trinta e cinco e quarenta, suas vidas desvaneciam. Morriam de doenças respiratórias, atrofias musculares, e acidentes. O horário excedia as doze horas por turno, nas profundezas de uma passagem estreita e húmida, transportando nas costas os metais extraídos das galerias. Quando os garotos chegavam em casa, anota o célebre cronista, se atiravam no chão de pedra, junto à chaminé, e desfaleciam em sono profundo. Não tinham forças nem para levar a comida à boca. Seus pais banhavam-nos enquanto dormiam, e dormindo arrastavam-nos para a cama. Febris, esgotados, quando tinham o domingo de folga, permaneciam deitados. Eram poucos os que frequentavam igrejas e escolas. As meninas sofriam dupla opressão, enquanto trabalhadoras e porque eram mulheres, escorraçadas do trabalho depois de darem à luz a uma criança... 
O cronista chamava-se Friedrich Engels – amigo, mentor e co-autor de Karl Marx -, e sua crónica é a tristemente famosa pesquisa intitulada A situação da classe operária na Inglaterra, publicada em 1845 - narrativa tão fria quanto arrepiante, cujos protagonistas eram estes galeses. “É demasiado tarde para uma solução pacífica”, diagnosticava Engels. Contudo, ao invés da rebelião violenta, os galeses deram as costas à exploração brutal, à perseguição religiosa e à mutilação cultural, como a proibição de sua língua, o Gaélico celta, dos mais antigos do mundo. Optando pelo exílio, aportaram na costa da Patagónia em 1865, em busca da terra prometida.
Mal se instalavam na Patagónia, e testemunharam, pasmos, a perseguição dos nativos pelo exército argentino. E aqui talvez ocorra a única experiência de convívio pacífico e até mesmo afectivo, entre brancose índios, em toda a América; crónica na qual índios salvaram a vida de galeses e, inversamente, galeses protegeram os índios das matanças. Emociona-se dueña Marta, contagiando seus ouvintes, quando pesca no pó do deserto de Chubut, o espectro de Sayhueque, elégico chefe Tehuelche, que costumava levar seus antepassados galeses para a caça ao guanaco e ao ñandú, ensinando-lhes a técnica milenar da bolandeira. Enquanto fala, o vento assobia em bemol, parecendo recompor a trilha da Campaña del Desierto - eufemismo do holocausto indígena, de 1879, comandado pelo General Julio Roca. Explica o Guia Turístico YPF (a ex- Petrobrás argentina): "Dá-se este nome à ofensiva militar... que rompeu o nervo da sociedade indígena, pampeana-patagonica, e o correlacionado desfecho violento de um ciclo histórico...". Leio num jornal argentino, que a população de Bariloche exigia a derrubada do monumento de Roca, cujo bronze está definitivamente maculado por grafites acusatórios e indeléveis: "Roca, el carrasco de la Patagonia!". 
O próprio Tschiffely admite que se sentira envergonhado de ser europeu, ao referir-se às façanhas truculentas de seus anfitriões, originários das ilhas britânicas, no sul da Patagónia. De Chubut à Terra do Fogo, a maioria das fazendas patagónias foi amealhada por uma “troca” perversa: “uma légua de terras por cada orelha de índio!" (Gen. Roca). Nem tão nobres farmers ingleses e irlandeses trucidaram índios, amarrando-os sobre blocos de gelo, flutuando nos rios da cordilheira, praticando tiro ao alvo em suas cabeças. Outros, mais subtis, convidavam os nativos ingénuos para um churrasco de ovelha; regado à estricnina. A nação Tehuelche foi extinta, obliterada da paisagem: os homens sobreviventes, integrados ao exército branco, as mulheres tornadas doméstidas semi-escravas, e os filhos, separados dos pais. 
Poema industrial
De volta à RN3, o segmento Trelew - Comodoro Rivadavia exige cuidado especial com o nível de combustível, pois só existem postos de gasolina a cada 150km. Com sorte, cruza-se com algum carro ou caminhão a cada meia hora. Punta Tombo, a maior reserva natural de pinguins do Hemisfério Sul, encontra-se no final da estrada de rípio que conduz à costa, e pode ser imperceptível. Quem a perdeu, deverá intercalar uma pausa no posto de gasolina de Camarones, e seu bar, atendido por alguns descendentes de índios Mapuche, que baptizei de "Patagonia Café" - desértico, sujo, esculhambado, mas comoventemente acolhedor como o "Bagdad Café", no filme de Percy Adlon.
Estranhas aves mecânicas - bombas extractoras de petróleo, chamadas de "cegonhas" - sinalizam ao viajante sua aproximação de Comodoro Rivadavia (150 mil hab.). Em 1997, aqui o litro de gasolina custava apenas ¼ do preço de Buenos Aires, e a medida fora adoptada há muitos anos pelo governo argentino para estimular o aumento demográfico da Patagónia. Projectado contra o sol poente, o sobe-e-desce e o grasnar metálico das "cegonhas" silhuetadas, compõem um fascinante poema industrial sobre o deserto amarelo e a seiva negra que corre em suas veias.
Comodoro Rivadavia é a grande encruzilhada do viandante motorizado, e a última oportunidade de tomar uma decisão sábia. Para quem tem pressa, seguir os 700km pela RN3 até Rio Gallegos, e de lá até a Ilha da Terra do Fogo (mias 900km), pode significar a perda de vários dias preciosos de viagem, através de uma paisagem monótona, com estrada perigosamente retilínea. As opções são tomar a RP 148, asfaltada, que cruza Chubut em direção a Esquel e Bariloche, nos Andes, ou seguir de carro pela RN3 até Rio Gallegos, e de lá - nova encruzilhada - aprumar na direção sul, para a Terra do Fogo; ou, finalmente, no sentido sudoeste, para o Lago Argentino e o Glaciar Perito Moreno. 
Decidimos tomar o avião para Rio Gallegos, e de lá seguimos de ónibus para El Calafate, às margens do deslumbrante Lago Argentino, onde fizemos nossa primeira aproximação com a Cordilheira dos Andes. Com seus 3 mil residentes fixos, El Calafate é o portal de acesso ao Parque Nacional dos Glaciares, cujas 47 geleiras se entrelaçam com florestas selvagens, lagos, montanhas e rios caudalosos. Sua principal atracção turística é a Geleira Perito Moreno, localizada a aprox. 80 km do centro da cidade. Diversas empresas de El Calafate transportam turistas até o parque, mas perde-se muito tempo a bordo dos ônibus, ganhando-se agilidade ao alugar um carro, uma motocicleta ou até mesmo um cavalo. O encontro com a geleira Perito Moreno, desparramando-se dos picos andinos sobre o Lago Argentino, proporciona sensações próximas da vivência mística. Aqui se aprende que em épocas remotas os lagos gigantescos foram geleiras que retrocederam sob o impacto de antigas alterações climáticas. As geleiras actuais são, portanto, modestos cartões de visita do Período Quaternário. Espectáculo ímpar: a cada 48 ou 72 horas, a comporta de gelo do Perito Moreno estacionada no meio do lago, rompe-se sob a pressão exercida pela água na parede principal, de 60m de altura e 4,5 km de largura, e desaba... E agora as geleiras andinas retrocedem sob os impactos do efeito-estufa; desta vez de origem indiscutivelmente antropogénica.
Creio falar também pela ex-namorada, que uma das experiências mais memoráveis dessa viagem foi nossa caminhada sobre a areia negra das margens do Lago Argentino; distantes dos ruidosos treckings e outros anglicismos da moda. Cercado por aves raras e oníricas - cauquenes, patos selvagens, cisnes do pescoço negro e flamingos - tem-se aqui um dos encontros mais desafiadores com as intempéries patagónicas. As rajadas de vento que sopram dos Andes, aqui chegam a atingir mais de 100km horários e a produzir dor de ouvidos; de frio, em pleno verão. Mas a recompensa não tardará, pois Júlio Gutierrez, do "Rick's Café", em El Calafate - que guardava um cartaz original de Casablanca , e que adorava posar para uma foto com seu chapéu à la Humphrey Bogart - prontamente servirá um submarino ou um vinho de boa cepa, acompanhado de jamón crudo. "Frederico Füllgrafescritor, tradutor, jornalista,roteirista, editor do Blog Fullgrafianas.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Ao Domingo Há Música

"Não se pode captar e cingir uma vida como se capta e cinge uma coisa (...). Mas podemos fazer-nos algumas perguntas a seu respeito: como se faz uma vida? qual é nela a contribuição das circunstâncias, da necessidade, do acaso, das escolhas e das iniciativas do sujeito?"
Simone Beauvoir , in "Balanço Final", Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1972, p.10.


Neste Domingo, último de Fevereiro, a escolha vai para a fantástica sinfonia " The Lord Of The Rings". 
Howard Shore , o autor , apresenta-a ao longo deste registo,  enunciando os grandes e pequenos detalhes que escaparam  a quem,  apenas,  visionou a saga cinematográfica.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

A Sabedoria


"(...) digo-te o que descobri. O conhecimento pode ser comunicado, mas a sabedoria, não. Uma pessoa pode encontrá-la, vivê-la, ser fortificada por ela, operar maravilhas por seu intermédio, tudo menos comunicá-la e ensiná-la. Desconfiei disso quando ainda era novo e foi isso que me afastou dos mestres." Hermann Hesse,in " Siddhartha", Minerva, 1997



Aldeia com 2300 anos descoberta em Israel
"Arqueólogos israelitas encontraram uma aldeia nos arredores de Jerusalém, durante a construção de um gasoduto
As ruínas de uma comunidade rural com cerca de 2300 anos de idade foram descobertas por arqueólogos israelitas, nos arredores de Jerusalém, para surpresa de uma companhia de gás que planeava fazer passar pelo local um gasoduto com 35 quilómetros.
A estrutura, de apenas 750 metros quadrados, apresenta vestígios de casas de pedra, unidas por corredores estreitos, incluindo cada uma vários quartos e um pequeno pátio interior.
Os arqueólogos só escavaram ainda um terço das ruínas, mas já encontraram dezenas de moedas, utensílios de cozinha, ferramentas de moagem e frascos para armazenar óleo e vinho.
"Tendo em conta a quantidade de moedas e utensílios, trata-se de uma grande comunidade na dinastia dos Hasmoneus. Ainda não podemos dizer que foi uma aldeia judaica, estamos apenas no princípio da investigação", explica a arqueóloga Irina Zilberbod, diretora das escavações a cargo da Autoridade de Antiguidades de Israel, citada pelo jorqal "El Mundo".
A aldeia, cujo nome ainda é desconhecido, foi habitada durante o período do Segundo Templo de Jerusalém (538 a.C. a 70 d.C.), e fica perto da estrada Burma, uma rota que abasteceu Jerusalém durante a guerra israelo-árabe de 1948.
Os arqueólogos supõem que os habitantes acabaram por abandonar a cidade à procura de melhores condições de vida na capital, à semelhança de outros habitantes de aldeias vizinhas.
"O abandono de vilas e quintas no fim do período Hasmoneus ou no início do reino de Herodes, o Grande, ocorreu em várias localidades rurais na Judeia", diz ao "The Washington Post" Yuval Baruch, diretor da Autoridade de Antiguidades de Jerusalém.
"Pode estar ligado a extensos projectos de construção de Herodes em Jerusalém, particularmente o Templo de Jerusalém, e o movimento de muitos habitantes das zonas rurais para a capital para arranjarem trabalho", acrescenta.
Como resultado da descoberta, a companhia de gás alterou os planos da construção do gasoduto, desviando-o e permitindo que o sítio fosse preservado. A tubagem foi instalada mais abaixo, sob a aldeia, "para que as pessoas a possam visitar", revelou o porta-voz da companhia de gás. " Patrícia Cadete, Expresso

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos

«Coitado do Álvaro de Campos!»
«Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!»
«Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!»
«Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,»
«Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita
«Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
«Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes profissão.»

«Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!»
«Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!»
«E, sim, coitado dele!»
«Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam.»
«Que são pedintes e pedem,»
«Porque a alma humana é um abismo.»
«Eu é que sei. Coitado dele!»
*
«Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,»
«Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto)»
«Depois, ponto vago no horizonte (ó minha angústia!»
«Ponto cada vez mais vago no horizonte
.
Fernando Pessoa, Obra Poética

Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos

(Fragmento)
de Mário Cesariny de Vasconcelos

Há uma hora, há uma hora certa
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa, a sair para, o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente
gente! olhos, narinas,
bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates,
telefonistas, varinas, caixeiros desempregados
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo
aos mictórios para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico, em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua
menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua.


E agora, neste momentoque horas são?
a telefonista guarda o baton na mala pousa os auscul-
tadores liga electricamente Lisboa a Santarém
e começou o dia
o pedreiro escalou para o telhado mais alto e cantou
qualquer coisa
para começar o dia
o banqueiro sentou
se, puxou de um charuto havano,
pensou um bocado na família
e começou o dia
a varina infectou a perna esquerda nos lixos da
Ribeira
e começou o dia
o desempregado ergueu-
-se, viu chuva na vidraça,
e imaginou-
-se banqueiro
para começar o dia e o presidiário, ouvindo a sineta das nove,
começou o seu dia sem dar inicio a coisa alguma.


Agora fumo, trepidação,
correias volantes de um a outro extremo da fábrica
isolada,
cigarros meio fumados em cinzeiros de prata,
bater de portas pás! em muitas repartições,
uma velha a morrer silenciosamente em plena rua
e um detido a apanhar porrada embora acreditem
nele.
Agora pranto e pranto
na bata da manicure apetitosa do salão Azul.
Agora, regressão, milhões de anos para trás,
patas em vez de mãos, beiços em vez de lábios,
crocodilos a rir em corredores bancários
apesar das mulheres terem varrido muito bem o chão.
Agora tudo isto e nada disto
em plena e indecorosa licenciosidade comercial
pregando partidas, coçando, arruinando, retorcendo
o facto atrás dos vidros
um tiro nos miolos e muito obrigado, sempre às
ordens!
(a velha já morreu e no seu leito de morte
está agora um automóvel verdadeiramente aerodi-
nâmico
e a tocar telefonia: and you, and you my darlyng?)
Há uma hora, Isto! Há duas, ISTO!
E eu?


Eu, nada. Eu, eu, é claro…

Paro um pouco a enrolar o meu cigarro (chove)
e vejo um gato branco à janela de um prédio bas-
tante alto
Penso que a questão é esta: a gente, certa gente
sai para a rua,
cansa-
-se, morre todas as manhãs sem proveito nem
glória
e há gatos brancos à janela de prédios bastante
altos!
Contudo e já agora penso
que os gatos são os únicos burgueses
com quem ainda é possível pactuar
vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!
Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a…
Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou
inteiramente o gato
mas de gato para cimanem pensar nisso é bom!
Propalam não sei que náusea, retira
me o estô-
mago só de olhar para eles!
São criaturas, é verdade, calcule-se,
gente sensível e às vezes boa
mas tão recomplicada, tão bielo
cosida. tão ininte-
ligível
que já conseguem chorar, com certa sinceridade,
lágrimas cem por cento hipócritas.

E o certo é que ainda têm rapazes de Arte, gente
que pôs a alegria a pedir esmola e nessa mesma noite
foi comprar para o cinema
porque há que ir ao cinema, ele é por força, é por
amor de Deus, ah, não! não! isso não!, não
se atravessem nesta bilheteira!!
Vamos estar tão bem! Vai tudo ser Tão Bonito!
Ah, e quem é que, vê o logro? A quem é que isto
cheira a ranço?
Porque é que a freguesa de Panos Limitada não exige
três quartas de cinema
e sim três quartas partes pretas de lã carneira?
Porque é que a pianista compra do Alves Redol
quando está a pensar nas pernas e no peito do louro
galã yankee?
E porque raio despede o senhor Director três humí-
limos empregados
quando a verdade é que já lá vão três meses e ainda
não viu um que lhe enchesse as medidas?

Com certa espécie de solidariedade
lembro-me de ti, Mário de Sá
Carneiro,
Poeta gato
branco à janela de muitos prédios altos
Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-te,
para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!
Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto,
viva Mário a laçar um golpe de asa e a estatelar-se
todo cá em baixo
(viva, principalmente, o que não chegaste a saber,
mas isso é já outra história…)


E com uma solidariedade muito mais viva
lembro-me de ti, meu vizinho de baixo,
sapateiro
branco mas no rés-do-chão, desta
vez
É curioso que não te possas suicidar
só porque a tua janela está ao nível do mundo
e que cantes alegremente de manhã à noite
com uma casa de seis andares em encima de ti.
Também tu foste empurrado, também te disseram:
Fora, gato!
Mas achaste isso quase natural (e não o é, deveras?)
E agora, guardando em ti todas as tuas grandes
qualidades
vais vivendo um pouco à margem, um pouco no
quinto andar


Deito fora o cigarro que já me sabia a amargo
e decido-me a andar mas para quê ? Mas para
onde ?
As lojas estão todas abertas mas nunca se viu coisa
tão fechada
Ah! heróis do trabalho, que coisas raras fazeis!
Não sou um proletário vê-se logo
mas odeio cordialmente a gataria
e quanto a crocodilos, nem os do Jardim Zoológico
me atraem
quanto mais estes! E aqui é que começa o em-
bróglio…


O pouco amor que eu tive à burguesia
deixei-o todo numa casa de passe
quando me perguntaram: quer assim ? Ou assim ?
E agora, era fatal, falto ao escritório,
falto ao escritório, pontualmente, todas as manhãs.
Mas vejamos, ó minha alma, se podes, arrumemos
um pouco a casa escura que te deram.

Eu
estudei música, como toda a gente


(ou talvez um pouco mais do que toda a gente?)

Não. Por aqui não nos entenderemos.
Estudemos outro papel. Outro fim. Outras músicas.


Recomecemos: Um:
Estes versos não querem de modo algum ser versos
porque quem hoje em Portugal quer de algum modo
fazer versos versos
está em muito maus lençóis
(este o primeiro artigo da minha constituição)


Segundo:
Apesar de tudo, saí para a rua com bastante natu-
ralidade
e que vi eu? Que é isto? (E que esperava eu ver?)


Terceiro:
(e aqui começa, talvez, o desembróglio)
vi também um vapor que ia para o Barreiro
e tive pena de não ir com ele
mas não sou um proletário (não, ainda não)
e atravessar a nado quem é que disse que pode?


Fiquei-me a vê-lo: primeiro junto ao cais
com um certo ar simpático de proletário dos mares
e apinhado de gente tanta espécie dela!
Depois a meio do rio, destacado e nítido,
depois um ponto vago no horizonte (ó minha an-
gústia ! )
ponto cada vez mais vago no horizonte


e de repente, ao virar uma esquina, já depois de
outra esquina,
vejo uma nova espécie de enforcado
um homem novo em cima de um escadote
a colar afixar cartazes deste género:

VOTA POR SALAZAR
Páro. Páro de novo. Pararei sempre enquanto
afixarem cartazes deste género.
Curioso, curiosíssimo este género.
Um chefe não é grande pelo nome que arranjou.
Salazar Xavier Francisco da Cunha Altinho isso que
importa.
Um chefe é grande ,pelas suas obras, pelo amor que
inspira.
Pois os fascistas os nossos bons fascistas
querem que a gente vote por um nome
por um nome calcula essa coisa qualquer que qual-
quer fulano tem!
Vota por Salazar ora pois ó meu povo
vota por sete letras muito bem arrumadas em três
sí-la-bas.


Deito a cabeça para trás para deixar sair a gar-
galhada
e aproximo-me do homem em cima do escadote
aproximo-me tanto que ele nota
alguém que se aproxima
e o braço cai-lhe, grosso, pingando água num balde

(…)
Mário Cesariny de Vasconcelos, in "Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos",  Edição Fac-similada, Edição/reimpressão: 2009, Ed.  Assírio & Alvim 

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A MÚSICA LÁ FORA

        A MÚSICA LÁ FORA
        Por Eugénio Lisboa
«Não é infrequente serem as virtudes mais profundas de um autor as principais responsáveis pelo seu (ainda que  relativo) esquecimento ou ... provisório abandono. As virtudes cardeais, observava Montherlant, isolam. E, entre nós, o autoapagamento dos discretos e dos nobres é pesadamente facturado pelos que tomam, de roldão, os palcos, as luzes da ribalta e as buzinas da autopromoção. Tem-se visto, vê-se todos os dias. E a náusea que nos assiste não é obstáculo à continuação dos que aos trinta e pouco já publicam a sua Obra  Reunida e dirigem, com autoridade e desplante, a orquestra que promove lá fora a cultura indígena: com mais ou menos falta de conhecimento, mas com muito brio e uma corte sempre prestável e afável.
Saúl Dias, pseudónimo literário de Julio Maria dos Reis Pereira, foi toda a vida um discreto, cantando, com pudor, nos interstícios do silêncio, e vivendo, com igual pudor, nas dobras do retiro. Na pintura, no desenho, na poesia, foi sempre o bardo de uma eloquência discreta e subtil, talvez, por isso mesmo, mais secretamente forte, ainda que menos ruidosamente visível. Observava André Gide que “arte mais subtil, mais forte e mais profunda é aquela que não se dá, logo às primeiras, a ser reconhecida.” No tempo da presença e no discurso dos anos que se lhe seguiram, Saúl Dias/Julio só deu, de comparável à intensidade do seu empenho, a nobre firmeza do seu nobilíssimo apagamento. Eloquente e retórico, pelo menos numa primeira fase (que não sempre), seu irmão José Maria furtava-se aos outros por via do truque duplo de um retiro físico no (então) remoto Alentejo e de um jogo de máscaras com que se esquivava mesmo quando parecia que se entregava. Julio/Saúl usava uma única máscara que o não era: o pudor, o quase silêncio, a discrição levada quase ao limite. Tudo sugerindo aos que se não deixavam facilmente iludir que se tratava de uma riqueza e não de uma ausência: “Ninguém testa a profundidade de um rio com ambos os pés”, reza um provérbio Ashanti. O que tem uma dupla leitura: nem Saúl Dias, via maneira de atingir o âmago das coisas – a profundidade dos rios – a não ser por via de uma aproximação delicada e quase silenciosa, nem nós, leitores, poderemos jamais chegar ao poeta – e ao pintor – a não ser munidos de cautela e subtileza. Por outras palavras, o protocolo com que ele sonda o real só pode ser o protocolo com que nós o sondamos a ele. Num texto publicado em 1967 e mais tarde reunido no seu livro Presença da «presença», esse grande crítico e ensaísta que foi David Mourão-Ferreira observava: “em ambos [Saúl Dias e Julio] se revelam as mesmas raras qualidades, de contenção e de sortilégio, a mesma delicadeza de linhas, o mesmo pudor descritivo, o mesmo poder de elíptica sugestão”. Gide gostava de dizer que a verdadeira arte clássica era uma “arte de pudor e de modéstia”. Assim sendo, a arte de Saúl Dias/Julio verifica o paradoxo de ser a um tempo profundamente clássica, sem deixar de ser a de, ainda nas palavras de Mourão-Ferreira, [a de]” um vulto cimeiro de modernismo português”. É que nele convergem, de modo intenso e feliz, a audácia e o seu freio, o novo e o provado, a alegria e o silêncio, a prudência e a coragem. Diz um personagem de uma comédia de Shakespeare que “o silêncio é o intérprete mais eloquente da alegria.” “Silêncio” deve aqui ser tomado por aquilo que pode ser, numa arte que é feita de palavras, as quais são feitas para o interromper. Em vez de silêncio, leia-se “contenção”, “eloquência amarrada”, aquilo a que George Steiner chamava “o retiro da palavra”. Vejamos este poema, do primeiro livro de Saúl Dias :”As madressilvas / que em Abril florescem airosas entre os brejos / parecem dizer:/ Vede como somos belas! //e os namorados que na estrada passam, abraçados aos beijos,/ erguem os braços para colhê-las...”
Seria difícil com maior economia de palavras (mas judiciosa e jubilosamente escolhidas) sugerir uma tal intensidade de florescimento de vida! As madressilvas emergem, “airosas”, da opressão dos brejos e explodem num canto de libertação: “Vede como somos belas!” E, paralelamente, os namorados deslaçam-se de beijos sensuais mas algo opressores e soltam-se, erguendo “os braços para colhê-las...”A rima discreta mas eficaz, subtil mas actuante, contribui para a explosão de vida e de libertação. Aqui, como em Shakespeare, o silêncio, isto é, o pudor e o retiro são os intérpretes mais eloquentes da alegria.
Já uma vez observei, a propósito de uma poetisa de língua portuguesa que viveu longos anos em Moçambique, frente ao esplendor de uma baía do Índico e cultivando, como Saúl Dias, uma poesia intensa mas de poucas palavras, que se teria que inventar uma retórica do silêncio que melhor nos permitisse ler este canto feito de uma escrita rara e que se nos entrega menos pelo muito que diz, que pelo imenso que sugere. “Visando obstinada e assimptoticamente um silêncio que nenhuma palavra possa violar”, dizíamos nós então, “a poesia de Glória de Sant’Anna insinua-nos, de modo obsessivo, um mundo onde o sagrado se instalou, um mundo, para voltarmos a Steiner, onde «a verdade já não tem necessidade de sofrer as impurezas e a fragmentação que o discurso necessariamente implica».” Eis o que, por outras palavras, inculcava David Mourão-Ferreira, quando notava que a obra de Saúl Dias nos “convida(va) a uma forma de «leitura» a que, geralmente, a poesia portuguesa não nos tem habituado muito: a «leitura» do silêncio, - dos silêncios existentes entre as estrofes entre os versos, no interior de cada verso...”Silêncio que não é indigência, visto que este pudor (o de Saúl Dias, o de Glória de Sant’Anna) antes sugere riqueza que se esconde e preserva. Voltamos a Gide, esse mestre da litote, que afirmava ainda no seu inesquecível Journal: “Quando nada se tem a dizer ou a esconder, não há necessidade de se ser discreto”. O discurso dos discretos é o discurso do ice-berg, que mostra, ao cimo da água, uma parte pequena da sua dimensão – o resto fica escondido nas profundidades do oceano:” Roubaste-me a alma / em troca do teu corpo./ Mas o teu corpo / tornou-se também alma./ E eu voltei a ter calma.”
Neste pequeno poema, que é uma pequena obra-prima, não cabe uma palavra mais e, por outro lado, uma palavra que se lhe retire destrói o edifício, todo construído com uma força discreta mas decisiva. Saúl Dias fala pouco para dizer muito. Num percurso que visa esse impressivo despojamento, o poeta de Sangue justifica João Gaspar Simões, ao classificar a sua arte poética de “lirismo por assim dizer monossilábico” e o seu “caso poético” de “um dos casos poéticos mais originais da geração”. É neste pudor, nesta reserva, neste retiro que Saúl Dias assume um dos vectores mais significativos do moderno: “Esta revalorização do silêncio” -, observava Steiner, “na epistemologia de Wittgenstein, na estética de Webern e Cage, na poética de Becket é um dos actos mais originais e característicos do espírito moderno. O conceito de palavra não dita, de música não ouvida e portanto mais rica, é, em Keats, um paradoxo local, um ornamento neo-platónico. Em muita poesia moderna o silêncio representa a reivindicação do ideal; falar é dizer menos.” Julio fala pouco e diz muito. Régio vai tendendo ao longo de um discurso abundante e que gradativamente se depura, para um silêncio que visa e que ocasionalmente substitui por um despiste perverso do leitor, Julio instala-se relativamente cedo, nesse quase silêncio essencial, que usa como via de expressão intensa. Régio tem outras dimensões: ficcionista de vôo largo, ensaísta, epistológrafo, memorialista: explica-se exaustivamente, explica os outros, polemiza, carteia-se com facúndia (mesmo queixando-se que o tempo lhe não chega) – assim vai imprimindo uma marca forte e nem sempre tida por simpática, num mercado literário de amadores e de preguiçosos. Júlio fica-se pelos poemas essenciais e, quando quer mudar de registo, volta-se para a pintura. A sua correspondência deve ser escassa e as espécies curtas e circunstaciais. Textos de exegese– viste-los. Canta e pinta – e já lhe chega. Neste discurso que se poupa e se reserva, a única força permitida é a da subtileza. Há nisto um perigo que o espreita, se é certo, como queria o ferino La Rochefoucauld que “a subtileza demasiado grande é uma falsa delicadeza e a verdadeira delicadeza é uma sólida subtileza”. Cremos que a de Saúl Dias/Julio é uma sólida subtileza que é como quem diz, uma verdadeira delicadeza”: “Pisas a areia, delicada,/e a tua mão prende o cabelo,/e esse gesto, quase nada,/tenho receio de perdê-lo./ Ah! Se eu pudesse emaranhá-lo/Na escassa malha de uma rima!/Mas já desisto... Foi-se o halo!/Sumiu-se a vaga tremulina!”
Vaga tremulina, escassa malha, gesto quase nada, areia delicada – eis materiais de construção quase etéreos, quase inacabados, quase demasiadamente leves, realmente delicados e sugestivos. Tudo tão reticente, tão reservado, tão resguardado, tão discreto... “A sinceridade é de vidro, a discrição é de diamante”, observava Maurois, dando à palavra sinceridade o provável sentido de entrega demasiado indiscreta e excessivamente eloquente. Diamante é, com efeito, o que nos sugere esta poesia quase sempre tão cristalina e tão avarenta dos seus meios que usa como quem os esconde.
Neste singular protocolo de discrição, creio que a província desempenha também o seu papel. “A província”, observou David Mourão-Ferreira, “desempenha efectivamente, um lugar primordial na poesia de Saúl Dias, como também na obra de alguns dos seus companheiros de grupo. Mas, enquanto não passa, na de muitos deles, da moldura de um quadro – moldura pitoresca ou asfixiante -, na de Saúl Dias ela é o próprio quadro: as formas e as cores em que se exprime, no quadro, a fundamental nostalgia do paraíso perdido.” Creio que David diagnostica bem ao detectar, nesta poesia, a presença natural, não rejeitada, da província. Mas penso, por outro lado, que ver nela a melancolia de um “paraíso perdido” é um pouco esquecer que Saúl Dias jamais saíu da província, embora mudando, dentro dela, de lugar ou de lugares. Eu seria pois mais tentado a ver nela mais um dos rostos assumidos do seu retiro, da rejeição de tudo quanto tenha que ver com uma exibição mais ostensiva e ruidosa – a que se vive nas grandes cidades, embora, até nestas, haja quem saiba organizar a sua província. A província diz bem com a discrição, com a rarefacção da palavra, é também uma metáfora adequada a esta poesia monossilábica e avara. Mas tudo isto acabou por ajudar a que o nome de Saúl Dias/Julio, embora universalmente respeitado e até amado (com bem menos reservas do que as votadas ao seu célebre e contestadíssimo irmão José), tenha vivido, durante tantos anos numa espécie de sombra, não definitivamente obliterante, mas sombra, mas injusta, mas inadequada à qualidade eminente desta poesia tão subtilmente alada e sortílega.
Num poema incluído na série dos Inéditos pela mão atenta e cuidadosa de Luís Adriano Carlos, que preparou com devoção e inteligência a Obra Completa que a Campo das Letras há pouco trouxe à luz, podemos ler: ”Há música lá fora, há danças, há fogueiras,/ há risos de mulheres e corre o vinho farto./ Porque me isolo e escondo e fecho no meu quarto,/eu que, no fundo, sonho enormes bebedeiras?”
Porque se isolaria e esconderia o poeta, havendo “música lá fora”? Talvez para ouvir outra música das profundezas, uma música menos óbvia, menos estridente mas infinitamente mais encantatória.
 O nome de Saúl Dias tem de facto andado um pouco obscurecido, como que mergulhado no fundo de algum oceano. Meditando sobre o génio do romancista americano, Herman Melville, que durante quase cem anos passou despercebido, Camus recordava uma observação feita pelo próprio autor de Moby Dick, tentando talvez consolar-se da obliteração que lhe amargurou tantos anos de vida: “Para perpetuarmos o nosso nome, devemos esculpi-lo em pedra rija e atirá-la às profundidades do mar: as profundidades duram mais do que as alturas.” E Camus concluía, revendo-se nesta citação: “As profundidades têm de facto a sua virtude dolorosa, como a teve o injusto silêncio em que Melville viveu e morreu e como teve também o intemporal oceano que ele sem cessar lavrou.” Já bem dentro do século XX, Melville foi reconhecido finalmente, na sua gigantesca dimensão. A pedra rija que guardara o seu nome no fundo escuro do oceano – prevalecera. Como prevaleceu também, o nome de Saúl Dias que agora, aqui no Porto, bem perto da sua província natal, veio ao de cima neste colóquio em boa hora congeminado: “Vamos,/de mãos dadas,/ pisando novos trilhos./Sangrando os pés,/ passando frio e fome./Tudo o tempo consome!/ 
Andando,/adormecendo,/acordando,/morrendo,/ressuscitando...” »
                                                                      Eugénio Lisboa
                                                      13/14 de Maio de 2002